As votações da reforma política na Câmara dos Deputados nesta semana foram marcadas por traições, mudanças de lado, arrependimentos e juras de fidelidade dignas de folhetim.

No prazo de menos de 24 horas, o Plenário da Câmara mudou radicalmente de posição em relação à possibilidade de empresas doarem recursos para campanhas eleitorais. Na madrugada de terça (26/05) para quarta (27/05), a emenda que pretendia colocar na Constituição as doações de empresas foi derrotada por não conseguir o mínimo de 308 votos exigidos (foram 264 votos pelo “sim”, 207 pelo “não” e 4 abstenções). Após uma manobra regimental do presidente da Casa, Eduardo Cunha (para quem não leu, eu expliquei o que aconteceu aqui), a matéria foi colocada novamente em votação na noite de quarta (26/05), desta vez visando permitir as contribuições empresariais apenas para os partidos políticos. Nessa segunda votação, a emenda permitindo envolvimento das empresas no financiamento das eleições foi aprovada por 330 votos a favor e apenas 141 contrários. A matéria precisa ser votada em segundo turno e, caso aprovada, segue para apreciação do Senado Federal.

Antes de analisar tecnicamente essa mudança de posição do Congresso em prazo tão exíguo, quero fazer um esclarecimento, em atenção aos comentários dos amigos Augusto Machado e Silvio Mendes: eu não me posiciono entre aqueles que são favoráveis ao financiamento de campanha exclusivamente público .

A meu ver, deveríamos avançar com uma reforma que combinasse o barateamento das campanhas (mediante alterações na forma de disputa, combinado com a imposição de limites de gastos e de meios de propaganda política), proibição das doações de empresas, permissão de doações individuais sujeitas a um limite por CPF, redução dos recursos para o fundo partidário, endurecimento de penas para o mau uso de recursos e caixa 2 (para doadores e candidatos) e fortalecimento institucional dos órgãos de controle interno (CGU, PF) e externo (TCU, Ministério Público) para atuar nesses casos. Acredito que essas medidas conduziriam a uma situação que, apesar de não ser perfeita, é certamente melhor do que a situação atual e também superior à alteração aprovada na Câmara nesta semana – que, como mencionei na postagem anterior, torna ainda menos transparentes as doações empresariais. Minha opinião pessoal é que estamos deixando passar uma oportunidade para reduzir significativamente os incentivos à corrupção e ao favorecimento privado no Estado brasileiro que resultam em escândalos como da Operação Lava a Jato.

Feito esse disclaimer, passemos à análise do que ocorreu nas fatídicas horas em que a Câmara fez um giro de 180 graus em relação à constitucionalidade das doações eleitorais de empresas.

1) Traição (“você, rapaz, abusou da regra três, onde menos vale mais”)

A derrota da proposta de inserir na Constituição a possibilidade de empresas doarem para as campanhas eleitorais na votação do dia 26/05 causou surpresa entre parlamentares, analistas e na população em geral. Afinal de contas, numa Câmara em que a maioria dos deputados foi eleita contando com milionárias doações empresariais, nada mais natural que essa medida fosse aprovada – principalmente diante da possibilidade real de que o Supremo Tribunal Federal considere inconstitucionais essas doações (o placar está atualmente em 6 a 1 pela proibição das doações de empresas, na ADI nº 4560).

Apesar desse interesse explícito na continuidade das coisas como elas são, os defensores das doações de empresas não conseguiram os votos necessários – faltaram 44 votos para atingir o mínimo exigido para mudar a Constituição. Apesar de a votação já ter ocorrido alta noite, o Plenário estava cheio: 475 deputados votaram, o que representa mais de 90% do total – um quórum altíssimo para os padrões das votações no Congresso. Qual foi, então, o motivo para a derrota da emenda pró doações de empresas? Resumindo essa votação numa palavra, eu diria: “traição”.

Seguindo o regimento da Câmara, na abertura da votação o Presidente da Casa interpelou os líderes de cada partido a respeito do posicionamento de sua agremiação sobre a matéria em debate. Marcaram posição pelo “Sim” à emenda que autorizaria as doações de empresas os seguintes partidos: DEM, PMDB, PSDB, PSD, PR, PP, SD, PTB, PSC, PHS e PEN.

Em posição oposta colocaram-se PT, PC do B, PDT, PPS, PSOL, PV, PRB, PTN, PMN, PRP, PSDC, PRTB, PTC, PSL e PT do B.

Dois partidos mantiveram-se neutros e liberaram seus correligionários para votar segundo suas consciências: PSB e PROS.

Como os gráficos abaixo revelam, 57 deputados votaram contra as orientações de seus partidos. Essas traições foram mais significativas no grupo dos partidos que apoiavam a emenda – a taxa de traição foi de 16,4%, o dobro daquela verificada no bloco dos partidos contrários às contribuições empresariais (7,2%).

Em especial, percebe-se o número elevado de infidelidades justamente no partido do presidente da Câmara, o PMDB: 14 deputados votaram contra a orientação da legenda.

V1 Não
V1 Sim Fato importantíssimo a se destacar é que as traições foram fundamentais para o resultado da votação, pois o grupo dos partidos favoráveis à emenda perdeu 46 votos com os infiéis – que teriam sido suficientes para atingir seu objetivo, pois faltaram 44 votos para atingir o mínimo previsto na Constituição.

