Mercado ignora vantagens de uma política melhor

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 16/09/2019.

 

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a Itália teve 45 primeiros-ministros – quase o triplo do Reino Unido, que no mesmo período contou com apenas 16 chefes de governo, incluindo o controverso Boris Johnson. Traumatizada pelo fascismo de Mussolini e assombrada pelo comunismo que se alastrava do outro lado do Adriático, a nova República italiana se ergueu no pós-guerra apoiada num sistema político que estimulava o pluralismo partidário e a formação de grandes coalizões.

Em 1992, um caso de propina em um asilo estatal puxou o novelo de um grande esquema de corrupção que envolvia partidos de todo o espectro político (da Democracia Cristã ao Partido Socialista) e as maiores empresas estatais e privadas do país (Eni, Enel, Fiat e Ferruzzi), além de 4 ex primeiros-ministros e centenas de parlamentares. O esquema ficou conhecido como Tangentopoli (“a cidade da propina”) e foi um dos principais alvos da Operação Mãos Limpas.

A gravidade dos fatos apurados pela investigação abalou as bases da política italiana. Nas eleições gerais de 1994, os cinco principais partidos do país foram varridos do mapa. Com a velha ordem em descrédito, emergiu uma nova força: Silvio Berlusconi.

Por aqui, a legitimidade do sistema político brasileiro vem sendo questionada pela população desde pelo menos as manifestações de junho de 2013, que seguiram num crescendo até os atos pró e contra o impeachment de Dilma e desaguaram na polarização das eleições de 2018. Abertas as urnas, o resultado foi muito além das derrotas de figuras emblemáticas do establishment político brasileiro, como Romero Jucá, Edison Lobão, Eunício Oliveira e Garibaldi Alves.

No último pleito, os três partidos que dominaram a política nos últimos 30 anos viram seus votos migrarem para novas forças em seus nichos de atuação. Analisando a evolução dos votos para a Câmara dos Deputados entre 2014 e 2018, é possível perceber que, do centro para a direita, os 5,4 milhões de votos perdidos pelo MDB e os 5,2 milhões pelo PSDB equivalem ao crescimento de 10,6 milhões do PSL. À esquerda, boa parte da redução de 3,4 milhões de eleitores do PT encontrou abrigo no PDT e no PSOL (cada um deles recebeu um milhão de votos a mais no ano passado em relação às eleições anteriores).

A despeito desses claros sinais de insatisfação emitidos pelo eleitor, o sistema político brasileiro continua dando vazão a seu instinto de autopreservação. A exposição das entranhas do maior escândalo de corrupção da história não serviu para a adoção de nenhuma mudança legislativa capaz de reduzir os incentivos para desvios de recursos públicos para bolsos privados. Muito pelo contrário.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, comanda a votação do projeto que prejudica a transparência na política brasileira. Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados

Apenas neste ano, tivemos uma nova lei que inibe denúncias contra crimes eleitorais (Lei nº 13.834), uma anistia aos partidos que não destinaram 30% dos recursos para candidaturas femininas (Lei nº 13.831) e uma controversa lei de abuso de autoridade (Lei nº 13.869). Mas os passos mais ousados para uma ainda maior degeneração do sistema partidário serão dados nos próximos dias em Brasília.

Amanhã (17/09) o Senado vota em regime de urgência o PL 5.079/2019, um dos maiores retrocessos para a transparência do sistema partidário. A proposta, aprovada a toque de caixa na Câmara no dia 04/09 (ainda com o número de PL 11.021/2018), amplia enormemente a possibilidade de uso dos recursos públicos pelos diretórios, ressuscita a propaganda partidária (custeada por todos nós) no rádio e na TV, abre brechas contra a aplicação da Lei da Ficha Limpa, possibilita a elevação do já bilionário Fundo Eleitoral e ainda flexibiliza a contabilidade e o controle sobre gastos com consultorias, assessorias e serviços advocatícios. Para completar, o projeto ainda isenta de responsabilização os partidos e candidatos que não divulgarem suas contas na forma prevista em lei.

Na votação do projeto na Câmara, somente 6 partidos se posicionaram de modo unânime contrários à proposta (Novo, PSOL, PDT, Rede, Podemos e PMN). Quanto aos demais, observou-se uma correlação interessante: de modo geral, quanto mais dependentes de recursos públicos foram seus deputados na última eleição, maior o grau de apoio ao projeto. À frente do retrocesso, PT e PC do B deram as mãos ao Centrão (Republicanos, PL, PP) e ao DEM e ao MDB – o que prova que, ideologias à parte, o que vale mesmo é continuar parasitando recursos públicos para sobreviver.

Diante de todo o terremoto que abalou a política brasileira nesta década, chama a atenção como o mercado não se interessa pelo saneamento de nosso sistema político. E aqui novamente repetimos o que aconteceu na Itália. Nos últimos 10 anos, a economia italiana cresceu 7,6%, bem abaixo da alemã, com 31,3%, do Reino Unido (20,6%) e da França (18,1%). A falta de dinamismo econômico italiano tem múltiplos fatores, mas sem dúvida a incapacidade de reformar seu sistema político após a crise dos anos 1990 é uma das mais importantes. Esse é o preço que pagaremos por deixar tudo acabar em pizza.