No final de 2014 faleceu o cantor Joe Cocker, aos 70 anos de idade. Entre os inúmeros feitos de sua longa carreira, na minha opinião o maior deles foi ter gravado uma canção dos Beatles muito melhor do que o próprio conjunto de Liverpool. A versão de Joe Cocker para With a Little Help from my Friends – tema do igualmente memorável seriado Anos Incríveis – para mim é definitiva, e supera em muito a original, do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (é só conferir a apresentação ao vivo em Woodstock para comprovar).

Esta introdução serve para contextualizar dois aspectos que eu espero explorar aqui hoje. O primeiro é um agradecimento aos colegas que, após a última postagem, incentivaram a minha pesquisa de doutorado e apresentaram questões muito relevantes que merecem ser investigadas mais a fundo. Essa ideia de publicar e discutir paulatinamente os resultados da pesquisa, à medida em que eles são produzidos, certamente resultará numa tese melhor, mais embasada tecnicamente. “Com uma ajudinha de meus amigos”, espero fazer um trabalho mais útil para entender o processo de elaboração das leis no Brasil.

Dito isto, estive refletindo sobre a atual crise política por que passa o governo Dilma Rousseff e, a partir do ponto levantado pelo Wagner Artur Cabral na postagem anterior (aqui), resolvi abrir os dados da tabela publicada na última postagem para verificar o protagonismo dos sucessivos Presidentes da República em propor e aprovar leis de seu interesse.

Como bem apontou o Wagner, o padrão de dominância do Poder Executivo na aprovação das leis federais mudou ao longo dos últimos governos. Como demonstram os dados da tabela abaixo, nota-se uma clara tendência de queda no segundo mandato do presidente Lula e no primeiro mandato de Dilma, em comparação com as médias dos governos FHC I, FHC II e Lula I.

Tabela Leis

Essa perda de “poder” do Presidente na agenda legislativa do Congresso também pode ser comprovada analisando os números de edição das medidas provisórias. Esse tipo especial de norma – criada pelo Poder Executivo, com força de lei desde o primeiro dia de publicação, mas que pode ser derrubada pelo Congresso em 120 dias e perder os seus efeitos – tem sido utilizado com bastante frequência pelos Presidentes da República desde a Constituição de 1988. Em bom português, é uma espécie de atalho de que o Presidente dispõe para editar uma norma que ele considera “relevante e urgente” sem a aprovação prévia do Congresso.

Como as medidas provisórias têm requisitos muito frouxos (os conceitos de “relevância” e “urgência” se amoldam ao gosto do freguês), há quase um consenso de que o Poder Executivo abusa de sua utilização, apropriando-se assim de uma prerrogativa que é, por excelência, dos deputados e senadores: fazer leis.

Em função das críticas às medidas provisórias, o Congresso aprovou uma emenda à Constituição em 2001 (EC nº 32/2001), que alterou o seu rito de tramitação com o objetivo de conter esses abusos.

Para analisar o protagonismo legislativo dos Presidentes da República sob a dimensão das medidas provisórias, elaborei a tabela abaixo. Para tornar os dados comparáveis entre si, computei apenas as medidas provisórias editadas após a promulgação da EC nº 32/2001.

Tabela MPs

A partir da leitura da terceira coluna da tabela, observamos que a frequência de edição das MPs vem caindo ao longo do tempo. Enquanto FHC emitiu uma nova MP a cada 5 dias (!!!!), Dilma emite uma nova MP a cada 10 dias, em média [como existem assuntos urgentes neste país, não???].

Para medir como cada Presidente conseguiu fazer valer a sua vontade e ver as suas MPs serem ratificadas pelo Congresso, elaborei dois indicadores. O primeiro, na quinta coluna, mede a taxa de sucesso na aprovação de uma MP no Congresso. Para isso, apenas dividi o número de MPs aprovadas pelo número de MPs editadas ao longo do mandato presidencial. Podemos ver que essa taxa, no governo Dilma, é de quase 70% – um número alto, mas inferior a índices superiores a 80% nos governos FHC e Lula.

O segundo indicador é mais restritivo: mostra a taxa de sucesso relativo do Presidente ao editar MPs. Nesse item não estou apenas interessado no número de MPs aprovadas pelo Congresso, mas sim o de MPs aprovadas sem quaisquer mudanças (as famosas “emendas”) aprovadas pelos parlamentares. Sob esse prisma, novamente o governo Dilma mostra-se mais “fraco” que os demais. Enquanto FHC II conseguiu aprovar sem emendas mais de 70% de suas MPs, Dilma Rousseff alcançou um percentual de apenas 21,8%. Em outras palavras, para ver suas MPs aprovadas pelo Congresso, Dilma teve que ceder mais e acatar as mudanças propostas – ou exigidas – pelos deputados e senadores.

Esses dados ajudam a entender o atual momento político e serão muito importantes para o desenvolvimento da minha tese. É importante notar que a queda de protagonismo do Poder Executivo na agenda legislativa do Congresso coincide com o segundo mandato do presidente Lula e agrava-se no governo Dilma, justamente quando o PMDB torna-se declaradamente um “sócio” do PT no poder. Na minha leitura, é bastante emblemático perceber que, em nome da tão falada governabilidade, temos um governo que se mostra cada vez mais fraco, quando comparado com os anteriores (FHC e Lula I). Com a ajuda de amigos assim, quem precisa de inimigos?

Para a tese temos aí alguns pontos de pesquisa muito bem levantados pelo amigo Nilson Figueiredo Filho no post anterior. Dada a relevância das medidas provisórias e a crescente tendência do governo em ceder nas negociações para sua aprovação, a autoria e o teor das emendas parlamentares assume um papel central para checar de que forma os grupos de interesse influenciam a produção legislativa via MPs. Ou seja: há evidências de que grupos induzem parlamentares a não apenas elaborar projetos legislativos, mas também a propor emendas que atendam a seus interesses?

Como argumenta o Nilson, esse fenômeno da influência dos grupos torna-se ainda mais importante frente ao fortalecimento, observado nos últimos anos, das chamadas bancadas suprapartidárias (bancadas da bala, dos ruralistas, dos ambientalistas, dos evangélicos, etc.). A atuação dessas bancadas na tramitação dos projetos de lei e medidas provisórias passou a ser decisiva em muitos casos, e é preciso pesquisar quem financia esses parlamentares e como eles atuam no jogo legislativo para elucidar como as leis são feitas no Brasil.

Para responder a essas perguntas, tenho que mergulhar na coleta e análise de dados sobre as tramitações das MPs. Espero apresentar resultados em breve.



 

Nota: A análise acima é uma reflexão ainda preliminar sobre achados da pesquisa de tese (veja as explicações em http://leisenumeros.blogspot.com.br/2015/03/rumo-tese-de-doutorado.html). Como dito acima, comentários, críticas e sugestões são muito bem vindos! With a little help from my friends, espero melhorar o resultado final da minha tese.


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