Encontro de Bolsonaro com ministros revela em profundidade visão do governo

Por Bruno Carazza

O vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro, realizada em 22/04/2020 e divulgada ontem (22/05/2020) pelo ministro Celso de Mello, do STF, atraiu todas as atenções. À parte as discussões sobre se houve ou não interferência indevida do presidente na Polícia Federal, e das críticas até certo ponto infantis sobre os palavrões proferidos durante o encontro, alguns pontos muito interessantes sobre o funcionamento do governo foram expostos de forma nua e crua. A seguir, apresentou alguns deles, transcritos diretamente da degravação da íntegra da reunião, periciada pela Polícia Federal:

Agruparei os trechos de acordo com temas.

Bolsonaro e o papel das Forças Armadas, em face das críticas sobre sua participação em manifestação pela volta do AI-5:

“Eu sou o chefe supremo das forças armadas. Ponto final. O pessoal tava lá, eu fui lá. Dia do exército. E falei algo que eu acho que num tem nada demais. Mas a repercussão é enorme. “Ó, o Al-5”. Cadê o Al-5? … não existe ato institucional no Brasil mais. É uma besteira. Artigo um, quatro, dois. É um pessoal que não sabe interpretar a Constituição.

Agora em cima disso fazer uma onda? A “vamos ouvir deputados, empresários”, seja lá o que for. Agora, quando a Câmara faz lá dentro uma homenagem a Che Guevara, a Mao Tse-Tung e tudo mais, não tem
problema nenhum. Quando o Partido Comunista do Brasil faz suas convenções e idolatram lá Fidel Castro, entre outros, não tem problema nenhum. Quando um coitado levanta uma placa de Al-5, que eu tô me lixando para aquilo, porque num num existe AI-5. Não existe. Artigo um, quatro, dois: nós queremos cumprir o artigo um, quatro, dois, todo mundo quer cumprir o artigo um, quatro, dois.

E havendo necessidade, qualquer dos poderes, pode, né? Pedir as Forças Armadas que intervenham pra reestabelecer a ordem no Brasil, naquele local sem problema nenhum. (…) E assim como a defesa faz uma nota muito boa dizendo que vai cumprir a Constituição, liberdade… dez! E não aceita golpe, dez! Também não aceita um contragolpe dos caras, porra!”

O Bolsonaro pós-coronavírus sinaliza o desejo de governar guiado pelas bandeiras mais caras a seus apoiadores:

“Quem não aceitar a minha, as minhas bandeiras, Damares: família, Deus, Brasil, armamento, liberdade de expressão, livre mercado. Quem não aceitar isso, está no governo errado.”

O oportunismo desregulatório do Ministro Meio Ambiente, Ricardo Salles:

“Nós temos a possibilidade nesse momento que a atenção da imprensa tá voltada exclusiva … quase que exclusivamente pro COVID, e daqui a pouco para a Amazônia, o General Mourão tem feito aí os trabalhos preparatórios para que a gente possa entrar nesse assunto da Amazônia… A oportunidade que nós temos, que a imprensa não tá … tá nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação…”

“Grande parte dessa matéria ela se dá em portarias e norma dos ministérios que aqui estão, inclusive o de Meio Ambiente. E que são muito dificcis, nesse aspecto eu acho que o Meio Ambiente é o mais difícil, de passar qualquer mudança infralegal… m termos de (…) instrução normativa e portaria, porque tudo que agente faz é pau no judiciário, no dia seguinte. (…) Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação regulatória que nós precisamos, em todos os aspectos.

“E deixar a AGU de stand by pra cada pau que tiver, porque vai ter, essa semana mesmo nós assinamos uma medida a pedido do ministério da Agricultura, que foi a simplificação da lei da mata atlântica, pra usar o código florestal. Hoje já tá nos jornais dizendo que vão entrar com ações judiciais e ação civil pública no Brasil inteiro contra a medida. Então pra isso nós temos que tá com a artilharia da AGU

A proposta de legalização dos cassinos e a resistência de Damares e da bancada evangélica:

Marcelo Álvaro Antônio, ministro do Turismo: “Eu acredito que o momento propício nesse planejamento da retomada [é] discutir os resorts integrados. Não é legalização de jogos, não é bingo, não é caça-niquel, … são resorts integrados. Obviamente, presidente, uma pauta que precisa ser construída (a Damares tá olhando com cara feia pra mim) com as bancadas da Câmara, tanto a evangélica, quanto a católica, mostrando ou desmistificando vários mitos que giram em torno disso. Nós ternos a possibilidade de atrair pelo menos 40 bilhões de dólares pro Brasil só de outorgas, de investimentos imediatos com essa pauta”.

Damares Alves (ministra dos Direitos Humanos): “Pacto com o diabo!”

Mais à frente na reunião, Guedes reitera o interesse nos cassinos: “Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se foder. Ô Damares. Damares. Deixa cada um … Damares. O presidente, o presidente fala em liberdade. Deixa cada um se foder do jeito que quiser. (…) Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se foder, pô!”

