O Assunto #625: A panela de pressão do funcionalismo

Neste episódio, O Assunto procura entender distorções e suas consequências conversando com os economistas Bruno Carazza e Daniel Duque.

19/01/2022

Os atos desta terça-feira em Brasília são o capítulo mais recente de um movimento que começou ainda em 2021, quando Jair Bolsonaro operou para que fosse incluído, no Orçamento deste ano, R$ 1,7 bilhão destinado a reajustar os salários dos policiais federais, cujo apoio o presidente espera obter nas urnas em outubro. O tratamento diferenciado deflagrou reivindicações de servidores da Receita Federal e do BC, principalmente, mas reverbera em dezenas de outras categorias, com gestos de advertência e ameaças de paralisação. Neste episódio, O Assunto procura entender distorções e suas consequências conversando com os economistas Bruno Carazza e Daniel Duque. "É um grupo articulado e poderoso da administração pública", diz Carazza, doutor em direito e colunista do Valor Econômico, sobre os setores que lideram a atual temporada de reivindicações. Ele, que finaliza um livro a respeito do tema, resgata as origens da disparidade de remuneração e defende uma reforma que “racionalize carreiras e institua um sistema sério de avaliação". Pesquisador do Ibre-FGV, Duque detalha estudo comparativo da evolução salarial de diferentes categorias na última década, mostrando quem ganhou e quem perdeu da inflação. E chama a atenção para uma peculiaridade nacional: “O Brasil gasta com o Judiciário 3 vezes mais do que países desenvolvidos. Temos essa jabuticaba para resolver”.

Acesse: https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2022/01/19/o-assunto-625-a-panela-de-pressao-do-funcionalismo.ghtml

 


CNN 360º: Crise do funcionalismo

Thais Herédia analisa paralisação dos servidores da elite do funcionalismo público federal por reajustes salariais com estudo de Bruno Carazza.

18/01/2022

https://youtu.be/cAICd5E68Os?t=1100


CNN Live: Entenda como estão as negociações com servidores que ameaçam fazer greve

Especialista do assunto da Fundação Dom Cabral, Bruno Carazza, explica que esses funcionários públicos estão mirando como salário o teto do funcionalismo público. Por exemplo, o reajuste que a PF quer para seus servidores prevê que um delegado ganhe cerca de R$ 40 mil, mesmo salário que ganha um ministro do STF.

13/01/2022

Para economistas ouvidos pela analista de economia da CNN Priscila Yazbek, o principal problema é que não há espaço no teto de gastos, uma discussão que foi levada durante todo o ano passado, em meio à tramitação da PEC dos precatórios no Congresso, que abre espaço ao Auxílio Brasil no orçamento.

Os servidores federais já ganham bem mais que os empregados da iniciativa privada, como já mostraram diversos estudos, e existe desigualdade salarial dentro do próprio funcionalismo publico federal.

Especialista do assunto da Fundação Dom Cabral, Bruno Carazza, explica que esses funcionários públicos estão mirando como salário o teto do funcionalismo público. Por exemplo, o reajuste que a PF quer para seus servidores prevê que um delegado ganhe cerca de R$ 40 mil, mesmo salário que ganha um ministro do STF.

Mas, ainda assim, o especialista ouvido pela analista da CNN diz que ainda tem dúvidas se o reajuste será aprovado, porque quase todas as decisões de Bolsonaro recentes têm sido tomadas no sentido de fragilização da responsabilidade fiscal.

Outro fator é que são categorias que conseguem fazer pressão muito grande, travar a máquina pública, o que torna ainda mais incerto o futuro dessa questão.

Acesse: https://www.cnnbrasil.com.br/business/servidores-prometem-greve-para-terca-18-entenda-em-que-pe-estao-as-negociacoes/


CNN Novo Dia: Servidores entregam cargos comissionados por reajuste

Bruno Carazza é entrevistado por Rafael Colombo e Priscila Yazbek sobre pressões por reajustes para o funcionalismo público.

05/01/2022

A concessão que o governo fez a policiais federais ao acordar aumento exclusivo para a categoria pode gerar um efeito dominó, com uma forte pressão sobre o presidente Jair Bolsonaro em ano de eleição para que outras categorias da elite do funcionalismo também recebam reajustes.

“Num cenário de grande crise fiscal que o Brasil enfrenta, tudo isso mostra que estamos seguindo um caminho perigoso em ano eleitoral”, disse à CNN o mestre em economia e doutor em direito Bruno Carazza.

Para o especialista, há risco iminente de novas concessões, já que as reivindicações por salários devem vir de grupos de funcionários de alto escalão e com grande poder de articulação, que podem implicar desgaste do governo em ano eleitoral.