Com esse resultado, estaria então enterrada a tentativa de colocar na Constituição a possibilidade de as empresas doarem para campanhas eleitorais. A decisão sobre o assunto, portanto, voltaria para as mãos do Supremo Tribunal Federal, que até o presente momento está fortemente inclinado a vetar as doações empresariais. No dia seguinte, porém, a história tomou outro rumo.

2) Troca-troca (“A hora do sim é um descuido do não”)

Da noite para o dia tudo mudou. Com uma manobra regimental, o Presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), decidiu colocar em votação no dia seguinte uma outra emenda favorável às doações empresariais. Com outro texto, ela trazia apenas uma diferença principal: se aprovada, as empresas continuariam a poder doar, mas agora somente para os partidos políticos, e não mais para os candidatos individualmente.

Ao perguntar aos líderes sobre o posicionamento de seu partido quanto à “nova” emenda, uma surpresa: um grupo considerável de partidos mudou de lado. Em menos de 24 horas, os seguintes partidos passaram do “não” às doações de empresas para o “sim”: PV, PMN, PRB, PRP, PRTB, PSDC, PSL, PT do B, PTC e PTN. Além desses, o PROS, que havia se mantido neutro na primeira votação, bandeou-se para o lado do “sim”.

Infelizmente não temos como afirmar o que aconteceu nos bastidores, mas o fato é que essa mudança repentina de posicionamento dos partidos aumentou consideravelmente a chance de o “sim” ganhar no dia 27/05. Esse grupo de 11 partidos possuía 57 deputados presentes na segunda votação – o que seria mais do que suficiente para assegurar a vitória pró doações empresariais, caso a fidelidade fosse razoável. E aí entra o último componente dessa tragicomédia.

3) Arrependimento (“Você voltou, meu amor, alegria que me deu”)

Outro fato notável observado quando comparamos as duas votações é o significativo aumento das taxas da fidelidade partidária no dia 27/05.

O número de deputados que foram infiéis à orientação de seu partido foi reduzido de 57 para 28 de uma votação para a outra. E esse fato, combinado com a mudança de lado dos citados 11 partidos, foi determinante para a virada no resultado final da votação. V2 Não V2 Sim

O grupo dos partidos contrários às doações empresariais ficou restrito a 5 partidos: PT, PC do B, PDT, PPS e PSOL. Do total de votos possíveis (107 deputados presentes), apenas 2 representantes do PDT bandearam para o lado do sim.

Por outro lado, a situação ficou boa para o partido favorável às doações de empresas. Encorpado com os 11 partidos que trocaram de lado, esse bloco poderia auferir 338 votos – 30 a mais do que seria necessário para vencer.

O aumento da fidelidade no grupo do “Sim” foi determinante para sua vitória, uma vez que apenas 26 deputados terminaram por desrespeitar a orientação de seu partido.

Chamo a atenção para o comportamento do PMDB nessa nova votação: se na anterior foram 14 traições, na segunda rodada só 4 tiveram coragem de se manter infiéis. Houve, portanto, um “enquadramento” de 10 antigos desertores na legendo do presidente da Câmara.

Resultado: mesmo com 26 deserções, o grupo dos favoráveis às contribuições privadas conseguiu o mínimo necessário para a aprovação, uma vez que contou ainda com 16 votos do PSB, que se manteve neutro também na segunda votação.

A emenda foi aprovada por 330 votos.

4) Mudança de Comportamento – Quem mudou de lado na votação das contribuições empresariais

Comparando as votações do dia 26/05 e do dia 27/05, verificamos que 79 deputados trocaram de lado em relação às doações de campanha. Os motivos para essa mudança de comportamento podem ser vários, e não podemos inferir qual foi mais decisivo: os deputados podem ter refletido melhor sobre o assunto, ou sofreram pressão de seus líderes para votarem segundo a orientação de seu partido, ou sofreram pressão de seus doadores. Desse conjunto de deputados que mudaram de lado, sete deputados tinham sido favoráveis às doações de empresas na primeira votação e depois votaram contra elas: Nome aos bois - sim para não

Grupo mais expressivo, entretanto, foi o de deputados que se tornaram defensores das contribuições empresariais da noite para o dia. Segue a relação:

Nome aos bois - não para sim

Resumo da ópera:

Os resultados acima permitem as seguintes conclusões sobre as votações ocorridas nesta semana:

    • A primeira votação foi mais ideológica do que a segunda: Para testar essa hipótese, comparei os valores das doações de empresas a cada um dos candidatos que votaram “sim” e os que votaram “não” nas duas votações. Na primeira a média de doações de PJs para os candidatos que votaram “não” (R$ 785.575,10) era significativamente inferior (com nível de confiança de 99%) à do grupo que votou “sim” (R$ 1.270.704,00). Na segunda votação, a diferença nas médias não se mostrou estatisticamente relevante.
    • O resultado acima indica que na segunda votação prevaleceu a orientação do partido. Queiramos ou não, isso é um sinal positivo para a democracia. Partidos ideologicamente coesos são fundamentais. O problema é que essa coesão geralmente é pontual, e muitas vezes observada justamente em votações que poderiam aprimorar a democracia – e geralmente no sentido inverso ao que boa parte da população considera como desejável.
    • A mudança de lado de um grupo considerável de partidos pequenos, acompanhada do aumento da taxa de fidelidade nos partidos grandes, é uma grande evidência da liderança exercida pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, nesse processo. Isso corrobora as minhas impressões da postagem anterior.


 

 


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