Enap: Economia política baseada em dados | Frontend

A transparência no setor público vai além do simples acesso aos dados. É preciso saber como utilizá-los para poder gerar análises mais completas do cenário político e econômico. No próximo FronTend, convidamos o professor do Ibmec, da Fundação Dom Cabral e colunista do Valor Econômico, Bruno Carazza.

Bruno mostrará como os dados sobre financiamento de campanhas, tramitação legislativa e votações no Congresso, podem nos ajudar a entender melhor o funcionamento do sistema político brasileiro. Com isso, você terá melhores condições de estimar os impactos das propostas de mudanças legislativas.

15/11/2021

https://youtu.be/lUWufVifve0


A Ministra de Estado da Mulher, da Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que será a responsável por distribuir os recursos para os asilos. Foto: Anderson Riedel/PR

Desviando o dinheiro dos velhinhos

Vetos de Bolsonaro à lei de ajuda a asilos abrem imensa brecha para corrupção e fraudes

Por Bruno Carazza

 

Querem conhecer mais um exemplo de como o dinheiro público destinado a combater os efeitos da pandemia vai escorrer pelo ralo e engordar indevidamente contas bancárias pelo Brasil? É só dar uma olhada no Diário Oficial de hoje (30/06/2020).

O Congresso aprovou, e Bolsonaro sancionou, a Lei nº 14.018, que destina R$ 160 milhões do orçamento da União para asilos, formalmente chamados na nova lei de "Instituições de Longa Permanência para Idosos", enfrentarem a pandemia.

Quem estabelecerá os critérios para a distribuição do dinheiro será o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves. Bolsonaro, porém, vetou uma série de dispositivos que enfraquecem os controles e aumentam o risco de fraudes.

Foram vetados por Bolsonaro os seguintes pontos:

1) Necessidade de que as entidades que receberiam os recursos fossem sem fins lucrativos e estivessem inscritas nos conselhos municipais ou estaduais da pessoa idosa ou de assistência social;

2) Exigência de que as entidades beneficiadas prestem contas da aplicação dos recursos perante esses conselhos;

3) Determinação de que o Ministério informe aos conselhos de pessoa idosa e de assistência social quais foram as entidades contempladas com recursos federais;

4) Exigência de que o Ministério publique, no prazo de 30 dias da distribuição de recursos, a relação das instituições beneficiadas, sua razão social, CNPJ, localização e valor recebido.

A Ministra de Estado da Mulher, da Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que será a responsável por distribuir os recursos para os asilos. Foto: Anderson Riedel/PR
A Ministra de Estado da Mulher, da Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que será a responsável por distribuir os recursos para os asilos. Foto: Anderson Riedel/PR

Com critérios frouxos de distribuição de recursos e praticamente nenhuma transparência quanto a quem será contemplado, a probabilidade de desvio de recursos é altíssima.

As razões para os vetos da Lei nº 14.018/2020 apresentadas pelo governo são muito frágeis, como as alegações de que a transparência quanto à distribuição do dinheiro público fere as competências dos Tribunais de Contas ou a separação entre os Poderes Executivo e Legislativo - como se não fosse do interesse da sociedade saber como o governo aplica os recursos públicos e os distribui entre agentes privados.

Desde a posse, o governo Bolsonaro já vinha prejudicando a participação e o controle social das políticas públicas e assistenciais, como já demonstrei aqui. Com os vetos publicados à Lei nº 14.018, os riscos de fraude, beneficiamento ilícito e corrupção são imensos.

Resta agora esperar que o Congresso derrube os vetos presidenciais.

 

 


(Des)continuidades

No Brasil de 2020, políticas públicas ainda são criadas no achismo

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 13/01/2020.

 

Edward Johnston poderia ter se formado médico, mas abandonou a faculdade em Edimburgo para retornar a Londres no final do século XIX. Fascinado por tipografia antiga, passava dias estudando antigos manuscritos medievais no Museu Britânico. Começou então a dar aulas de lettering e em 1906 publicou um livro ensinando suas técnicas, que tinha o sugestivo nome “Escrevendo e Iluminando”.

Em 1913, Johnston foi contratado pela companhia de metrô de Londres para propor uma reformulação da identidade visual das estações. Trabalhando sobre a ideia de um antigo símbolo que combinava um círculo vermelho e uma barra horizontal azul e introduzindo o nome da estação com uma tipografia leve no centro, a proposta de Johnston foi aprovada pelos executivos da empresa e passou a ser adotada em toda a cidade a partir de 1919.

Alguns anos depois, o departamento de sinalização do metrô contratou um jovem desenhista de nome Henry Beck. Sua principal missão era desenhar plantas de engenharia e placas seguindo a tipografia criada por Johnston. Mas, com a expansão das linhas e do número de estações, Beck se incomodava com a complexidade dos mapas do Underground, à época elaborados em escala geográfica. Apostando na concepção de que o passageiro estava mais interessado na sequência das estações e na conexão entre as linhas do que na distância percorrida entre elas, Beck começou a desenvolver, nas suas horas vagas, um novo mapa. Baseado na ideia de um circuito elétrico e atribuindo cores diferentes para cada linha, o mapa de Beck foi testado em 1933 e desde então tem sido copiado pelos principais sistemas de transporte do mundo, inclusive o metrô de São Paulo.

