Dados e evidências sobre a injustiça do fundo eleitoral

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 02/12/2019.

 

Chega dezembro e o Congresso se apressa para aprovar o orçamento para 2020. Quando todos os brasileiros estão às voltas entre o fechamento do ano no trabalho e os preparativos para as festas natalinas, uma das principais atividades estatais – a definição de como se gastará o dinheiro que se prevê arrecadar no exercício seguinte – são tomadas com pouco acompanhamento da sociedade, abrindo margem para todo tipo de oportunismo.

Nas últimas semanas deputados e senadores se articulam para aumentar ainda mais o volume de recursos públicos que receberão para gastar nas eleições de 2020. Há quase dez anos tem sido assim. De 2010 para 2011 os parlamentares turbinaram o fundo partidário anual de R$ 280 milhões para R$ 400 milhões. Em 2014, às vésperas da decisão do Supremo de acabar com as doações de empresas, a tungada passou para R$ 900 milhões por ano. Como se não bastasse, em 2017 resolveram criar o fundo eleitoral, que em 2018 aportou mais R$ 1,7 bilhão para os partidos.

Nas próximas duas semanas, há quem aposte que o fundo eleitoral será multiplicado, podendo chegar a R$ 4 bilhões ou mais. É verdade que a democracia tem um custo, e fazer campanha num país de dimensões continentais como o Brasil tem um preço alto. Mas nossos parlamentares se abrigam neste argumento para, sem apoio algum em dados, elevar as barreiras à entrada na política brasileira e, assim, aumentar significativamente suas chances de permanecer no poder.

Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, na cerimônia de promulgação da reforma da Previdência. Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Nas eleições de 2018 os partidos destinaram R$ 1,014 bilhão de reais para a campanha dos 7.633 candidatos a deputado federal que tiveram suas candidaturas aceitas pela Justiça. No entanto, a distribuição desses recursos foi extremamente desigual, em variadas dimensões. E essas discrepâncias mostram muito sobre o funcionamento claudicante de nossa democracia, a falta de confiança da população na política e a crise de representatividade que estamos enfrentando.

Ao final da última legislatura, 413 deputados buscaram a reeleição. De acordo com os dados das prestações de contas ao TSE, esses parlamentares abocanharam R$ 483,3 milhões dos fundos eleitoral e partidário – ou 47,6% do total de recursos públicos disponibilizados para a disputa de vagas na Câmara. Isso dá, em média, R$ 1,2 milhão para cada incumbente. Os outros 7.220 desafiantes dividiram o restante do bolo, ficando com uma fatia média de R$ 74.800 cada um. Para um novato na política, imagine o que é entrar numa briga tendo como oponente alguém 16 vezes mais forte do que você.

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Mas estamos falando aqui de médias, e a realidade é muito mais complexa do que isso. A divisão do dinheiro bilionário dos fundos é atribuída aos dirigentes dos partidos, segundo seus próprios critérios. E quando analisamos a partilha ficam evidentes quem é que manda. No PSL, o deputado Luciano Bivar, sozinho, ficou com 30% do dinheiro destinado pelo seu partido às candidaturas a deputado federal em todo o país – e aí se depreende de onde vem a crise envolvendo o “dono” do partido e o clã presidencial. Mas Bivar não é o único. Levando em conta o total de recursos públicos recebidos pelos seus partidos para apoiar candidatos à Câmara dos Deputados, Marcelo Aro apropriou-se de mais de 25% no PHS, seguindo por Heloísa Helena (21% da Rede), Luís Tibé (quase 18% do Avante) e Renata Abreu (9,5% do Podemos).

Esses são os casos extremos, mas na distribuição dos fundos a regra é uma intensa concentração na mão dos líderes dos partidos nos seus respectivos Estados. Dirigentes, seus parentes e aliados mais próximos levam quase a totalidade do dinheiro, deixando muito pouco (ou nada) para a imensa maioria dos demais candidatos. E isso vale da extrema esquerda à direita – com exceção do Partido Novo, que tem como princípio não receber recursos públicos para bancar suas campanhas.

E não pense você que a decisão do TSE de obrigar os partidos a aplicar 30% dos fundos em candidaturas de mulheres torna as eleições brasileiras mais justas. Basta analisar os sobrenomes das candidatas e as somas recebidas de seus partidos. Flávia Arruda (DF), Elcione Barbalho (PA), Danielle Cunha (RJ), Cristiane Brasil (RJ), Luísa Canziani (PR), Marinha Raupp e Jaqueline Cassol (RO), Angela Amin (SC) e Dulce Miranda (TO), para ficar só em alguns nomes de esposas, ex e filhas de políticos tradicionais, receberam cada uma delas mais de R$ 2 milhões dos seus partidos em 2018.

E já que estamos falando de gênero, é bom não perder de vista que a política de financiamento limita as chances de renovação da política e acaba por reproduzir, na política, nossas imensas desigualdades sociais. Como pode ser visto no gráfico abaixo, na média um deputado de cor branca que busca a reeleição recebe quase 22 vezes mais mais dinheiro público do que uma candidata negra novata.

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Caso o aumento do fundo eleitoral seja aprovado, partidos como PSL e PT terão direito a mais de R$ 1,2 bilhão para distribuir entre seus membros até as eleições de 2022. As demais grandes siglas terão à sua disposição entre 500 milhões e 700 milhões de reais, o que explica seu apoio à medida. Com mais dinheiro e com a legislação tendo sido recentemente flexibilizada para permitir o uso desses recursos para diversos fins, tem-se um cenário propício à manutenção das estruturas de poder dos partidos, uma vez que as barreiras à entrada e à renovação na política foram elevadas – sem falar no risco de aumento de corrupção no uso dessa montanha de dinheiro.

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Diante de números tão assustadores, fico pensando como seria a configuração de nossa política caso fossem adotados critérios de transparência e democracia interna no âmbito de todos os partidos – como a realização de prévias e assembleias para decidir a divisão dos recursos do partido -, a redução drástica ou a eliminação dos fundos partidário e eleitoral e a imposição de limites baixos (como R$ 1 mil, por exemplo) para doações de pessoas físicas.

Essas medidas reduziriam drasticamente as barreiras à entrada na política brasileira para cidadãos interessados em contribuir para a melhoria da sociedade e nivelariam as condições de disputa com quem, muitas vezes por herança familiar, domina as estruturas partidárias. Se todos os partidos e candidatos tiverem que correr atrás dos seus eleitores não apenas para angariar seus votos a cada quatro anos, mas para conquistar também o seu bolso, teríamos um grande incentivo para aproximar partidos e agentes políticos do cidadão comum.

Num ambiente sem fundos bilionários de recursos públicos e sem as doações de milionários, talvez, na política brasileira, vencesse quem tivesse as melhores propostas.


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