Ele classifica como parte da elite desse funcionalismo fiscais da receita, analistas do Banco Central, gestores governamentais, diplomatas, advogados públicos, entre outros, responsáveis por atividades como arrecadação tributária, fiscalização das instituições financeiras e execução do Orçamento.

Leia mais: https://www.cnnbrasil.com.br/business/aumento-geral-para-elite-do-setor-publico-e-caminho-perigoso-diz-especialista/

 

https://youtu.be/Ekk6NSl2Jvs


A elite e seu próprio umbigo

Pressão por reajuste de servidores evidencia distorções

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 27/12/2021.

 

Jair Bolsonaro abriu a caixa de Pandora. Ao decidir conceder um reajuste salarial para policiais federais, despertou a inveja, a cobiça e o ciúme das demais carreiras do topo do serviço público brasileiro. Imediatamente, auditores da Receita entregaram seus cargos comissionados, assim como associações de servidores anunciam para janeiro uma paralização dos trabalhos.

Existem inúmeras razões para se pagar bem os empregados do Estado. Altos salários atraem bons profissionais, o que em tese melhora a qualidade dos serviços prestados. Um corpo técnico bem remunerado, também na teoria, é menos propenso a ser capturado pelos interesses do setor privado ou por políticos poderosos, protegendo as políticas públicas dos vícios do patrimonialismo, do lobby ou da corrupção pura e simples.

No Brasil, porém, bons princípios são sempre distorcidos pelo corporativismo e utilizados para justificar o injustificável.

O economista Roberto Macedo foi um dos primeiros a mergulhar nos dados e a comparar, com rigor estatístico, as diferenças salariais entre o setor público e privado no Brasil. Coletando informações de centenas de milhares de trabalhadores de companhias estatais e particulares em 1981, e controlando os testes econométricos segundo setor da economia, gênero, idade, escolaridade, ocupação e anos de experiência dos trabalhadores, o professor da USP constatou que os empregados nas estatais ganhavam quase o quádruplo do que os do setor privado, e que uma parcela expressiva dessa diferença (entre 26% e 83%, a depender da ponderação) não era explicada pelos perfis distintos da mão-de-obra entre os dois segmentos. Havia, portanto, um robusto prêmio salarial pago aos empregados públicos simplesmente porque eles eram... empregados públicos.

Desde o trabalho pioneiro de Macedo, dezenas de pesquisas vêm reforçando a mesma constatação: servidores do Estado ganham mais do que trabalhadores do setor privado, mesmo descontando as características pessoais (sobretudo de escolaridade e experiência de trabalho) entre eles. Esses resultados não levam em conta, ainda, o mais generoso dos benefícios indiretos: a estabilidade no emprego. Isso, como o velho comercial dizia, “não tem preço”.

Mas há servidores e servidores. Aqueles que estão na ponta do atendimento ao cidadão, como professores da educação básica ou técnicos de enfermagem nos centros de saúde, recebem, em média, menos do que seus pares do setor privado. Mas quando se avança para os cargos burocráticos de mais alto nível, a desigualdade muda de direção.

Jair Bolsonaro durante visita a grupo de Policiais Rodoviários Federais. Foto: Carolina Antunes/PR

Advogados da União, fiscais da Receita, gestores governamentais, auditores do Tesouro e da CGU, diplomatas, analistas do Banco Central, pesquisadores do Ipea e policiais federais constituem a elite do Poder Executivo Federal.

Esses servidores, logo após aprovados em concurso, já começam a receber entre R$ 19.197,06 (no caso das carreiras do ciclo de gestão) e R$ 21.020,09 (fiscais e advogados públicos). Os delegados da Polícia Federal, que pressionam Bolsonaro por aumento, têm remuneração inicial de R$ 23.692,24.

Esses vencimentos, para o começo de profissão, são muito superiores a seus equivalentes no setor privado. Apenas em termos de comparação, um advogado júnior num dos maiores escritórios de São Paulo ganha em torno de R$ 6.000 mensais, assim como um gerente de auditoria numa das “big four” (Deloitte, E&Y, KPMG e PwC) recebe em torno de R$ 8.000 por mês, segundo o site Glassdoor.

Além de começarem ganhando muito bem, as trajetórias profissionais na nata do Poder Executivo federal são curtas. Em tese, um gestor ou auditor de finanças e controle chega ao topo em 13 anos – e para chegar até lá não há um processo rigoroso de avaliação de desempenho. Assim, em pouco tempo estão recebendo entre R$ 27.300 (técnicos do Bacen, do Tesouro e da CGU) e R$ 30.900 por mês (os delegados da PF).

Mas desde que se estabeleceu que o teto do funcionalismo é a remuneração dos ministros do STF (R$ 39.300,00), essa passou a ser a meta da elite do funcionalismo.