Se você visitar algum dos vagões antigos das décadas de 1940 ou 1950 expostos no London Transport Museum, localizado do lado de Covent Garden, vai verificar que, a despeito das mudanças no mobiliário, a identidade visual das placas informativas é praticamente a mesma de hoje em dia. Um século depois que suas ideias foram propostas, os logotipos e desenhos criados por Johnston e Beck não apenas continuam a designar as estações e linhas do metrô, como tornaram-se ícones culturais da cidade de Londres e da própria Inglaterra.

O metrô londrino começou a ser desenvolvido em 1863, quando o primeiro túnel ligando as estações de Paddington e Farringdon foi inaugurado. Hoje conta com 402 km, distribuídos em 11 linhas interligando 270 estações que movimentam 5 milhões de passageiros por dia. Em quase 160 anos de expansão praticamente contínua muita coisa mudou, a começar pela tecnologia dos trens, que inicialmente eram movidos a vapor e migraram para a eletricidade com o advento do século XX.

A forma de provimento do serviço também foi  bastante alterada. Nas primeiras décadas as linhas eram construídas e mantidas de forma independente por companhias privadas, que passaram por um intenso processo de fusões e aquisições. A grande depressão de 1929 levou as empresas ao colapso, forçando a estatização de quase todas as empresas de metrô, ônibus e bondes  em 1933. Daí até 2000 o gerenciamento do sistema de transporte urbano na região metropolitana de Londres trocou de mãos entre os governos central e local diversas vezes. Nos anos 2000, tentou-se o modelo de parceria público-privada, mas não deu certo. Hoje o sistema é controlado pela administração municipal. Em meio a idas e vindas, a malha nunca deixou de se expandir.

O interessante é que essa combinação mágica de estabilidade (da comunicação visual) com desenvolvimento (das linhas, estações e trens) se deu num quadro de frequente alternância no poder entre os dois principais partidos britânicos. Para ficar só neste século, a população de Londres elegeu como prefeitos um trabalhista da ala mais radical, Ken Livingstone (2000-2008), depois o conservador e atual primeiro-ministro Boris Johnson (2008-2016) e atualmente um trabalhista moderado, Sadiq Khan. Apesar das diferentes visões políticas, ideologias e concepções de cidade defendidas  por aqueles que a  governaram nos últimos 160 anos, nada disso interrompeu o ritmo da capilarização do sistema de transporte e nem sequer suas mundialmente conhecidas plaquinhas de identificação.

O rascunho do símbolo do metrô de Londres, criado por Edward Johnston.

Quadro muito diferente observamos no Brasil. Em pleno 2020 não conseguimos implementar uma cultura de avaliar as políticas públicas e julgá-las segundo parâmetros claros de custo-benefício e impacto. Programas governamentais e investimentos estatais ainda são decididos com base no achismo de governantes e burocratas – quando não no oportunismo de corruptos e corruptores mal disfarçado em promessas vãs de aumento do emprego ou do crescimento do PIB. Mudanças de governo, principalmente quando envolvendo a troca de grupos políticos no comando, trazem consigo a paralisação de programas e tentativas de reinvenção da roda, começando tudo de novo a partir do zero.

Diferentemente do caso do metrô londrino, a cada novo mandato de presidente, governador ou prefeito, programas governamentais mudam de nome, prédios públicos são repintados nas cores do partido do novo dirigente e obras públicas são abandonadas incompletas em função de “novas prioridades”.

No plano federal, Bolsonaro pressiona ministros e assessores para darem uma nova roupagem para o Bolsa Famîlia – preferencialmente com um novo nome que o desvincule do governo do PT. Pior ainda são casos observados nos setores de meio-ambiente, educação e saúde, onde políticas criadas e aperfeiçoadas de modo incremental há três décadas ou mais vêm sendo esvaziadas por motivos ideológicos ou políticos. Mas não se iludam, em diferentes graus, seus antecessores fizeram o mesmo, sempre com o propósito de imprimir sua marca pessoal e colher frutos eleitorais.

Em outubro próximo elegeremos os prefeitos dos mais de 5.500 municípios brasileiros. É boa hora de nos perguntarmos o que de bom vem sendo feito nas cidades em que vivemos e cobrarmos sua continuidade ou melhoramentos. Como diriam os ingleses, mind the gap.


O teto ameaça desabar

Em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão

Por Bruno Carazza

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 09/09/2019.

 

O ministro Paulo Guedes gosta de metas ambiciosas e números grandiloquentes. Ainda durante a campanha, no programa Central das Eleições, da Globonews (24/08/2018), o futuro superministro da Economia anunciou sua intenção de zerar o déficit primário no primeiro ano de governo e de obter R$ 2 trilhões com privatizações, vendas de imóveis e concessões até o final do primeiro mandato de Bolsonaro.

 

 

No final de janeiro, durante a reunião do Fórum Econômico de Davos, Guedes insistia na tese do déficit zero. Em entrevista ao jornalista Jonathan Ferro, da agência Bloomberg de notícias financeiras, o ministro assegurou que alcançaria a meta logo no primeiro ano do governo com reforma da previdência, cessão onerosa do petróleo, privatizações e concessões, devolução de recursos do BNDES e de outros bancos públicos para a União e um corte de 10% dos subsídios da União.

 

Apesar do excesso de otimismo do ministro, a dura realidade de Brasília já se impôs. Na proposta de lei orçamentária para 2020 encaminhada ao Congresso, o Ministério da Economia admitiu que a meta não será alcançada em 2019 e nem sequer ao final do mandato de Bolsonaro: a previsão para 2020 é que estaremos no vermelho em R$ 118,9 bilhões.

