Os recentes protestos realizados nas últimas semanas em todo o Brasil tiveram como estopim o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo (os famosos R$ 0,20). Como resposta às manifestações – que rapidamente passaram a ter uma diversidade incrível de reivindicações – muitos municípios reduziram os valores das passagens, à custa de isenções de impostos municipais (ISS), mas também estaduais e federais (veja a MP 617/2013). No entanto, os problemas dos transportes públicos em nossos municípios vão muito além do preço – ou, parafraseando os cartazes das passeatas, “não é só por 20 centavos”.

 

Um excelente trabalho recentemente publicado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea, fundação pública ligada à Presidência da República, apresenta considerações importantes sobre o transporte público no Brasil. A nota técnica “Tarifação e Financiamento do Transporte Público Urbano” (aqui) levanta interessantes questões que têm passado ao largo dos debates sobre o tema. Trocando em miúdos, esses são os seus principais pontos:

 

1)      De 2000 a 2012 a inflação brasileira, medida pelo IPCA, subiu 125%. Porém, no mesmo período as tarifas de transporte público cresceram 192%, enquanto as despesas com veículos próprios (incluindo o valor dos veículos e sua manutenção) foram elevadas em apenas 44%.

 

2)      De acordo com a metodologia de remuneração na maior parte dos municípios brasileiros, a elevação das tarifas no Brasil é resultado de uma dinâmica de aumento dos custos do sistema de transporte e de redução do número de passageiros transportados.

 

3)      No lado dos custos, o principal vilão foi o preço do diesel, que subiu mais de 129% acima da inflação no período. Esse combustível representa em torno de 22% a 30% dos custos do transporte. No mesmo período, os salários e encargos trabalhistas, que respondem por 40% a 50% dos custos, praticamente acompanharam a inflação.

 

4)      Pelo lado da demanda, estudos revelam que o número de passageiros transportados no transporte público foi reduzido em mais de 20% desde 2000, como resultado principalmente da política governamental de estímulos à venda de automóveis.

 

5)      Com a intenção de estimular a economia, as reduções de impostos e os incentivos ao crédito para a compra de veículos geram efeitos indesejados (as chamadas “externalidades negativas”, em economês) como congestionamentos, que afetam inclusive a operação do transporte público, e o aumento da poluição atmosférica.

 

6)      O aumento das tarifas de transporte público prejudica sobremaneira as parcelas mais pobres da população. Em 2009, os gastos com transporte público respondiam por 3,7% da renda média das famílias brasileiras; para os 10% mais pobres, porém, o comprometimento da renda era de 11,7%.

 

A resposta dos governos federal, estaduais e municipais para os protestos contra as tarifas de transporte público foi a concessão de isenções tributárias para o setor. Embora os tributos correspondam, de acordo com os estudos do Ipea, a uma parcela de 4 a 10% do custo de operacionalização do transporte público, o alívio concedido pelos governos está longe de representar a solução definitiva para o problema.

 

Em primeiro lugar, porque a desoneração tributária para o transporte afeta a execução orçamentária de outras políticas públicas. Como o cobertor é curto, cobre-se o usuário de transporte público (com uma tarifa mais baixa), mas deixam-se desprotegidas outras parcelas da população que eram beneficiárias de políticas custeadas pelos tributos que incidiam sobre o faturamento das empresas concessionárias (educação, saúde, etc.).

 

Mas a grande questão é que o desconto na tarifa de ônibus posterga um debate mais amplo sobre a qualidade da regulação do setor, que tem direta influência na qualidade dos serviços prestados e no valor da tarifa. E é o próprio estudo do Ipea que recomenda:

 

“Para que traga benefícios à população, a desoneração do setor de transporte público deve ser condicionada à contrapartida das empresas para redução das tarifas e melhoria da qualidade dos serviços. Isso coloca em questão os desafios da regulação do setor. É importante que haja transparência dos contratos e dos parâmetros de operação e custos do sistema e um desenho de incentivos adequado à eficiência do sistema” (p. 8).

 

No recente episódio de ocupação da Câmara Municipal de Belo Horizonte por manifestantes, era esse o tema que estava em pauta. O Plenário da Câmara rejeitou duas emendas ao PL nº 417/2013 (ver aqui o conteúdo das propostas, os pareceres das comissões e os votos individualizados de cada vereador) que previam a publicidade das planilhas de custos das concessionárias de transporte e o repasse integral das isenções tributárias para o valor da tarifa.

 

O “x” da questão, portanto, é a regulação do serviço de transporte público em nossas cidades, que tem custo elevado e baixa qualidade. E um dos componentes centrais para inverter essa situação é oxigenar os mecanismos de regulação com maior participação popular.

 

Muito oportunamente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE publicou neste ano a pesquisa Perfil dos Municípios Brasileiros 2012, em que levanta informações junto a todas as prefeituras municipais sobre diversos aspectos da gestão e da estrutura dos municípios (o texto base e as tabelas encontram-se aqui).

 

A pesquisa do IBGE revela que 2.114, dos 5.565 municípios brasileiros (ou seja, 38%), possuem sistemas de transporte público baseados em ônibus. No entanto, apenas 210 (ou seja, 10% deles) possuem um Plano Municipal de Transportes – o que demonstra uma total ausência de planejamento sobre o funcionamento do sistema.

 

No que diz respeito à participação popular, são 357 os municípios brasileiros que dispõem de um Conselho Municipal de Transportes. Isso representa 17% do total de cidades que possuem sistemas de ônibus. Tomando apenas os municípios com mais de 100.000 habitantes, a situação é um pouco melhor, mas ainda decepcionante: menos da metade (47,9%) das grandes cidades brasileiras têm esses organismos de representação popular nas políticas de transporte. A propósito, Belo Horizonte não possui um Conselho Municipal de Transportes.

 

É importante notar, porém, que a simples existência de um Conselho Municipal de Transportes, ainda que necessária, não é suficiente para garantir maior interferência do público na definição dos destinos do transporte públicos em nossas cidades. O IBGE apurou também que mais de 20% dos municípios que possuem Conselhos (74, de um total de 357) não realizaram sequer uma reunião durante o ano de 2012.

 

Esses números revelam, portanto, que temos muito a avançar para melhorar a qualidade no transporte público em nossos municípios. A mobilização popular alcançou o primeiro objetivo de reverter os reajustes em diversos municípios, mas os vícios do sistema não foram atacados. Ainda é preciso construir canais institucionalizados de participação e tornar os já existentes efetivos, para então ampliar o debate e discutir as medidas regulatórias necessárias para reduzir os custos e melhorar a qualidade da prestação dos serviços.

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