As carreiras com maior poder de pressão tentam chegar lá por meio de novos penduricalhos. Os auditores da Receita que acabaram de entregar os cargos e realizam “operação padrão” pleiteiam que seja ampliado o seu “bônus de eficiência e produtividade” – o nome é uma ironia, pois se trata de um extra de R$ 3 mil mensais que hoje é distribuído igualmente a todos (inclusive aposentados!). A vida dos advogados da União é ainda melhor: depois que conseguiram contrabandear um dispositivo no Código de Processo Civil, eles vêm recebendo um adicional (os famosos “honorários de sucumbência”) que passou de R$ 10 mil mensais em 2021 (também estendido aos inativos).

Como os salários no Brasil são irredutíveis, só há duas formas de trazer esses rendimentos para próximo da realidade.

Para os servidores atuais, não há muito o que ser feito: apenas resistir aos pleitos de reajuste, e deixar que a inflação corroa seu valor real até que eles se equiparem aos níveis de cargos com igual nível de qualificação e responsabilidade observados no setor privado. É o que vinha sendo feito desde a adoção do teto de gastos, até Bolsonaro passar a desrespeitá-lo sistematicamente.

Para o futuro, há uma agenda de reformulação importante a ser implantada: racionalização dos cargos, com a unificação de atribuições e competências, redução dos vencimentos de entrada para níveis compatíveis com postos semelhantes no setor privado, alongamento das carreiras, adoção de avaliação de desempenho periódica, reestruturação remuneratória (com uma parte fixa, porém baixa, e outra variável de acordo com as metas cumpridas) e a regulamentação da demissão por insuficiência de resultados.

No mito narrado por Hesíodo, após ver que todo tipo de mal estava saindo do jarro que lhe foi confiado por Zeus, Pandora se apressou em tentar fechá-lo para minimizar os danos. Mas já era tarde demais; só havia restado a Esperança. Se o efeito cascata do aumento para a elite do funcionalismo se comprovar, nem ela resistirá.


Jair Bolsonaro, ao lado de Rodrigo Maia (D) e Davi Alcolumbre (E) durante declaração à imprensa no Palácio da Alvorada em 12/08/2020. Foto: Carolina Antunes/PR

Chovendo no molhado

Reforma administrativa precisa de regulamentação, não de PEC

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 14/09/2020.

Em Brasília, sempre que um governante ou ministro quer mostrar serviço, ele prepara uma PEC para ser enviada ao Congresso. O anúncio movimenta a mídia, gera discussões entre especialistas, atiça debates entre parlamentares e, principalmente, passa ao público a impressão de que o governo está realmente empenhado em resolver os muitos e graves problemas nacionais. Propor uma PEC sempre faz muito barulho, mas em geral produz pouco resultado.

Se a classe política estivesse realmente empenhada em realizar uma reforma administrativa para modernizar a gestão de pessoal no serviço público, reduzir distorções nas remunerações em relação ao setor privado e eliminar privilégios de carreiras, não seria necessário enviar nenhuma PEC para o Congresso – bastaria ter a coragem de regulamentar aquilo que já foi inserido na Carta Magna pelos constituintes originais em 1988 e depois pelas reformas encaminhadas pelos presidentes Fernando Henrique e Lula na virada do século.

A estabilidade do servidor público acabou há 22 anos, quando o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional nº 19, determinando que o servidor público poderia perder o cargo caso não fosse aprovado em avaliação periódica de desempenho.

Já os penduricalhos nas remunerações da elite do funcionalismo público (inclusive magistrados, procuradores, servidores do Legislativo e militares) estão limitados aos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal desde 2003, após a aprovação da Emenda Constitucional nº 41.

Desde 1998, também, nossa Constituição define que cada ente federativo deverá estabelecer em lei os requisitos para a entrada no serviço público, os graus de responsabilidade e complexidade dos cargos e os seus respectivos sistemas remuneratórios.

Paulo Guedes pretende submeter os servidores púbicos federais à lógica de meritocracia? Pois bem, em 28/11/1998 FHC enviou para o Congresso o PLP nº 248, disciplinando “a perda de cargo público por insuficiência de desempenho do servidor público estável”. A matéria foi aprovada na Câmara em 1999 e, no início de 2000, passou também pelo crivo do Senado. Como os senadores propuseram modificações, o texto retornou à Câmara, onde tramitou lentamente ao longo das duas últimas décadas.

A boa notícia é que a matéria já foi aprovada pelas comissões e agora aguarda somente a votação em Plenário para ir a sanção presidencial. Dependendo apenas da vontade política do governo e de Rodrigo Maia, os maus servidores públicos poderiam iniciar 2021 podendo ser demitidos por insuficiência de desempenho – sem PEC, sem nada.