Ao longo de nossa história recente, o governo brasileiro lidou com o crônico problema fiscal seguindo abordagens muito diferentes. Durante boa parte dos anos 1980 e 1990, empurrou-se a sujeira para debaixo do tapete no período de hiperinflação e nos primeiros anos do Plano Real. Quando a crise internacional bateu à nossa porta em 1999, decidiu-se atuar pelo lado da arrecadação: a carga tributária subiu de uma média de 26,4% do PIB na década de 1990 para 32,2% nos dez anos seguintes, o que foi suficiente para sustentar um dos pilares do tripé macroeconômico, gerando uma sequência de superávits primários superiores a 3% do PIB a partir do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.

Com a carga tributária batendo às raias do insuportável, ainda no primeiro governo Lula começou-se a buscar uma solução estrutural para o crescimento das despesas da União. É nessa época que surge, por exemplo, a proposta de Delfim Netto, logo encampada pela equipe de Antonio Palocci, de congelamento das despesas correntes com o objetivo de se zerar o déficit nominal (primário mais juros) num horizonte de 8 anos. Então à frente da Casa Civil, Dilma Rousseff interditou o debate chamando a ideia de “rudimentar”.

Essa história de meta, aliás, nunca foi o forte de Dilma (“não vamos colocar meta, mas quando atingirmos a meta, vamos dobrar a meta”). Rendendo-se às pressões de grupos de interesses, seu governo abandonou a perseguição de superávits no moto-contínuo de incentivos tributários, crédito subsidiado e aumentos para o funcionalismo público, que agravaram uma situação já delicada de despesas constitucionais obrigatórias em expansão.

Foi somente em 2016 que o Congresso Nacional, premido pela gravidade do quadro fiscal, adotou pela primeira vez uma medida estrutural para lidar com o descontrole da despesa pública no Brasil. Por meio da Emenda Constitucional nº 95, ficou determinado que por vinte anos os gastos dos três Poderes da União estarão limitados ao reajuste da inflação. Não é exagero dizer que o sucesso no encaminhamento da reforma previdenciária é consequência direta da imposição do teto de gastos – com as despesas de todo o setor público congeladas, o Congresso concordou em atacar a principal causa do descompasso. Na euforia pela vitória do governo no Congresso, frequentemente nos esquecemos que as novas regras apenas reduzirão o crescimento das despesas previdenciárias, estando longe de serem uma solução definitiva para se evitar o caos e equilibrar as contas.

Ministro da Economia, Paulo Guedes, durante a abertura da 22ª Marcha dos Prefeitos, realizado no Centro Internacional de Convenções do Brasil, em Brasília, DF- 09/04/2019. Foto: Edu Andrade/ASCOM/Ministério da Economia

A ideia central na criação do teto, uma solução simples e poderosa da equipe econômica do presidente Temer, foi ressuscitar o processo orçamentário como palco de debates sobre as escolhas governamentais. Existe, porém, uma questão prévia e de difícil solução: nem todos os jogadores têm o mesmo cacife para participar da disputa orçamentária travada perante Poderes Executivo e Legislativo. Assim, impera a lógica da ação coletiva do economista Mancur Olson: na disputa por nacos do orçamento, grupos com melhor capacidade de articulação tendem a prevalecer sobre a massa difusa da sociedade, que acabará pagando a conta.

Analisando a proposta orçamentária enviada pelo governo, fica claro que o time de Paulo Guedes opta pelo caminho mais fácil de evitar conflitos com grupos de interesses bem representados na política brasileira. O mesmo assessor econômico do candidato Bolsonaro, que na campanha afirmara na Globonews que “se depender de mim, não haverá subsídio para setores específicos no Brasil”, com menos de um mês como ministro terminou sua entrevista em Davos dizendo que “se eu desejar começar a cortar subsídios aqui e ali, eu perco suporte político”.

No orçamento enviado pelo Congresso Nacional o ministério da Economia estima um total de R$ 331 bilhões em subsídios, desonerações, regimes especiais e benefícios de toda a natureza, transferindo renda para os mais variados segmentos da economia brasileira. Sem coragem para atacar esses privilégios fiscais, a proposta de Paulo Guedes distribui o ônus do cumprimento do teto nos ombros de políticas públicas sensíveis para a população e o futuro do país – como a educação, a segurança pública, a pesquisa e o meio-ambiente.

Como diria a sabedoria popular, “em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Com um orçamento cada vez mais curto, ministros e parlamentares começam a bombardear a política do teto de gastos, chamando-a de inexequível. A tibieza de Guedes em comprar brigas com setores que lucram parasitando nosso sistema tributário coloca em risco a principal medida estrutural para enfrentar o crônico déficit público brasileiro.


Nada de extraordinário no anúncio do Ministério da Segurança Pública

Aposta do governo na segurança pública não traz nenhuma esperança para reverter os incentivos que levam jovens a matarem e morrerem no Brasil.

Desde a Constituição de 1988, o Congresso já aprovou mais de uma centena de leis tratando de Direito Penal e de Direito Processual Penal. Na imensa maioria das vezes, essas normas trataram de criar dezenas de novos tipos de crimes e introduzir novas qualificadoras para crimes já existentes.

A despeito da edição de novas leis (e mais rígidas), da expansão dos presídios, de colocarmos cada vez mais gente nas cadeias e das milhares de pessoas mortas pela e na polícia, o quadro de violência galopante na sociedade brasileira não dá sinais de melhoria.

