Aprovação do aumento para diversas carreiras do funcionalismo na Câmara dos Deputados revela como o presidencialismo de coalizão brasileiro torna-se refém dos grupos de interesses

“Esse aumento já está precificado no Orçamento, então, optamos por dar logo e tirar esse assunto da frente. Quanto mais demora, mais chance o governo estará dando para os servidores se mobilizarem por novo reajuste — disse um interlocutor palaciano”.

 

Na noite de quarta para quinta-feira a Câmara dos Deputados aprovou 14 (sim, você leu bem: QUATORZE) projetos de lei reajustando as remunerações de diversas carreiras do funcionalismo federal dos três Poderes e mais o Ministério Público (“o quarto poder”) – a íntegra deles pode ser consultada aqui. Além do impacto bilionário num contexto em que o país enfrenta grave crise fiscal – seriam R$ 64 bilhões até 2019 –, essa medida expõe a forma pela qual o sistema político brasileiro torna-se refém de grupos de interesses – como algumas carreiras de servidores públicos.

A literatura especializada sobre o presidencialismo de coalizão brasileiro considera que nosso país encontrou uma maneira razoavelmente estável de funcionar politicamente: atribuindo grandes poderes ao Poder Executivo (medidas provisórias, controle sobre o orçamento, milhares de cargos em comissão, centenas de estatais) e aos líderes partidários no Congresso, a maioria dos Presidentes conseguiu aprovar seus projetos de maneira previsível e com alta disciplina partidária (a referência básica de leitura aqui são os textos de Fernando Limongi e Argelina Cheibub). Quando esse sistema não funcionou, os Presidentes (Collor e Dilma) sucumbiram ao jogo político e caíram via impeachment. Embora esse modelo seja muito convincente para analisar a governabilidade no Brasil, meu argumento é que o presidencialismo de coalizão brasileiro facilita a ação dos grupos de interesses, e o futuro aumento dos rendimentos dessas carreiras ilustra bem como isso funciona.

Nos idos de 1965, o cientista político e economista Mancur Olson publicou um clássico que revolucionou a análise dos grupos sociais enquanto atores políticos. Simplificando radicalmente as várias conclusões d’A Lógica da Ação Coletiva, grupos com interesses econômicos bem definidos, com grande capacidade de organização e relativamente poucos membros têm mais chances de garantir vantagens do Estado à custa daqueles que não conseguem se organizar para evitá-las (e a razão para isso vem do famoso problema do carona: “se eu não vou ganhar quase nada diretamente com isso, vou me envolver pra quê?”).

No caso do reajuste do funcionalismo, temos claramente essa situação: sindicatos de algumas carreiras com maior poder de mobilização e membros de Poderes com grande poder de pressão (em tempos de Lava Jato, não é recomendável desagradar juízes e procuradores) estão em vias de conseguir reajustes que vão deteriorar ainda mais a situação fiscal do país. E essas benesses serão custeadas por toda a sociedade, por meio de cortes em outros programas governamentais, aumento de impostos, inflação, aumento de juros (quando o lado fiscal não ajuda, a dose do remédio monetário tem que ser mais forte e mais amarga) ou “tudo isto ao mesmo tempo agora”.

Olson não chegou a viver em tempos de popularização da internet e das redes sociais (ele faleceu em 1998), mas sua prescrição continua atual: o máximo de reação que essa injustiça terá da coletividade dos brasileiros será algumas reportagens na imprensa e alguns posts indignados no facebook e no twitter, e o reajuste será sacramentado pelo Senado nos próximos dias e sancionado pelo novo Presidente da República.

A ação de grupos de interesses no Brasil – de servidores públicos a grandes empresas, de ruralistas a igrejas evangélicas – é facilitada pela forma como nosso presidencialismo de coalizão funciona. Num sistema político em que o Presidente depende de uma base muito ampla e heterogênea de partidos com fraquíssima identidade ideológica e parlamentares escolhidos em eleições em que se depende sobremaneira de doações de campanha e/ou exposição na mídia ou a grupos específicos (sindicatos, igrejas, movimentos sociais, etc.), as medidas de interesse do governo são geralmente aprovadas, como preveem os modelos da Ciência Política brasileira, mas a um custo muito alto. E neste preço são incluídos os privilégios a quem consegue ter acesso aos canais certos – ao próprio Presidente da República ou a seus Ministros, aos líderes partidários, aos presidentes de comissões, aos relatores dos projetos, etc.

