Pequenos enganos e boas intenções custam caro ao país

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 28/10/2019.

 

Já era noite no seu gabinete no Palácio do Planalto. Distraído com uma sequência de audiências protocolares e despachos burocráticos, o presidente finalmente se deu conta de que naquela tarde a Câmara dos Deputados votava a reforma da Previdência. “Se ninguém me ligou até agora, é porque o resultado foi ruim”. Acionou então um de seus assessores, que confirmou o pressentimento: a idade mínima havia sido derrotada. E tinha sido por um voto.

Para colocar as contas da Previdência em ordem, o governo propôs 60 anos para mulheres e 65 para homens, acrescidos de pelo menos 25 anos de contribuição. Para piorar, o voto faltante veio de um integrante do seu partido, que até um mês antes era seu ministro. Foi dormir terrivelmente irritado com o resultado – sabia que a votação seria apertada, mas perder por um voto, e justo de alguém da sua equipe mais próxima, era muito doloroso.

No dia seguinte as coisas serenaram. O presidente acabou perdoando o deputado – que havia explicado que, inadvertidamente, apertara o botão de “abstenção” no lugar do dígito verde do “sim”. Além disso, a Câmara tenha mantido pelo menos o tempo de contribuição – não era o ideal, mas já daria um refresco no déficit dos próximos anos. Por fim, apesar do gosto amargo de sentir a vitória escapar por tão pouco, 307 votos num assunto tão polêmico mostrava que, no fim do primeiro mandato, seu governo ainda tinha força no Congresso – o que seria um grande ativo para a sua reeleição (essa conclusão vai por minha conta, pois não consta dos Diários da Presidência 1997-1998, de Fernando Henrique Cardoso).

Embora, nas suas memórias, FHC tenha minimizado os efeitos do engano de Antonio Kandir na votação da reforma da previdência, esse erro custou muito caro para o país. A idade mínima só será estabelecida nesta semana, com a promulgação da PEC de Bolsonaro no Congresso. Foram 21 anos perdidos, com déficits crescentes sugando recursos do orçamento público.

***************************

Na ressaca de um impeachment, grandes escândalos de corrupção e debates sobre as vantagens e desvantagens de nosso sistema de governo, o Congresso decidiu reformular as regras do jogo, aprovando novas leis sobre o financiamento das eleições e a atuação dos partidos políticos.

As dificuldades de formar coalizões já se faziam sentir àquela época (Collor que o diga) e a derrota do parlamentarismo no plebiscito de 1993 sepultou o sonho de uma reforma radical no sistema político. Nas eleições de 1994, 18 partidos conseguiram pelo menos uma cadeira na Câmara dos Deputados. Era preciso fazer alguma coisa para evitar que o país se tornasse ingovernável.

Decidiu-se então ressuscitar um instrumento que não havia sido adotado na Constituição de 1988: a cláusula de barreira. De acordo com a nova lei dos partidos políticos, aprovada em 1996, os partidos só teriam acesso ao dinheiro do fundo partidário e ao horário “gratuito” de rádio e TV se alcançassem pelo menos 5% dos votos válidos no Brasil inteiro. Para dar tempo de os partidos se adequarem, a regra só seria aplicada dali a 10 anos.

A questão, claro, foi parar no Supremo. PC do B e PSC – dois partidos que certamente não sobreviveriam à nota de corte – argumentaram que a cláusula de barreira seria inconstitucional. Nas vésperas da entrada em vigor do dispositivo, o STF pautou a matéria. O relator, ministro Marco Aurélio, deixou clara a sua preocupação: de acordo com os resultados das eleições de 2006, apenas 7 partidos sobreviveriam, e isso seria uma afronta ao princípio do pluralismo político. O plenário, unânime, concordou, e a cláusula de barreira foi extirpada da legislação eleitoral.

O Brasil conta hoje com 32 partidos registrados no TSE, sendo que 30 deles têm representação na Câmara dos Deputados. Ser “dono” de partido é um dos negócios mais vantajosos no país. Afinal, quem não quer ter direito a dezenas ou centenas de milhões de reais por ano, podendo alocá-los com grande flexibilidade e pouca transparência?

O Congresso demorou 11 longos anos para restituir, com a Emenda Constitucional nº 97/2017, a cláusula de desempenho no sistema eleitoral brasileiro. Nesse ínterim, escândalos se sucederam tendo nas suas raízes negociatas para a formação de coligações, doações ilícitas de grandes empresas, candidatos laranjas e distribuição de cargos e verbas para votar com o governo.

Obviamente não era a intenção do Supremo fomentar o aumento da corrupção no país. Mas quando ele decidiu, em 2006, recorrendo apenas ao texto ou ao “espírito da Constituição”, sem refletir sobre os incentivos e as consequências de sua decisão, foi isso o que provocou.

***************************

Ministra Rosa Weber durante sessão extraordinária do STF. Foto: Carlos Moura/SCO/STF (24/10/2019)

A história foi contada pela repórter Cleide Carvalho, n’O Globo de 03/04/2018. Em 1991, numa exposição agropecuária em Passos (MG), o fazendeiro Omar Coelho Vítor perdeu o controle quando um jovem mexeu com sua esposa e disferiu 5 tiros de pistola. Apesar de ferido na boca e na coluna, o rapaz felizmente sobreviveu.

Processado por tentativa de homicídio, Omar foi condenado pelo júri a sete anos e meio de prisão. Quando o crime completou dez anos, o TJMG confirmou a sentença em segunda instância. Mas os advogados impetraram um habeas corpus no STF, e o Plenário decidiu mudar a jurisprudência da Corte e aplicar, pela primeira vez, a tese de que Omar só poderia ser preso após esgotados todos os recursos, conforme determinaria o art. 5º, inciso LVII, da Constituição.

Depois de interpor embargos de declaração, recurso especial, agravo regimental, mais dois embargos de declaração, embargos de divergência, agravo regimental nos embargos de divergência, embargos infringentes e agravo regimental nos embargos infringentes ao recurso especial, o STJ declarou a prescrição do crime. 21 anos depois do crime, Omar estava livre. “Ele tinha bons advogados em Brasília”, explicou a vítima dos tiros da sua pistola.

Na última quinta-feira, a ministra Rosa Weber proferiu seu voto sobre a prisão em segunda instância. A ministra não compactua com a impunidade no Brasil. Mas isso é o que o seu voto vai provocar.

“Tem dias que eu fico pensando na vida, e sinceramente não vejo saída”.