Mas Damares traça a linha divisória: “… se a CGU concordar. Se a CGU tiver como controlar a entrada e a saída do dinheiro. (…) Se não tiver como lavar dinheiro sujo lá.”

Aliás, o ministro da CGU, Wagner Rosário, não mencionou nenhuma palavra em toda a reunião.

preparada pra cada linha que a gente avança”.

Privatização do Banco do Brasil:

Paulo Guedes: “O Banco do Brasil é um caso pronto de privatização. É um caso pronto e a gente não tá dando esse passo. O senhor já notou que o BNDE e a Caixa que são nossos, públicos, a gente faz o que a gente quer. Banco do Brasil a gente não consegue fazer nada e tem um liberal lá. Então tem que vender essa porra logo”.

Provocado por Guedes, Rubem Novaes, presidente do BB, arremata, balbuciando: “Em relação (risos) à privatização, eu acho que fica claro que com o BNDES cuidando do desenvolvimento e com a Caixa cuidando da área social, o Banco do Brasil estaria pronto para um programa de privatização, né?”

Mas Bolsonaro desconversa duas vezes: “Isso aí só se discute, só se fala isso em vinte e três [2023], tá?”

A divisão entre Paulo Guedes (Economia) e Braga Netto (Casa Civil) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) sobre o Plano Pró-Brasil e os rumos da política econômica pós-covid:

Paulo Guedes: “Voltar uma agenda de trinta anos atrás, que é investimentos públicos financiados pelo governo, isso foi o que a Dilma fez trinta anos. (…) O governo quebrou! O governo quebrou! Em todos os níveis. Prefeitura, governador e governo federal. Então se a gente lançar agora um plano, é … todo o discurso é conhecido: “acabar com as desigualdades regionais”, Marinho, claro, tá lá, são as digitais dele. É bonito isso, mas isso é o que o Lula, o que a Dilma tão fazendo há trinta anos. (…) Se a gente quiser acabar igual a Dilma, a gente segue esse caminho. (…) Cadê o dinheiro do governo pra fazer isso? Num tem. Então quem tá sonhando, é sonhador. A gente aceita, politicamente a gente aceita.”

A resposta de Rogério Marinho: “O que tá acontecendo hoje no mundo, vai permitir de acordo com o FMI, que foi a previsão de uma semana atrás, de uma diminuição de quase três por cento do PIB mundial, e no caso do Brasil de mais de cinco por cento. Não tem paralelo. … Em situações extraordinárias, remédios extraordinários de forma circunstancial. (…) O que eu peço é que nós tenhamos aqui as mentes abertas. E que os dogmas, quaisquer que sejam eles, presidente, sejam colocados de lado nesse momento.”

A polêmica reunião ministerial de Bolsonaro em 22/04/2020. Foto: Marcos Corrêa/PR

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, se coloca como o membro mais ideologicamente engajado da equipe ministerial:

“Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF. E é isso que me choca. (…) Eu percebo que tem muita gente com agenda própria. Eu percebo que tem, assim, tem o jogo que é jogado aqui, mas eu não vim pra jogar o jogo. Eu vim aqui pra lutar. E eu luto e me ferro. Eu tô com um monte de processo aqui no comitê de ética da presidência. Eu sou o único que levou processo aqui.

(…) E fico escutando esse monte de gente defendendo privilégio, teta. Tendeu? É isso. Negócio. Empréstimos. A gente veio aqui pra acabar com tudo isso, não pra manter essa estrutura. E esse é o meu sentimento extremamente chateado que eu tô vendo essa oportunidade se perder.

(…) Eu sou, evidentemente, eu tô no grupo dos ministros que tá mais ligado com a militância. Evidente, porque eu era um militante. Eu tava militando de peito aberto, continuo militando.”

A visão de Paulo Guedes faz coro a Weintraub em relação às negociações com o Congresso Nacional:

“Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, como sua evocação é que realmente nós estamos todos aqui por esses valores. Nós tamos aqui por esses valores. Nós não podemos nos esquecer disso. Nós podemos conversar com todo mundo aqui, porque é o establishment, é porque nós precisamos dele pra aprovar coisa, mas nós sabemos que nós somos diferentes. Nós temos noção que nós somos diferentes deles. E quando eles cruzam a linha a gente solta a mão e sai andando sozinho. Enquanto eles tiverem no trilho, conosco, no caminho de fazendo as reformas que nós prometemos, nós tamo junto. Na hora que o cara soltou a mão e passou pro lado de lá, a gente deixa o cara ir sozinho e a gente continua sozinho e vai procurar outra conversa, em outro lugar”.