A frase que abre esta postagem ilustra bem como esses assuntos são tratados. O aumento dos servidores é visto pelas autoridades simplesmente como um empecilho a ser retirado da pauta para o Presidente da República aprovar as principais medidas de seu programa de governo: mesmo que esse reajuste custe bilhões aos contribuintes, mesmo que ele afete a vida de milhões que sofrerão com cortes em programas ou projetos sociais, mesmo que ele sinalize para o mercado que o governo não se preocupa com a sustentabilidade fiscal.

As carreiras a serem beneficiadas pelos aumentos valem-se de seu acesso privilegiado ao Poder para pressionar por benefícios mesmo sem, muitas vezes, fazer por merecê-los. [A partir desta parte eu estou correndo o sério risco de me indispor com vários amigos e a jogar contra o meu próprio interesse particular, uma vez que faço parte de uma das carreiras a serem beneficiadas pelo aumento].

Os Ministros do Supremo Tribunal Federal argumentam que o aumento de seus subsídios para R$ 39.293,32 a partir de 01/01/2017 não cobrem a inflação dos últimos anos. Eles têm razão: desde 01/01/2005 a inflação foi de 93%, enquanto seus rendimentos subirão “apenas” 82,75%. Mas é preciso tratar a questão com um pouco mais de cuidado.

É claro que os onze Ministros do STF, por serem a cúpula do sistema judiciário brasileiro, têm uma elevadíssima responsabilidade, e devem receber muito bem. Por isso, não questiono que recebam quase R$ 40 mil mensais. O problema é que o estabelecimento dessa remuneração como teto para o funcionalismo instigou diversas carreiras a pressionar para serem incluídas nesse sistema e, assim, conseguir reajustes automáticos a reboque.

Atualmente, o reajuste dos subsídios dos ministros do STF se espraia para todos os membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública – além de outros agentes públicos eleitos. Mas todo sindicado de carreiras tem como uma de suas plataformas políticas principais incluir suas atividades no rol daquelas “funções essenciais” da Constituição e, assim, cristalizar seus ganhos como uma percentagem (90,25% é o número mágico!) dos pagamentos feitos aos Ministros do STF.

Nesse cenário, mesmo que essas carreiras do funcionalismo com maior poder de organização e pressão sobre os postos-chave de nosso presidencialismo de coalizão ainda não tenham alcançado sucesso nessa campanha, os ganhos da cúpula do Judiciário tornaram-se o parâmetro para as negociações salariais – e eles vêm obtendo reajustes significativos nas duas últimas décadas. Os gráficos abaixo apresentam dados extraídos do Boletim Estatístico de Pessoal do Ministério do Planejamento com os salários iniciais e máximos de algumas dessas carreiras “típicas de Estado” e sua evolução em relação à inflação.

início

topo

inflação

 

Como se vê pelos gráficos, a questão de fundo colocada pelo reajuste dos servidores não é de variação (ou seja, recomposição de inflação), mas sim de nível. Com o sistema posto no Brasil, os salários médios de uma parcela não desprezível dos funcionários públicos federais, com grande poder de organização e pressão, alcançaram patamares fora da realidade – ainda mais uma realidade marcada por grave crise fiscal, desemprego e recessão que assolam a população brasileira.

Esse quadro torna-se ainda mais grave quando se verifica que servidores com salários médios em torno de R$ 20 mil, ou juízes, procuradores e defensores públicos ganhando R$ 30 mil mensais (fora os 60 dias de férias anuais, auxílio moradia e outros privilégios) são amparados por estabilidade no emprego – não é formal, mas acaba sendo de fato – e não estão sujeitos a sistemas efetivos de avaliação de resultados.

Corrigir essa distorção é tarefa hercúlea: seriam necessários pelo menos rever o sistema de remuneração e avaliação de pessoal, criar instituições para avaliar os resultados do gasto público e reformar o sistema orçamentário (afinal, simplesmente aumentar a meta do déficit não deve ser a solução). O problema é que governos fracos são especialmente vulneráveis a comportamentos oportunistas de grupos de interesses bem organizados. Como a responsabilidade fiscal ainda não se tornou um valor inquestionável na sociedade brasileira, o mais provável que ela continue refém dos grupos de interesses – e os servidores públicos são apenas um deles.

 



 

 


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