Recentemente rompemos a barreira dos 60 mil mortos por ano. Desses, mais da metade são jovens de 15 a 29 anos. O presente e o futuro do Brasil.

Leia o texto completo em:

https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/02/28/nada-de-extraordinario-no-anuncio-do-ministerio-da-seguranca-publica/


O teto, os furos e a lei do mais forte: considerações sobre a PEC nº 55/2016 (ou 241/2016, se você preferir)

Texto e gráficos de Bruno Carazza dos Santos

A proposta de colocar um teto para as despesas públicas é necessária e urgente, mas seus dispositivos revelam muito sobre a incrível incapacidade dos governos brasileiros de dizer “não” aos grupos de interesses

A PEC do Teto (PEC nº 55/2016, em tramitação no Senado, antiga PEC nº 241/2016, quando estava na Câmara) é a bola da vez a dividir os brasileiros. Depois das eleições de 2014 e do impeachment de Dilma Rousseff, agora a tentativa do governo de estabelecer um limite anual para as despesas públicas está levando as pessoas às ruas, abalando amizades e azedando reuniões familiares.

Meu ponto de partida para analisar a PEC é que responsabilidade fiscal não deveria ser algo para as pessoas se posicionarem contra ou a favor. Não gastar mais do que se arrecada deveria ser um valor a ser exigido de todos os governantes e partidos políticos, e não um tema a dividir quem é de esquerda e quem é de direita.

Nesse sentido, considero bastante louvável a iniciativa do governo de estabelecer um limite de gastos numa perspectiva de médio e longo prazo. Afinal de contas, nosso quadro fiscal se deteriorou gravemente nos últimos anos: a arrecadação caiu, as despesas cresceram muito e, como consequência, a dívida pública vem subindo perigosamente. Quanto mais déficit, mais dívida, mais juros, menos crescimento e mais tendência à inflação.

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Primeiro Ato - O teto

[Para acompanhar a análise abaixo, sugiro baixar o texto da PEC]

Para tentar conter esse quadro de derrocada econômica, o governo atual propôs mudar a Constituição para estabelecer um Novo Regime Fiscal, que terá vigência de 20 anos (art. 101) e estabelecerá limites individualizados para as despesas primárias (ou seja, não inclui despesas de juros) dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público e da Defensoria Pública (art. 102, caput). Observe que a PEC não se aplica a Estados e Municípios, apenas para a União.

Mas como será calculado esse teto? Em 2017, o teto será o gasto efetivo de 2016, mais um reajuste de 7,2%. A partir de 2018, será o limite do ano anterior, mais a inflação acumulada em 12 meses observada até junho (art. 102, § 1º). Isso significa que os gastos poderão seguir crescendo nos próximos anos, mas no máximo corrigidos pela inflação – como os economistas gostam de dizer, o gasto será congelado em termos reais.

Na prática, esta é a mecânica da PEC para realizar o ajuste fiscal de longo prazo: os limites calculados segundo a PEC devem ser respeitados por cada Poder (art. 102, § 2º); a Proposta de Lei Orçamentária anual deve ser compatível com o teto (art. 102, § 3º); o Poder Legislativo não poderá ampliar o limite durante a tramitação do Orçamento (art. 102, § 4º) e durante o ano não poderão ser autorizados créditos extras que ultrapassem o teto (art. 102, § 5º).

Meu problema com a PEC não está no teto em si. A estratégia proposta pelo governo é gradualista (sem cortes bruscos de imediato, o que torna a sua aprovação mais fácil), abrangente (divide o ônus do ajuste entre todos os Poderes) e tem um horizonte temporal longo, mas flexível – de acordo com o art. 103, depois de 10 anos o reajuste do teto poderá ser revisto em cada mandato presidencial.

Após analisar o texto da PEC e ler várias críticas contra e a favor, aí vão as minhas principais críticas.

Segundo Ato: As claraboias no teto

Meu primeiro problema com a PEC está nos furos do teto. No art. 102, § 6º estão presentes as exceções ao limite de despesas. O inciso I trata das transferências constitucionais para Estados e Municípios, que eu reconheço ser um aspecto difícil de lidar neste momento – assim, faz sentido entrar como uma exceção. Os incisos seguintes, no entanto, são grandes claraboias abertas no teto, que podem inviabilizar o ajuste necessário para reintroduzir a responsabilidade fiscal no governo.

O primeiro grande furo (art. 102, § 6º, II) trata dos créditos extraordinários, que são autorizações para gastos extras em situações “imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública” (CF, art. 167, § 3º). Você pode não saber, mas ao longo deste ano já foram autorizados gastos extras que superam R$ 45 bilhões para as mais variadas finalidades, com justificativas na maior parte das vezes forçadas, que nem de longe se enquadram em situações de “guerra, comoção interna ou calamidade pública”. Com a adoção da PEC, é muito provável que essa válvula de escape será utilizada cada vez mais pelos governos – e da pior forma possível, via medidas provisórias, com pouco debate parlamentar e quase nenhuma discussão pública. Para fechar essa brecha, e se pretendem que a PEC seja realmente séria, deveriam aproveitar a mudança constitucional e reformular a redação do art. 167, § 3º, para algo neste sentido:

Art. 167, § 3º. A abertura de crédito extraordinário somente será admitida em caso de guerra ou para lidar diretamente com situações de decretação de calamidade pública.