As críticas ao TCU e a necessidade de blindagem dos agentes públicos

Rubem Novaes, presidente do Banco do Brasil: “tem o Tribunal de Contas travando tudo, não é? Tribunal de Contas é, hoje em dia, é um … é uma usina de terror. (…) Quer dizer, se … se a gente faz alguma coisa tá arriscado a ir pra cadeia. Se não faz, é processado por inação, não é? Porque você não tomou as providências que tinha que ter tomado, então … então é … virou um terror isso.”

Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica: “Já estou sendo processado também, vamos nós dois juntos pra cadeia, por causa do auxílio emergencial. Sabe que que tem? Tem gente do TCU dizendo que a gente tá dando muito e tem gente dizendo que a gente tá dando pouco. Ferrou!”

Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente: “Não precisamos de Congresso. Porque coisa que precisa de Congresso também, nesse fuzuê que está aí, nós não vamos conseguir aprovar. Agora tem um monte de coisa que é só, parecer, caneta, parecer, caneta. (…) Sem parecer também não tem caneta, porque dar uma canetada sem parecer é cana. Então, isso aí vale muito a pena. A gente tem um espaço enorme pra fazer.”

O pragmatismo do comércio com a China: interesses econômicos x ideológicos:

Bolsonaro: “Então não queremos brigar com [chineses], zero briga com a [China]. Precisamos deles pra vender? Sim. Eles precisam também de nós. … Porque se não precisassem não estariam comprando a soja da gente não. Precisam. E é um negócio, pô. E devemos aliar com quem tem alguma afinidade conosco.”

Mais ao final da reunião, Paulo Guedes reforçou esse pensamento: “A China é aquele cara que cê sabe que cê tem que aguentar, porque pro cês terem uma ideia, pra cada um dólar que o Brasil exporta pros Estados Unidos, exporta três pra China”.

O tamanho da crise econômica e o impasse entre Bolsonaro e Paulo Guedes:

Bolsonaro sobre os efeitos econômicos da crise do coronavírus: “A desgraça que vem pela frente, eu acho que o Paulo Guedes tá sendo até legal, hein, Paulo Guedes? Eu não sou economista não. Vai ser uma porrada muito maior do que você possa imaginar. Não são apenas os informais. Eu acho que já bateu a dez milhões de carteira assinada, foi pro saco. E os governos estaduais não tem como pagar salário pros cara … não tem. Maio, metade dos estados não vai ter como pagar salário mais. A desgraça tá aí. Eles vão querer empurrar essa trozoba pra cima da gente, esse pessoal aqui do lado vai querer empurrar, e a gente vai reagir porque aqui não é saco sem fundo. Tá?”

Mas Guedes dá a receita para Bolsonaro evitar o impeachment: “Não tem jeito de fazer um impeachment se a gente tiver com as contas arrumadas, tudo em dia. Acabou! Não tem jeito.”

O recado aqui é claro: sem o apoio do mercado, o governo cai. E todos sabem que o mercado apoia Guedes.

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, alerta sobre a psicologia do medo e seus efeitos sobre a recuperação da economia:

“Primeiro, existe um consenso, hoje, é que o mundo privado tá com muito medo de tomar risco. Então, que não vai ter como ter uma saída rápida sem que o governo não entre, de alguma forma, tomando risco. Porque o mundo privado tá com medo de tomar risco pelo fator medo. (…) Se amanhã você permitir todo mundo ir num estádio de futebol ver um jogo, será que todo mundo vai sair de casa e vai?”

A ideia de Paulo Guedes de aumentar o recrutamento nas Forças Armadas para utilização em obras de engenharia do governo:

“Eu já tenho conversado com o ministro da Defesa, já conversamos algumas vezes. (…) Quantos jovens aprendizes nós podemos absorver nos quartéis brasileiros? Um milhão? (…) [De manhã] faz ginástica, canta o hino, bate continência. De tarde, aprende, aprende a ser um cidadão, pô! Disciplina, usar o tempo construtivamente, pô! É … voluntário pra fazer estrada, pra fazer isso, fazer aquilo. Sabe quanto custa isso? É duzentos reais por mês, um milhão de cá, duzentos milhões, pô! Joga dez meses aí, dois bi. Isso é nada!”

A ministra Damares Alves e as políticas públicas baseadas em evidências:

“Nós recebemos um governo que não tinha dados, os dados que nós tínhamos eram falsos, mentirosos. Um Brasil de achismo, um Brasil de talvez, ‘eu acho que é’, ‘talvez sim, talvez não’. Políticas públicas construídas até agora nessa nação em cima de talvez e de achismo”.

Mas logo depois a ministra deixa suas preferências ideológicas falarem mais alto do que as evidências científicas:  “Neste momento de pandemia a gente tá vendo aí a palhaçada do STF trazer o aborto de novo para a pauta; as mulheres que são vítimas do zika vírus vão abortar. E agora vem do coronavírus: será que vão querer liberar que todos que tiveram coronavírus poderão abortar no Brasil?”

 

A íntegra da transcrição do vídeo da reunião pode ser obtida aqui: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2020/05/laudo-digitalizado_220520201218.pdf