Autoritarismo e polarização colocam STF na berlinda

Por Bruno Carazza

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 24/06/2019.

 

Passados praticamente seis meses, Bolsonaro se sente cada vez mais à vontade para governar. Rasgou o cheque em branco que seria dado aos “superministros” Guedes e Moro, afastou boa parte da junta de generais escalada para tutelar suas ações e não cedeu ao canto da sereia dos partidos para formar uma coalizão no Congresso. Para quem apostava numa “normalização” do ex-capitão durante o exercício da Presidência, está na hora de rever a estratégia. Bolsonaro não é bobo e não se deixa domar facilmente.

É verdade que o desempenho no Congresso é lamentável. A começar por seu partido ruidoso e inexperiente, o novo governo tem problemas graves de articulação política e perdeu completamente o protagonismo da pauta legislativa para o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ), inclusive na reforma da Previdência.

Para compensar, Bolsonaro tem dado vazão a seu viés autoritário e testa os limites de liberdade que a Constituição lhe oferece. Faltando ainda uma semana para fechar o primeiro semestre, chama atenção o número de decretos editados pelo atual presidente. Até agora foram 184, número muito superior ao início dos governos Temer (72) e Dilma (81) e muito próximo a Lula, o campeão nessa modalidade de atividade infralegal, com 208 decretos editados de janeiro a junho de 2003.

Em muitos casos, Bolsonaro atropela não apenas o razoável, mas também as balizas constitucionais colocadas para evitar abusos. Algumas vezes, oposição e os partidos mais ao centro se articulam e impõem derrotas ao governo, como aconteceu na tentativa de enfraquecer a Lei de Acesso à Informação e, ao que tudo indica, deve se repetir nesta semana com o decreto sobre porte de armas.

Na maioria das situações, no entanto, a disputa desagua no Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro já ostenta o título de presidente mais contestado judicialmente no início de governo. Nesses seis meses, já são 34 ações diretas de inconstitucionalidade movidas contra leis, medidas provisórias, decretos e até portarias adotadas pelo seu governo. Praticamente todas as iniciativas importantes tomadas por Bolsonaro foram questionadas no STF.

Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, recebe em audiência o presidente eleito Jair Bolsonaro. Foto: Carlos Moura/SCO/STF
Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, recebe em audiência o presidente eleito Jair Bolsonaro. Foto: Carlos Moura/SCO/STF (07/11/2018)

 

A maioria dessas ações foi movida por partidos de oposição, com Rede, PDT, PSB, PT e PSOL à frente. Não se trata de novidade. O professor Oscar Vilhena, diretor da Escola de Direito da FGV em São Paulo, dá o nome de “supremocracia” ao arranjo previsto na Constituição de atribuir ao STF o papel de poder moderador na arena política brasileira.

No livro “A Batalha dos Poderes”, Vilhena defende que, em 1988, os constituintes buscaram consolidar o renascimento da democracia brasileira entrincheirando na Constituição o maior número possível de direitos para evitar que, no futuro, uma nova composição do Congresso pudesse ameaçá-los. Como contrapartida, atribuiu ao STF o poder de guardião dessa visão constitucional e árbitro dos conflitos entre os Poderes.

Com a hiperconstitucionalização de temas políticos, econômicos e sociais, toda disputa de interesses acaba parando no Supremo. E essa tendência tem se intensificado desde que a polarização entre diferentes concepções do mundo se tornou mais aguda no Brasil. No gráfico abaixo, elaborado com dados minerados no site do STF com a ajuda do professor Nazareno Andrade e de seu aluno Gileade Kelvin (Universidade Federal de Campina Grande), observamos que tanto o número de ações constitucionais quanto a participação dos partidos políticos na sua proposição estão em alta desde 2013, quando as crises política e econômica se instalaram.

De olho em 2020 e 2022, e com o enfraquecimento daqueles que poderiam ter a função de conter seus rompantes (Guedes, Moro e os generais), a tendência é que Bolsonaro recorra cada vez mais a expedientes heterodoxos para insuflar a polarização e agradar seu eleitor-raiz com uma agenda de medidas conservadoras na esfera dos costumes.

Na tipologia proposta por Vilhena, a Constituição exige que o STF seja responsivo diante de ameaças ao seu pacote liberal de direitos fundamentais. Resta saber se a postura dos onze ministros será de omissão diante da vontade de um presidente ancorado em 57 milhões de votos, ou de usurpação de funções que, em última instância, caberiam ao Congresso Nacional.

Até aqui, a maioria das decisões progressistas do Supremo se deu num contexto em que a Presidência era exercida por partidos de centro-esquerda que comungavam com sua visão. O jogo agora mudou. Como o STF vai se posicionar diante de um presidente conservador e com pendores autoritários?

A insistência de Bolsonaro em sinalizar que indicará um ministro evangélico para o STF faz parte da estratégia. Resta saber se, num eventual embate com o Supremo, ele também enviará um jipe, um soldado e um cabo.