Ao eliminar o “como” da redação atual e retirar um conceito vago como “comoção interna”, eliminaríamos quase todo o conteúdo impreciso do dispositivo constitucional. Dessa forma, seria mais difícil fazer malabarismo retórico para permitir a execução de despesas corriqueiras não previstas originalmente no Orçamento. Somente assim teríamos uma justificativa para abrir essa exceção ao teto. Caso contrário, acredito que os governos terão uma larga avenida para burlar o limite da PEC.

A outra claraboia no teto da PEC é uma pegadinha do malandro. Segundo o art. 102, § 6º, III, não estão sujeitas ao limite “as despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização de eleições”. Uma medida bem-intencionada, não? #sqn (“só que não”, traduzindo para os mais velhos, rsrsrs). Você sabe o que está incluído no orçamento da Justiça Eleitoral? Sim, o Fundo Partidário. E você sabe que estão articulando a criação de um Fundo Eleitoral para financiar as despesas dos candidatos nas eleições? Pois bem, então você pode imaginar a quem essa exceção está direcionada. Sim, aos partidos políticos e a seus candidatos, que poderão receber mais recursos de dois em dois anos, enquanto as demais despesas do governo estarão congeladas! O exemplo, neste caso, não está partindo de cima – e por isto essa exceção deveria ser suprimida sumariamente.

A terceira janela para as estrelas da PEC está no inciso IV do mesmo dispositivo das exceções. De acordo com sua redação, não estão submetidas ao teto as “despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes”. Confesso que para saber do que se tratavam tive que recorrer ao Google, que prontamente me levou a uma página do Ministério do Planejamento com a lista das empresas estatais não dependentes de recursos do Tesouro para realizar seus investimentos. E quem eu encontrei lá? As suspeitas de sempre, as estatais que estiveram no noticiário policial nos últimos anos como canais de corrupção, clientelismo e contabilidade criativa: Petrobrás, Eletrobrás, Caixa Econômica, BNDES, Banco do Brasil, Docas, Infraero, Correios e cia. Logo, de acordo com o texto da PEC, o dinheiro continuará indo para o ralo nesses órgãos, enquanto os demais órgãos terão suas torneiras fechadas. Deixando essa brecha aberta, a tendência é que voltemos a ter orçamentos paralelos cada vez mais robustos daqui pra frente.

Por fim, o art. 102 da PEC traz ainda dois presentes para Legislativo, Judiciário, MP e Defensoria Pública. De acordo com os parágrafos 7º e 8º, nos três primeiros anos o Poder Executivo assumirá eventuais descumprimentos ao teto por parte desses “Poderes” (limitado a 0,25% do limite do Executivo). Não considero justo que os programas de governo e políticas públicas executados pelo Poder Executivo paguem o pato pelos excessos desses outros órgãos, cujas despesas estão concentradas principalmente em pessoal. Além disso, o parágrafo 9º permite que a cada ano esses Poderes possam compensar os limites individualizados entre seus órgãos. Assim, eventuais ultrapassagens ao teto pela Justiça do Trabalho, por exemplo, poderão ser compensadas por maiores apertos na Justiça Federal – o que não deixa de ser um desvirtuamento do espírito de comprometimento geral presente na PEC.

 

Terceiro Ato: O Teto e a Lei do Mais Forte, ou Grupos de interesse versus Políticas Sociais

Uma das maiores virtudes da PEC é tornar o processo orçamentário uma coisa real no Brasil. Há séculos o orçamento brasileiro é chamado de peça de ficção, pois durante sua elaboração a receita é superestimada e a despesa subestimada – e, assim, com um pouco de jeitinho, nossos políticos conseguem colocar na Lei Orçamentária quase todos os seus sonhos e aspirações. Mas como um antigo poeta baiano já dizia, “a vida é real e de viés” e ao longo do ano o dinheiro fica curto e o governo tem que rebolar para fechar a conta: faz contingenciamentos na boca do caixa, inventa uma contabilidade criativa, joga o que não der para o futuro (os famosos “restos a pagar”), emite dívida ou moeda – cada Presidente nos últimos anos fez suas opções nesse amplo cardápio de irresponsabilidade fiscal.

Mas é justamente na sua maior virtude – forçar o governo a elaborar um orçamento realista – que reside o maior problema da PEC na minha visão. Com a imposição do teto, o governo terá que fazer escolhas, priorizar, decidir onde realmente alocará os recursos escassos que administra. O processo orçamentário, portanto, tornar-se-á a cada ano um conflito orçamentário. E nesse conflito, levará vantagem quem tiver mais condições de convencer o governo de que sua proposta de política pública é mais urgente, necessária e merecedora de recursos. E nesse processo levarão vantagem, como sempre, os amigos do Rei ou quem está mais próximo dele: grandes doadores de campanha (via caixa 1 ou caixa 2), ilustres representantes do PIB nacional, grupos de interesses bem organizados em seus lobbies, corporações de servidores públicos, entre outros. A coletividade, detentora difusa do interesse público, entra em grande desvantagem nesse jogo orçamentário reorganizado pela PEC.

Em seus dispositivos, a PEC oferece quase nada para “igualar as armas” entre os grupos de interesse – bem organizados, com mais recursos e com maior acesso a quem decide sobre o orçamento – e a coletividade – com dificuldades de mobilização e de liderança. Nesse sentido, vislumbro apenas o art. 108, que exige estimativa de impacto financeiro dos projetos de lei que criem despesa ou renúncia de despesas, e o art. 109, que suspende a tramitação das proposições para avaliar seu impacto sobre o cumprimento do teto. Muito pouco, quase nada.

