É incontrolável. A cada episódio que eu assisto de House of Cards, acompanhando as peripécias de Francis Underwood em sua busca pelo poder, pululam ideias, paralelos e comparações com o meu tema de tese. Afinal de contas, como ele bem disse, no seu característico tom de confissão para o telespectador: “Dinheiro é uma mansão em Sarasota [uma cidade balneária da Flórida], que começa a desmoronar após dez anos. Poder é o velho edifício de pedra, que se mantém de pé por séculos. Não respeito quem não sabe distinguir os dois” [www.youtube.com/watch?v=LYnnm3L12fA].

House of Cards trata do poder em todos os seus capítulos, mas especialmente na primeira e na terceira temporadas afloram os conflitos entre o Executivo e o Legislativo na negociação de projetos de lei e programas governamentais. Tanto na elaboração e votação do projeto de reforma educacional (primeira temporada), quanto no polêmico programa de geração de empregos AmWorks (terceira temporada), as relações entre o Presidente da República e deputados e senadores são postas à prova – permeadas por interesses eleitorais, corporativos e corporativistas que tentam influenciar o processo.

E isso tem muito a ver com minha tese, que analisa como a legislação brasileira é concebida, tentando identificar evidências de como nossas instituições favorecem a aprovação de normas que favorecem grupos específicos, que valem-se dos meandros da política para passar projetos que os beneficiem – em detrimento do restante da sociedade, que não dispõe dos mesmos meios.

Na primeira postagem dessa nova fase do Leis e Números [https://leisenumeros.wordpress.com/2015/03/13/house-of-cards-e-a-autoria-das-leis-no-brasil/], demonstrei como o Poder Executivo é um agente importante na definição da pauta legislativa no Brasil – e como esse protagonismo deve ser levado em conta ao analisar nossa produção legislativa.

O amigo Leandro Novais, professor de Direito Econômico da UFMG e grande interlocutor nos assuntos da minha tese, depois de analisar os dados que apresentei, me enviou um email chamando a atenção para a incrível prevalência de assuntos relacionados ao funcionamento do Estado na produção legislativa brasileira, como demonstra o gráfico:

Gráfico assuntos

Como bem apontou o Leandro, as categorias “tributos e benefícios fiscais”, “estrutura administrativa, criação de cargos e remuneração de servidores” e “leis orçamentárias” – todas de certa forma relacionadas ao funcionamento do Estado – representam mais de 60% de todas as leis aprovadas nos últimos 20 anos no Brasil. Desprezando-se as leis simbólicas, sobraria apenas a categoria “Outros” para tratar da regulação social. Questões de direito civil, direito trabalhista, direito penal, direito econômico, etc., que tratam de direitos e deveres dos cidadãos e empresas, seriam responsáveis por apenas 26,3% das leis aprovadas no Brasil nas duas últimas décadas – um número bastante reduzido frente à quantidade de conflitos a pacificar numa sociedade complexa e desigual como a brasileira.

Instigado por essa observação, decidi então descer a fundo na análise e verificar sobre o que trata essa categoria “Outros Assuntos”. E a conclusão, infelizmente, é que nela ainda estão presentes muito assuntos próprios do funcionamento do Estado.

Como demonstra a tabela abaixo, normas de Direito Administrativo, Finanças Públicas, Programas Governamentais, inclusão de rodovias no Plano Nacional de Viação e ações humanitárias para outros países – que são típicas do funcionamento estatal – têm presença acentuada nessa categoria “Outros Assuntos”.

Tabela Outros Assuntos

Eliminando esses assuntos, portanto, temos que menos de 20% das leis aprovadas no Brasil nos governos de FHC a Dilma trataram de assuntos diretamente relacionados ao dia a dia de pessoas e empresas.

