Continuando a história sobre o leasing cambial…

Como vimos na postagem anterior, a severa desvalorização cambial no início de 1999 gerou uma série de questionamentos judiciais. Devedores de bancos que se valeram do leasing cambial para financiar seus automóveis correram para o Judiciário para tentar alguma forma de proteção contra o aumento de seu endividamento.

A tese dos devedores tinha fundamentos jurídicos relevantes. Para eles, a desvalorização cambial foi um acontecimento imprevisível e que gerou uma onerosidade excessiva para os devedores. Como o equilíbrio econômico-financeiro do contrato foi quebrado, caberia ao Judiciário restabelecê-lo.

Nesse caso, os devedores pleiteavam a aplicação do art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor (aqui), que diz o seguinte:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(…)
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

Em outras palavras, os devedores queriam a modificação do contrato, para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Ou seja, que o Poder Judiciário alterasse o contrato, trocando seu indexador: sairia a taxa de câmbio, entraria algum índice de inflação (o IPC, por exemplo). Como consequência, o banco arcaria integralmente com o prejuízo da desvalorização cambial.

É interessante notar que essa questão da onerosidade excessiva decorrente de um fato imprevisível é antiga no Direito Civil; suas origens remontam ao fim do Império Romano e à Idade Média. Naquela época, a cláusula rebus sic standibus (“enquanto as coisas estão assim”) seria uma das exceções à regra geral do pacta sunt servanda (“o acordo é lei entre as partes”), um dos alicerces do direito contratual romano. Para essa “nova” teoria, as condições de um acordo poderiam ser revistas, desde que algo inesperado acontecesse que tornasse as condições extremamente desfavoráveis a uma das partes.

Apenas a título de informação, além do Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil de 2002 (aqui) também incorporou a cláusula rebus sic stantibus, mas em condições bem mais rigorosas. É o que se vê pelo seu art. 478:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. (…)

Atenção para o cuidado que o legislador do Código Civil teve em qualificar bem a situação: a onerosidade excessiva deveria decorrer de “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis” e resultar em “extrema vantagem” para uma das partes. Já no CDC, fala-se apenas em “fatos supervenientes”. Não há menção, portanto, à imprevisibilidade e à extraordinariedade.

Mas voltando para a questão do leasing cambial, a tese dos clientes/consumidores/devedores a princípio ganhou amparo no Poder Judiciário. Tanto que o Superior Tribunal de Justiça, órgão responsável por uniformizar a interpretação da legislação infra-constitucional federal, proferiu algumas decisões acolhendo a teoria de que os custos com a desvalorização deveriam ser arcados pelos arrendadores/bancos/credores.

Veja, a respeito, a decisão do Recurso Especial nº 268.661-RJ (veja aqui), de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, que cita diversos outros precedentes do STJ.

Na defesa de seus interesses, os bancos argumentavam o seguinte:
1) Que a operação de leasing cambial não era uma relação de consumo e, portanto, não se aplicava o art. 6º, V, do CDC.
2) Por não se tratar de relação de consumo, os consumidores deveriam demonstrar que a desvalorização ocorreu de maneira imprevisível.
3) Que à época da celebração dos contratos havia claros sinais de que a política cambial brasileira era insustentável, e que em algum momento o governo seria forçado a desvalorizar o real.
4) Que mesmo cientes da grave conjuntura macroeconômica, os clientes decidiram assumir o risco e firmaram contratos indexados ao dólar.
5) Que a alteração do índice de reajuste dos contratos causaria graves prejuízos aos bancos, que buscaram os recursos para as operações no exterior.

A força dessa argumentação acabou levando, posteriormente, o STJ a flexibilizar seu entendimento. Passou-se a decidir que os custos deveriam ser igualmente arcados entre clientes e bancos, numa decisão salomônica. O acórdão proferido no RE nº 401.021-ES (aqui) tornou-se paradigmático na questão:

“LEASING. Variação cambial. Fato superveniente. Onerosidade excessiva. Distribuição dos efeitos. A brusca alteração da política cambial do governo, elevando o valor das prestações mensais dos contratos de longa duração, como o leasing, constitui fato superveniente que deve ser ponderado pelo juiz para modificar o contrato e repartir entre os contratantes os efeitos do fato novo. Com isso, nem se mantém a cláusula da variação cambial em sua inteireza, porque seria muito gravoso ao arrendatário, nem se a substitui por outro índice interno de correção, porque oneraria demasiadamente o arrendador que obteve recurso externo, mas se permite a atualização pela variação cambial, cuja diferença é cobrável do arrendatário por metade.”

Como resultado, houve um misto de rebus sic standibus com pacta sund servanda: nem se preservou os contratos integralmente (como queriam os credores), nem se afastou a incidência da variação cambial (como buscavam os devedores). Os contratos foram reajustados em 50% da desvalorização cambial no período, e fim de papo.

Na próxima postagem vou tentar discutir algumas questões sobre os impactos dessa decisão judicial no mercado. Até lá!