Ao contrário, a PEC esvazia o principal instrumento de proteção ao interesse público presente no atual sistema orçamentário brasileiro: as vinculações de recursos para despesas obrigatórias. A literatura considera as vinculações uma péssima medida de finanças públicas: engessam o poder do gestor de estabelecer prioridades, cristalizam despesas ao longo do tempo, impedem que o orçamento acompanhe as mudanças de cenário. Eu concordo com todas essas críticas – se aplicadas ao Reino Unido, à Dinamarca ou à Alemanha. Num país com tantas desigualdades sociais como o Brasil, as vinculações de recursos para áreas de interesse público como saúde e educação, que privilegiam a coletividade, são um mal necessário: protegem essas áreas contra a sanha dos grupos de interesses na repartição do bolo orçamentário. E a PEC, é preciso reconhecer, enfraquece as vinculações.

Ainda que os técnicos do governo argumentem que a PEC não diminuirá os recursos para saúde e educação, a leitura do art. 105 é clara. Os percentuais mínimos de aplicação de 15% da receita corrente líquida para a saúde (CF, art. 198, § 2º, I) e de 18% dos impostos em educação (CF, art. 212) passam a estar sujeitos ao teto. Nesse caso, teríamos o seguinte cenário: i) nos anos em que a arrecadação de impostos crescer menos que a inflação, o governo terá mais espaço para cumprir os percentuais mínimos previstos na Constituição; mas ii) nos anos em que a receita subir mais do que a inflação, o teto impedirá que os gastos em educação e saúde cresçam em termos reais, e assim os percentuais de 15% e de 18% não serão cumpridos. Em outras palavras, essa mecânica presente na PEC faz com que o governo “cumpra tabela” com educação e saúde nos momentos de crise, liberando recursos para gastos em outras áreas quando a receita estiver abaixo da inflação, e impede que o governo expanda as despesas em saúde e educação nos anos de bonança, quando a arrecadação superar a inflação. Por mais apreço que eu tenha pela responsabilidade fiscal, acho esse mecanismo bastante perverso do ponto de vista social.

É preciso dar um desconto para o governo porque, no art. 102, § 6º, I da PEC (aquele das exceções para as transferências constitucionais), ficou isenta do teto a complementação que a União faz para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – o Fundeb. O problema é que a vigência do Fundeb se encerra em 2020, e a partir daí a União fica desobrigada a fazer essa transferência para o ensino básico em Estados e Municípios. Logo, depois disso imperará o teto também nessa importante área social.

Ao esvaziar a vinculação de recursos para as áreas sociais, a PEC desequilibra o jogo em favor dos grupos de interesses no processo orçamentário. Ou você imagina que teremos ocupações de escolas, passeatas e greves todo ano para garantir mais recursos para saúde e educação enquanto o orçamento está sendo elaborado? Quem você acha que terá mais sucesso em ser ouvido pelo governo na definição do Orçamento: empresários com lobby organizado pela CNI pleiteando novos subsídios para a indústria nacional, empreiteiras que continuam abastecendo campanhas eleitorais via caixa 2, ruralistas com sua bancada lutando por novas renegociações de dívidas junto ao Banco do Brasil, servidores da elite do funcionalismo público querendo reajuste salarial ou você e eu que queremos uma educação básica melhor no Brasil?

Também li por aí que a PEC levará a uma maior cobrança dos eleitores, exigindo dos deputados e senadores que atribuam mais recursos para a saúde e a educação. Isso poderia fazer sentido se tivéssemos um sistema eleitoral com lista fechada ou voto distrital, em que haveria maior identificação entre o eleitor e o partido ou candidato eleito. No sistema atual, em que votamos em uma pessoa e elegemos outra, com coligações de partidos que não dizem nada para ninguém, imaginar que temos este tipo de accountability entre os políticos e seus eleitores no Brasil é até ingênuo. A menos que a voz rouca das ruas se levante, como aconteceu em junho de 2013 - mas é difícil esperar que isto aconteça anualmente.

Por todos esses motivos, acho que a PEC, apesar de ter a vantagem de tornar real o conflito orçamentário, acabará estabelecendo a lei do mais forte nas finanças públicas brasileiras. E a corda, como sempre, arrebentará no lado mais forte – a grande massa de brasileiros desprotegidos de um sistema de saúde e educação decentes.

Sem um Gran Finale: O governo vai jogar o problema para o futuro?

Para finalizar minha análise sobre os dispositivos da PEC, resta tratar das medidas previstas pelo governo para restabelecer o equilíbrio fiscal em caso de descumprimento do teto.

De acordo com o art. 104, se o limite for desrespeitado, os Poderes da União estarão proibidos de conceder vantagens remuneratórias de qualquer natureza para seus servidores, criar cargos, alterar estruturas de carreiras, contratar pessoal, realizar concursos públicos e criar ou conceder reajustes de despesas obrigatórias acima da inflação. Além disso, o Poder Executivo não poderá criar ou expandir subsídios, subvenções, incentivos ou benefícios tributários até que o teto seja reestabelecido (art. 104, § 2º).

Essas medidas são todas importantes e condizentes com o espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal – essa desconhecida. No entanto, ao ler esses dispositivos, me veio à mente novamente a questão dos grupos de interesses.