Essa constatação lança luz sobre um aspecto relevante para compreender como as leis são elaboradas no Brasil: com uma massacrante predominância de assuntos relacionados ao funcionamento do Estado, sobra pouco espaço para o Poder Legislativo, enquanto suposto canalizador das demandas da sociedade, emplacar projetos que impactem a vida de seus representados.

Procurando aprofundar a análise, decidi então coletar dados sobre o tempo de tramitação dos projetos de lei e medidas provisórias que se enquadravam nessa categoria “Outros Assuntos”, para a qual o Leandro chamou a atenção.

Depois de computar o tempo entre a data de apresentação do projeto no Congresso e a data em que efetivamente virou lei para todas as 1.082 leis ordinárias classificadas como “Outros Assuntos”, cheguei ao seguinte gráfico que calculou o tempo médio de tramitação segundo o autor da proposição:

Gráfico tempo médio

Como seria de se esperar, as MPs têm uma tramitação expressa: em média, em 228 dias elas foram aprovadas pelo Congresso. Já os projetos de lei ordinários têm uma gradação em relação ao seu prazo de tramitação: se propostos pelo Poder Executivo, são mais bem rápidos (906 dias) do que os projetos de autoria de deputados (1.702 dias) ou de senadores (1.966 dias).

Resumindo a história: nos últimos 20 anos, (i) a pauta de votações do Congresso foi dominada por projetos propostos pelo Presidente da República; (ii) a maior parte dos projetos aprovados tinha como objeto assuntos próprios da estrutura e do funcionamento do Estado; e (iii) projetos de lei propostos pelo Presidente da República têm uma tramitação significativamente mais rápida do que aqueles de autoria de deputados e senadores.

Essas conclusões são bastante interessantes para entender os incentivos colocados para os grupos de interesses na concepção das leis no Brasil.

A primeira delas é que parece evidente que, do ponto de vista de determinado grupo de interesse (um setor industrial, um sindicato de trabalhadores, um grupo de ONGs), atuar junto ao Poder Executivo parece ser o caminho mais proveitoso, pois é ele quem dita o ritmo da agenda no Legislativo, tanto em termos de número de projetos aprovados, quanto pelo menor tempo de tramitação.

No entanto, como vimos, o Poder Executivo depende sobremaneira do Congresso Nacional para aprovar leis que o autorizem a “rodar a máquina” estatal: para alterar o orçamento anual, para criar órgãos e cargos públicos, para reajustar a remuneração de servidores, para alterar tributos, etc. Sendo assim, deputados e senadores têm a faca e o queijo na mão para barganhar a aprovação desses inúmeros projetos. E nessa negociação os grupos de interesse podem fazer valer sua influência sobre os parlamentares e conseguir pendurar no projeto em questão alguma emenda que atenda a seu interesse.

Em outras palavras, o Poder Executivo dita a agenda, mas torna-se refém do Parlamento porque depende de sua anuência para fazer a máquina rodar. E é nesse contexto que os grupos de interesse atuam para a aumentar a probabilidade de ver seu pleito atendido.

É diante dessa premissa que estou mergulhando na coleta de dados sobre a tramitação de projetos de lei, medidas provisórias e decretos nos últimos meses. A ideia é extrair elementos que caracterizem melhor esse jogo entre Executivo e Legislativo na elaboração das leis no Brasil, procurando identificar como os grupos de interesse se beneficiem de uma estrutura institucional em que vicejam os Francis Underwoods do Planalto Central.



 

Obs 1: Saíram na imprensa duas análises que complementam minha visão, exposta na postagem anterior, sobre a fraqueza do atual governo na condução legislativa: http://www.valor.com.br/cultura/3965324/regimes-politicos-e-impeachment e http://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/20/politica/1426892297_467191.html. Obrigado, Leandro Novais e Nilson Figueiredo!

Obs 2: Como disse nas postagens anteriores, esta é uma análise preliminar dos resultados da minha pesquisa de tese. Suas críticas, comentários e sugestões serão muito úteis para aprimorar meu trabalho.


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