Nas últimas semanas os Ministros do Supremo Tribunal Federal debruçaram-se sobre questões importantes que ganharam destaque da mídia e nas discussões cotidianas ultimamente: o Programa Mais Médicos, as biografias não autorizadas e a correção monetária das cadernetas de poupança durante os Planos Econômicos dos anos 1980 e 1990.
Além da repercussão social dessas matérias, essas três ações possuem outro ponto em comum – são exemplos da abertura do Poder Judiciário para ouvir a opinião de outros interessados, além das partes envolvidas, no julgamento dessas disputas.
Nas ações que discutem a constitucionalidade do Programa Mais Médicos (aqui) e dos dispositivos do Código Civil que tratam das biografias não autorizadas (aqui) o STF valeu-se de um procedimento instituído há relativamente pouco tempo: as audiências públicas com especialistas e profissionais com conhecimento técnico sobre a matéria.
Já no julgamento dos recursos reivindicando a atualização dos índices de correção monetária das cadernetas de poupança durante a implementação dos Planos Econômicos Cruzado (1986), Bresser (1989), Verão (1989), Collor I (1990) e Collor II (1991), outra forma de intervenção de terceiros interessados foi permitida: os chamados amicus curiae –ou amigos da Corte, em bom português (veja aqui).
A concepção desses institutos processuais deve-se a um dos maiores juristas alemães contemporâneos, Peter Häberle, que em 1975 publicou o livro “Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Constituição para a Interpretação Pluralista e ‘Procedimental’ da Constituição”, traduzido em português pelo Min. Gilmar Ferreira Mendes em 1997.
Nesta obra, Häberle critica a visão tradicional que atribui aos juízes das Cortes Constitucionais (no Brasil, o STF) o monopólio da interpretação constitucional. Para ele, os intérpretes oficiais da Constituição tendem a ser orientados apenas pela visão das partes e pela teoria, com pouco conhecimento das suas implicações práticas. Mas como a realidade é bastante complexa, com possibilidades e alternativas diversas (uma “realidade pluralista”, nos dizeres do autor), as decisões podem ser muito melhores se durante os julgamentos for dada voz a outros agentes que detenham conhecimento técnico ou mesmo possam sofrer as consequências futuras daquela decisão.
Peter Häberle propõe então que a interpretação da Constituição seja entendida como um processo aberto, mediante a criação de procedimentos para ampliar a participação democrática de outros intérpretes nos julgamentos de matérias constitucionais.
Ao defender que o debate público das ações constitucionais sejam ampliado pela incorporação da visão de especialistas e representantes da sociedade civil, Häberle acredita que estará sendo atingido um duplo objetivo: evitar o livre arbítrio da interpretação dos juízes e obter uma maior legitimação das suas decisões.
Em termos concretos, Häberle sugere a realização de audiências e intervenções de terceiros nos processos sob análise da Corte Constitucional como forma de concretizar o que ele entende como uma “sociedade aberta de intérpretes constitucionais”.
A teoria de Peter Häberle influenciou diretamente o STF a buscar, junto ao Congresso Nacional, a introdução dessas inovações na legislação que trata do processamento das ações constitucionais submetidas ao seu julgamento.
Nessa direção, as Leis nº 9.868/1999 e nº 9882/1999, que regulam o trâmite da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito constitucional, incorporam algumas das propostas por Häberle. Entre elas estão a possibilidade de realização de audiência pública para ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria em discussão e a participação dos amigos da corte.
A possibilidade de realização de audiências públicas reconhece que a interpretação constitucional está aberta a diferentes visões e pontos de vistas. Mais do que isso, afirma que não cabe somente às partes apresentarem suas divergências, mas sim que é dever dos julgadores procurar tomar conhecimento de todas as dimensões do problema, dando oportunidade para ouvir todos aqueles que tenham interesse em dar sua contribuição ao deslinde da questão posta.
Embora as audiências públicas tenham recebido previsão legal em 1999, apenas em 20/04/2007 foi realizada a primeira, convocada pelo relator Min. Ayres Britto no julgamento da ADI nº 3.510, que discutia a constitucionalidade de dispositivos da Lei nº 11.105/2005, que disciplina as pesquisas com células-tronco embrionárias. A partir daí, o STF já realizou 13 audiências públicas, sobre assuntos que vão das políticas de cotas nas Universidades ao financiamento de campanhas eleitorais (a relação completa e os documentos relativos a cada uma delas encontra-se aqui).
No mesmo conjunto de inovações destinado a “arejar” a interpretação constitucional pelo STF, as mesmas leis citadas acima previram que outros interessados apresentem documentos para convencimento dos Ministros (os famosos “memoriais”) e tenham voz nas sessões de julgamento por meio de sustentação oral. A participação dos amicus curiae tornou-se, deste então, bastante comum nos julgados do STF.
A importância do pensamento de Peter Häberle na concepção desses instrumentos, que indubitavelmente tornaram o STF mais aberto às opiniões da sociedade, é amplamente reconhecida por esse Tribunal. Trazemos, como exemplo, um excerto de reiteradas decisões monocráticas do Ministro Gilmar Mendes, que realiza um tributo à obra de Häberle ao deferir a participação de diversas entidades como amicus curiae em processos diversos:
“A propósito, Peter Häberle defende a necessidade de que os instrumentos de informação dos juízes constitucionais sejam ampliados, especialmente no que se refere às audiências públicas e às “intervenções de eventuais interessados”, assegurando-se novas formas de participação das potências públicas pluralistas enquanto intérpretes em sentido amplo da Constituição (cf. Häberle, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, 1997, p. 47-48).
Ao ter acesso a essa pluralidade de visões em permanente diálogo, este Supremo Tribunal Federal passa a contar com os benefícios decorrentes dos subsídios técnicos, implicações político-jurídicas e elementos de repercussão econômica que possam vir a ser apresentados pelos “amigos da Corte”.
Essa inovação institucional, além de contribuir para a qualidade da prestação jurisdicional, garante novas possibilidades de legitimação dos julgamentos do Tribunal no âmbito de sua tarefa precípua de guarda da Constituição.
(…)
Entendo, portanto, que a admissão de amicus curiae confere ao processo um colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias constitucionais em um Estado Democrático de Direito”. (Min. Gilmar Mendes, em decisão monocrática que admitiu a participação de amicus curiae na ADI 2.548/PR, julgada em 18/10/2005. O mesmo texto foi replicado nas decisões monocráticas das ADIs 3.599/DF, 3.317/RS, 3.494/GO, 3.484/RN, 3.660/MS, 3.580/MG, 3.677/RO,  3.484/RN, 3.660/MS, 3.614/PR, 3.538/RS, 2.682/AP, 2.441/GO, 3.998/DF, 3.469/SC, 3.842/MG e 2.316/DF, além da ADPF 97/PA).
Essa disposição do Supremo Tribunal Federal em ampliar a participação da sociedade civil em seus julgamentos principais, ampliando o debate público e democrático, constitui um exemplo a ser seguido pelos Poderes Executivo e Legislativo. Como ficou evidente nas manifestações de junho, a sociedade demanda ser ouvida – e cumpre ao Poder Público criar os canais institucionais para captar sua voz e incorporá-la em suas políticas públicas.