Ora, vivemos um quadro fiscal muito agudo, causado justamente pela prodigalidade dos governos anteriores em conceder benesses a grupos muito específicos  como empresários que se refastelaram com toda sorte de financiamentos subsidiados e regimes tributários especiais e servidores públicos de carreiras de elite dos três Poderes que passaram a ganhar acima de R$ 20 mil ou R$ 30 mil sem qualquer avaliação séria de produtividade. Também tivemos uma série de políticas públicas mal desenhadas, que drafam recursos públicos com baixo retorno social.

Olhando as medidas corretivas previstas na PEC, vejo que elas se destinam justamente a esses grupos que foram os mais beneficiados pelo descontrole fiscal dos últimos anos. Se a situação atual já é grave, fico me perguntando por que motivo o governo não toma medidas contundentes para lidar com esse problema agora. Por que não adotar um pacote suspendendo os reajustes de salários concedidos a determinadas carreiras do Executivo, Legislativo, Judiciário e MP ao longo deste ano e lançar um cronograma de desativação (phasing out) da ampla rede de benefícios tributários e creditícios concedidos para o empresariado brasileiro nos últimos anos, ainda mais agora que a OMC os condenou?

A resposta está na relação umbilical entre as elites políticas e econômicas no Brasil. Em vez de dizer “não” e conceber as medidas corretas para restabelecer o equilíbrio fiscal, o governo prefere empurrar com a barriga e entregar a bomba para o governo seguinte, que terá que lidar com o estouro dos tetos a partir de 2019. E isso porque não quer arcar com o custo de piorar o status daqueles que, no final das contas, sustentam o governo. E aqui a ambiguidade do verbo “sustentar” é proposital.

Eu realmente gostaria de terminar essa análise da PEC otimista, como comecei no primeiro ato. O desfecho, no entanto, é melancólico: devido a decisões superiores expressas em pequenos detalhes, a PEC pode falhar no seu intuito de restabelecer o equilíbrio das contas públicas e ainda fragiliza o atendimento da coletividade diante de interesses privados muito bem organizados.

É lamentável ver uma medida tão importante para o país ter seus objetivos desvirtuados pelo desinteresse do governo em atacar de frente as causas de nosso descontrole fiscal.

Fechem as cortinas.

Post scriptum do dia 16/11/2016, às 8:44h: Com a base que o governo tem no Congresso, é inevitável que a PEC seja aprovada tal qual ele está redigida. No entanto, o governo não pode se iludir com essa vitória. Há uma extensa agenda de reformas que precisa ser aprovada e o governo não pode subestimar a resistência popular causada pela adoção da PEC do teto.

Não ficarei surpreso se tivermos uma nova onda de manifestações tal qual tivemos em junho de 2013 quando essas novas propostas, que por natureza são impopulares, forem discutidas ao longo de 2017. Se tivemos tanta repercussão negativa com a PEC do teto e a MP do ensino médio, imagine quando for enviada para o Congresso a reforma da Previdência.

Se quisesse aplacar a insatisfação social crescente, o governo deveria sinalizar para a população que sua preocupação com o ajuste fiscal está acima de interesses particulares. Para isso, deveria rever as exceções presentes na PEC e implementar um pacote de cortes de despesas que atinja o "bolsa empresário" e reveja os reajustes do Judiciário, Legislativo e das carreiras da elite do Poder Executivo. Só assim ele poderia demonstrar para o cidadão em geral que seu compromisso é com a austeridade nas contas públicas, e não com o desmantelamento das políticas sociais.

 

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Programa Mais Médicos, Biografias e Planos Econômicos: a Participação Social nos Processos do STF:

