Incoerência do STF afeta Lei de Responsabilidade Fiscal

Por Bruno Carazza

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 03/06/2019.

 

Em 2012 o prefeito de Ipatinga/MG, às voltas com a deterioração das finanças de seu município, baixou o Decreto nº 7.247, que reduzia em 25% a jornada de trabalho dos servidores, com proporcional diminuição de seus rendimentos. Tratava-se de medida temporária, tomada em estrita observância ao que determina a Lei de Responsabilidade Fiscal em seu art. 23: se os municípios ultrapassarem o limite de 54% da receita corrente líquida com despesas de pessoal, devem implementar medidas para normalizar a situação em dois quadrimestres, sendo facultada a redução temporária da carga horária dos servidores.

O tiro, no entanto, saiu pela culatra. Indignados com a medida, muitos servidores entraram na Justiça, e ao final do processo o prefeito não só teve que revogar o decreto, como foi obrigado a pagar o salário integral a seus funcionários, mesmo que eles tenham trabalhado duas horas a menos por vários meses. O fundamento da decisão judicial estava no fato de que o Supremo Tribunal Federal, em 2002, havia concedido uma liminar suspendendo a aplicação do art. 23 da LRF.

Na próxima quinta-feira, 06/06, espera-se que essa novela chegue finalmente ao fim. Estão na pauta do Supremo oito processos que questionam a constitucionalidade de diversos dispositivos da LRF. Do ponto de vista da formação de uma cultura de austeridade quanto às contas públicas brasileiras, a autoria dessas ações diz muito sobre como nos metemos na atual crise fiscal.

Ministro Alexandre de Moraes, relator das ações diretas de inconstitucionalidade que questionam a Lei de Responsabilidade Fiscal. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.238, aquela que impediu a prefeitura de Ipatinga de aplicar a lei para colocar suas finanças em dia, foi proposta por PT e PCdoB, dois partidos que, não por acaso, estiveram à frente da coalizão que concebeu a nova matriz econômica – um experimento de política pública que transformou um superávit primário de quase 2% do PIB em 2012 num déficit de 2,5% em 2016.

Outro grupo de ações foi pedido por associações de servidores públicos, como membros do Ministério Público (Conamp) e dos Tribunais de Contas (Atricon). Ambas se revoltam contra os dispositivos da LRF que estabelecem limites de despesas de pessoal para seus respectivos órgãos. Por trás da defesa do princípio da independência dos Poderes, obviamente, esconde-se o interesse corporativo de não se sujeitar a tetos sobre seus rendimentos e outros benefícios remuneratórios.

Por fim, outro protagonista nesse conjunto de ações contra a responsabilidade fiscal é o Estado de Minas Gerais. À época da aprovação da LRF, tanto o governador, Itamar Franco, quanto o presidente da Assembleia Legislativa, Anderson Adauto, movimentaram a máquina judiciária para não se sujeitar aos limites impostos pela nova lei. As origens da atual crise fiscal mineira, cujo governo há meses parcela o pagamento de servidores públicos e atrasa o repasse de bilhões aos municípios do Estado, tem raízes profundas, portanto.

Na próxima quinta-feira o STF pode finalmente referendar a constitucionalidade da Lei de Responsabilidade Fiscal e dotar União, Estados e municípios de velhos instrumentos para, pelo menos, conter a sangria nas suas contas públicas. Porém, engana-se quem acredita que isso será suficiente.

Uma lei deve ter dentes, diz o velho ditado. Além de uma série de princípios e limites prudenciais, a Lei de Responsabilidade Fiscal conta com sanções para quem os extrapolar. Uma das mais importantes travas da LRF é aquela que estabelece que os entes federativos que não retornarem aos tetos das despesas de pessoal ficam impossibilitados de receber transferências voluntárias (como convênios com o governo federal, por exemplo), obter garantias para empréstimos e contratar operações de crédito.

A jurisprudência do STF, porém, é totalmente leniente quanto à aplicação desse dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal. Existem dezenas de decisões individuais de Ministros concedendo liminares para que Estados e municípios, mesmo tendo descumprido os limites legais, continuem tendo acesso a recursos e obtendo empréstimos que alimentam seus déficits.

As cautelares concedidas pelos Ministros do STF baseiam-se em três princípios. O primeiro deles é o devido processo legal, segundo o qual Estados e municípios só poderiam ser penalizados depois de concluídas as tomadas de contas especiais para apurar o descumprimento da LRF – processo que pode levar anos, dada a morosidade de julgamento dos Tribunais de Contas.

Além disso, o Supremo valoriza sobremaneira a chamada “intranscendência das sanções”, entendendo que os Executivos municipais ou estaduais não podem ser penalizados por excessos de gastos nos seus respectivos poderes Legislativo, Judiciário, Ministério Público ou até mesmo empresas estatais. Por fim, o Supremo quase sempre invoca o princípio da continuidade do serviço público para invalidar qualquer medida que interrompa o repasse de recursos para governos estaduais ou municipais, mesmo que eles estejam descumprindo a lei ou diante de fundamentadas evidências de mau uso desses recursos.

Por meio de uma exagerada reverência a esses princípios, tidos como dogmas que não podem ser relativizados diante de números e fatos irrefutáveis, o Supremo acaba plantando as sementes de uma crise social que já se manifesta em grande parte do país. Ao suspender, no varejo de suas liminares, a aplicação imediata de sanções contra Estados e municípios que descumprem a LRF, o STF acaba incentivando a irresponsabilidade fiscal que, num futuro próximo, levará ao colapso dos serviços públicos na saúde, na educação e na segurança pública.

Não se trata de pedir o fechamento do Supremo, como muitos que foram às ruas o fizeram. Mas precisamos urgentemente de maior racionalidade e rigor nas decisões de nossa Corte máxima contra aqueles que descumprem a Lei de Responsabilidade Fiscal.