Desafios nacionais não podem ser relevados por 2020

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 06/01/2020.

 

As festas de fim de ano passaram e, com elas, renovamos nossas reflexões sobre a vida que levamos e os sonhos que acalentamos. Na mitologia romana o deus Jano, com as suas duas caras (uma olhando para trás e a outra para a frente), controla a transição entre o passado e o futuro. Seu mês, janeiro, descortina um novíssimo período de 365 dias para tentarmos fazer diferente e melhor – e olha que em 2020 teremos uma oportunidade a mais, já que o ano é bissexto.

Do ponto de vista das relações entre economia e política, 2019 deixou na memória a surpreendente aprovação da reforma da previdência, medida acalentada desde o governo Temer mas que retomou a tração a partir do alinhamento de visões da equipe econômica de Paulo Guedes, do centro parlamentar comandado por Rodrigo Maia e, sempre é importante destacar, de uma sociedade que parece cada vez mais madura para encarar difíceis escolhas econômicas. Infelizmente Bolsonaro deu-se por satisfeito com essa vitória e, em vez de tentar colher o máximo possível de lucros no primeiro ano de governo, quando seu capital político estava no topo, determinou ao Ministério da Economia que contivesse seu ímpeto por mudanças.

Mas, ao adentrarmos janeiro, é hora de passarmos das retrospectivas para as projeções quanto ao que virá. Tudo o mais constante, e caso o mundo não descarrilhe num conflito global de larga escala, uma de nossas poucas certezas é que teremos eleições municipais no Brasil. Tradicionalmente isso significa um ano legislativo menos produtivo, com mais Brasil e menos Brasília na agenda dos parlamentares, já que a maioria deles encara essas disputas locais como a oportunidade de enraizamento de alianças que poderão garantir votos em 2022. Os problemas do país, contudo, são tão graves e em tantas áreas distintas, que o menor número de sessões no Congresso e a baixa propensão de deputados e senadores encararem pautas impopulares não pode servir de desculpa para a interrupção de uma agenda de mudanças.

Seria muito importante para o país se o Congresso encaminhasse a aprovação definitiva de dois importantes projetos que avançaram em 2019: a extensão das novas regras previdenciárias para Estados e municípios e o novo marco legal do saneamento básico. De um lado, a chamada PEC paralela da previdência pode enfrentar a resistência de parlamentares receosos da reação da opinião em suas bases, mas como alguns governadores e prefeitos têm demonstrado, a conscientização do eleitorado quanto à inevitabilidade dos ajustes é um sinal de que vale a pena um esforço adicional para virarmos essa página de modo definitivo, pelo menos no médio prazo.

Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre na promulgação da reforma da Previdência. Foto: Edu Andrade/Ascom/ME

Quanto ao novo marco do saneamento, trata-se de uma nova estratégia para atacar uma das piores chagas da desigualdade brasileira. O acesso diferenciado à água tratada e a um sistema decente de coleta de esgotos é causa e consequência de um conjunto de políticas públicas que favorece regiões e grupos de indivíduos em detrimento de outros, criando privilégios que repercutem do nível nacional até bairros e ruas de uma mesma cidade. Estimular a entrada de investimentos privados para o saneamento básico por si só não eliminará um problema cultivado ao longo de séculos – ainda será necessário bastante esforço para conceber projetos, editais de licitação e regulação de serviços –, mas ampliará o leque de opções para reduzir nosso atraso nessa área, que impõe um pesado ônus na qualidade de vida de dezenas de milhões de brasileiros mais pobres.

Do ponto de vista da agenda econômica, as peculiaridades do ano legislativo colocam diante do governo o ônus de escolher as brigas que ele vai querer comprar em 2020. Para começar, já se encontram no Congresso os três projetos que constituem a proposta de reforma fiscal de Paulo Guedes, apelidada de novo pacto federativo. Há meses o governo também anuncia (e sistematicamente posterga em seguida) a remessa de uma reforma administrativa, sistematizando melhor as centenas de carreiras de servidores federais, instituindo um novo sistema de gestão e avaliação de pessoal e reduzindo o diferencial salarial entre trabalhadores dos setores público e privado.

Para concluir a pauta de projetos, todos eles estratégicos para a construção de um ambiente econômico e de um Estado mais sustentáveis e eficientes, temos a reforma tributária. Com a intenção de corrigir parte das distorções criadas nas últimas décadas e que tornaram o nosso sistema de arrecadação de tributos um dos mais complexos e injustos do mundo, tramitam concomitantemente na Câmara e no Senado duas Propostas de Emenda à Constituição com filosofias bastante similares: a unificação de vários tributos que incidem sobre a produção e circulação de bens e serviços num único imposto sobre valor agregado não cumulativo, com implantação gradual para permitir que setores e entes federativos possam se adaptar de modo mais suave às mudanças.

Embora as PECs tributárias em tramitação na Câmara e no Senado sejam muito próximas nas ideias gerais, mas bastante distintas na abrangência e no desenho de sua operacionalização, o governo fez bem em não tumultuar ainda mais o ambiente com o envio de uma terceira alternativa – principalmente se levarmos em conta os muitos e poderosos interesses que serão afetados por qualquer proposta que venha a ser aprovada. Isso não quer dizer, porém, que Paulo Guedes e sua equipe não acompanharão de perto o que se discutirá no Congresso, não apenas pelo seu potencial impacto fiscal como pelas ideias pré-concebidas que o ministro tem sobre as possibilidades de uso do sistema tributário para desonerar a produção e o emprego.

Como pode ser visto, governo e legisladores têm diante de si desafios nacionais que não podem ser relevados em função de interesses paroquiais visando as eleições de 2020 ou de 2022. Que Jano nos proteja em nossas escolhas no ano que se inicia.