Nas últimas semanas os Ministros do Supremo Tribunal Federal debruçaram-se sobre questões importantes que ganharam destaque da mídia e nas discussões cotidianas ultimamente: o Programa Mais Médicos, as biografias não autorizadas e a correção monetária das cadernetas de poupança durante os Planos Econômicos dos anos 1980 e 1990.
Além da repercussão social dessas matérias, essas três ações possuem outro ponto em comum – são exemplos da abertura do Poder Judiciário para ouvir a opinião de outros interessados, além das partes envolvidas, no julgamento dessas disputas.
Nas ações que discutem a constitucionalidade do Programa Mais Médicos (aqui) e dos dispositivos do Código Civil que tratam das biografias não autorizadas (aqui) o STF valeu-se de um procedimento instituído há relativamente pouco tempo: as audiências públicas com especialistas e profissionais com conhecimento técnico sobre a matéria.
Já no julgamento dos recursos reivindicando a atualização dos índices de correção monetária das cadernetas de poupança durante a implementação dos Planos Econômicos Cruzado (1986), Bresser (1989), Verão (1989), Collor I (1990) e Collor II (1991), outra forma de intervenção de terceiros interessados foi permitida: os chamados amicus curiae –ou amigos da Corte, em bom português (veja aqui).
A concepção desses institutos processuais deve-se a um dos maiores juristas alemães contemporâneos, Peter Häberle, que em 1975 publicou o livro “Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Constituição para a Interpretação Pluralista e ‘Procedimental’ da Constituição”, traduzido em português pelo Min. Gilmar Ferreira Mendes em 1997.
Nesta obra, Häberle critica a visão tradicional que atribui aos juízes das Cortes Constitucionais (no Brasil, o STF) o monopólio da interpretação constitucional. Para ele, os intérpretes oficiais da Constituição tendem a ser orientados apenas pela visão das partes e pela teoria, com pouco conhecimento das suas implicações práticas. Mas como a realidade é bastante complexa, com possibilidades e alternativas diversas (uma “realidade pluralista”, nos dizeres do autor), as decisões podem ser muito melhores se durante os julgamentos for dada voz a outros agentes que detenham conhecimento técnico ou mesmo possam sofrer as consequências futuras daquela decisão.
Peter Häberle propõe então que a interpretação da Constituição seja entendida como um processo aberto, mediante a criação de procedimentos para ampliar a participação democrática de outros intérpretes nos julgamentos de matérias constitucionais.
Ao defender que o debate público das ações constitucionais sejam ampliado pela incorporação da visão de especialistas e representantes da sociedade civil, Häberle acredita que estará sendo atingido um duplo objetivo: evitar o livre arbítrio da interpretação dos juízes e obter uma maior legitimação das suas decisões.
Em termos concretos, Häberle sugere a realização de audiências e intervenções de terceiros nos processos sob análise da Corte Constitucional como forma de concretizar o que ele entende como uma “sociedade aberta de intérpretes constitucionais”.
A teoria de Peter Häberle influenciou diretamente o STF a buscar, junto ao Congresso Nacional, a introdução dessas inovações na legislação que trata do processamento das ações constitucionais submetidas ao seu julgamento.
Nessa direção, as Leis nº 9.868/1999 e nº 9882/1999, que regulam o trâmite da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito constitucional, incorporam algumas das propostas por Häberle. Entre elas estão a possibilidade de realização de audiência pública para ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria em discussão e a participação dos amigos da corte.
A possibilidade de realização de audiências públicas reconhece que a interpretação constitucional está aberta a diferentes visões e pontos de vistas. Mais do que isso, afirma que não cabe somente às partes apresentarem suas divergências, mas sim que é dever dos julgadores procurar tomar conhecimento de todas as dimensões do problema, dando oportunidade para ouvir todos aqueles que tenham interesse em dar sua contribuição ao deslinde da questão posta.
Embora as audiências públicas tenham recebido previsão legal em 1999, apenas em 20/04/2007 foi realizada a primeira, convocada pelo relator Min. Ayres Britto no julgamento da ADI nº 3.510, que discutia a constitucionalidade de dispositivos da Lei nº 11.105/2005, que disciplina as pesquisas com células-tronco embrionárias. A partir daí, o STF já realizou 13 audiências públicas, sobre assuntos que vão das políticas de cotas nas Universidades ao financiamento de campanhas eleitorais (a relação completa e os documentos relativos a cada uma delas encontra-se aqui).
No mesmo conjunto de inovações destinado a “arejar” a interpretação constitucional pelo STF, as mesmas leis citadas acima previram que outros interessados apresentem documentos para convencimento dos Ministros (os famosos “memoriais”) e tenham voz nas sessões de julgamento por meio de sustentação oral. A participação dos amicus curiae tornou-se, deste então, bastante comum nos julgados do STF.
A importância do pensamento de Peter Häberle na concepção desses instrumentos, que indubitavelmente tornaram o STF mais aberto às opiniões da sociedade, é amplamente reconhecida por esse Tribunal. Trazemos, como exemplo, um excerto de reiteradas decisões monocráticas do Ministro Gilmar Mendes, que realiza um tributo à obra de Häberle ao deferir a participação de diversas entidades como amicus curiae em processos diversos:
“A propósito, Peter Häberle defende a necessidade de que os instrumentos de informação dos juízes constitucionais sejam ampliados, especialmente no que se refere às audiências públicas e às “intervenções de eventuais interessados”, assegurando-se novas formas de participação das potências públicas pluralistas enquanto intérpretes em sentido amplo da Constituição (cf. Häberle, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, 1997, p. 47-48).
Ao ter acesso a essa pluralidade de visões em permanente diálogo, este Supremo Tribunal Federal passa a contar com os benefícios decorrentes dos subsídios técnicos, implicações político-jurídicas e elementos de repercussão econômica que possam vir a ser apresentados pelos “amigos da Corte”.
Essa inovação institucional, além de contribuir para a qualidade da prestação jurisdicional, garante novas possibilidades de legitimação dos julgamentos do Tribunal no âmbito de sua tarefa precípua de guarda da Constituição.
(...)
Entendo, portanto, que a admissão de amicus curiae confere ao processo um colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias constitucionais em um Estado Democrático de Direito”. (Min. Gilmar Mendes, em decisão monocrática que admitiu a participação de amicus curiae na ADI 2.548/PR, julgada em 18/10/2005. O mesmo texto foi replicado nas decisões monocráticas das ADIs 3.599/DF, 3.317/RS, 3.494/GO, 3.484/RN, 3.660/MS, 3.580/MG, 3.677/RO,  3.484/RN, 3.660/MS, 3.614/PR, 3.538/RS, 2.682/AP, 2.441/GO, 3.998/DF, 3.469/SC, 3.842/MG e 2.316/DF, além da ADPF 97/PA).
Essa disposição do Supremo Tribunal Federal em ampliar a participação da sociedade civil em seus julgamentos principais, ampliando o debate público e democrático, constitui um exemplo a ser seguido pelos Poderes Executivo e Legislativo. Como ficou evidente nas manifestações de junho, a sociedade demanda ser ouvida – e cumpre ao Poder Público criar os canais institucionais para captar sua voz e incorporá-la em suas políticas públicas.