Jair Bolsonaro, ao lado de Rodrigo Maia (D) e Davi Alcolumbre (E) durante declaração à imprensa no Palácio da Alvorada em 12/08/2020. Foto: Carolina Antunes/PR
Jair Bolsonaro, ao lado de Rodrigo Maia (D) e Davi Alcolumbre (E) durante declaração à imprensa no Palácio da Alvorada em 12/08/2020. Foto: Carolina Antunes/PR

Agora, se o objetivo for eliminar os adicionais que inflam salários nos três Poderes, fazendo valer, de verdade, o teto remuneratório no serviço público, não é necessário mexer novamente na Constituição, pois essa regra já existe deste 2003. Se o governo realmente quiser extirpar, com uma única canetada, o cipoal de leis e decisões administrativas que concedem toda sorte de acréscimos remuneratórios travestidos de auxílios-moradia, honorários de sucumbência pagos a advogados públicos, bônus de produtividade de fiscais da Receita, ajudas de custos a diplomatas, jetons por participação em conselhos de estatais e por aí vai, só é preciso pressionar pelo avanço do PL nº 6.726/2016.

Elaborado por uma Comissão Especial liderada pelos senadores Antônio Anastasia (PSD/MG) e Kátia Abreu (PP/TO), o projeto que submete todos os agentes públicos aos R$ 39.293,32 mensais recebidos pelos membros da Suprema Corte foi aprovado pelo Senado no final de 2016 e desde o início de 2019 aguarda a decisão do presidente da Câmara para designar a Comissão Especial que vai concluir a sua apreciação, antes de ir a plenário. Já há inclusive um parecer do relator Rubens Bueno (Cidadania/PR) sugerindo a aprovação do projeto, mas a proposta ainda jaz numa das gavetas de Rodrigo Maia.

E mesmo que Bolsonaro não queira afetar a situação dos servidores atuais, Paulo Guedes poderia muito bem tirar do armário de seu ministério os anteprojetos elaborados por integrantes de sua equipe econômica ainda no governo Temer e que reformulam as centenas de carreiras do serviço público federal, reduzem a remuneração de entrada e alongam os prazos para promoções. As propostas já estão prontas desde 2018 e bastaria vontade política do atual ministro da Economia para convencer o presidente a enviá-las ao Congresso de imediato.

Mas se o propósito for reduzir as distorções entre as condições de trabalho entre os setores público e privado, ajudaria muito fazer um pente-fino na Lei nº 8.112/1990, que regulamenta o regime jurídico único dos servidores federais. Alguns desses benefícios têm valor quase simbólico – alguns dias a mais de licença em caso de casamento ou falecimento de familiares próximos, por exemplo. Outras benesses são ainda mais injustificadas, como regimes bem mais generosos do que o oferecido pelo INSS para afastamentos em caso de tratamento de saúde (extensivo a familiares) ou a liberação por até três meses (com remuneração!) para fazer campanha eleitoral caso o funcionário deseje se candidatar a algum cargo eletivo.

Alguns ajustes na legislação dos servidores públicos também poderiam gerar até alguma economia para nossos combalidos cofres públicos, como a restrição da ajuda de custo de até três salários mensais em caso de remoções e a eliminação do auxílio-funeral de um salário extra para a família em caso de falecimento (mesmo se já estiver aposentado). O valor seria irrisório em relação ao monstruoso déficit público atual, mas pelo menos o governo sinalizaria que está realmente empenhado em eliminar distorções que não fazem mais sentido em pleno século XXI.

Bolsonaro e Guedes apenas chovem no molhado ao pensarem que reformularão o serviço público mudando novamente a Constituição. A verdadeira reforma administrativa precisa ser feita via legislação ordinária e complementar. Para isso, não precisamos de PEC, mas sim de coragem para enfrentar as corporações e aprovar projetos que já estão maduros no Congresso Nacional há anos.


Não é o fim do concurso público, mas é o início da reforma administrativa

Medida Provisória nº 922/2020 amplia consideravelmente a possibilidade de contratação temporária no serviço público

Por Bruno Carazza

 

Como todos sabem, no serviço público brasileiro a regra é a contratação por concurso (CF, art. 37, II). Em casos especiais, previstos em lei, a Constituição admite exceções, desde que para "atender a necessidade temporária de excepcional interesse público" (CF, art. 37, IX).

A norma que trata da contratação temporária é a Lei nº 8.745/1993, que originalmente listava poucas situações em que o concurso poderia ser dispensado: calamidades públicas, epidemias, censos demográficos do IBGE, contratação de professores substitutos/visitantes nas universidades públicas e obras e serviços de engenharia realizadas excepcionalmente pelas Forças Armadas.

Ao longo do tempo, os sucessivos governos (de Itamar a Temer) ampliaram o rol de possibilidades de contratação temporária: demarcação territorial, registro de patentes, fiscalização agropecuária, vigilância da Amazônia, serviços de tecnologia da informação, construção e reforma de presídios, crises ambientais, programa Mais Médicos, etc.

A Medida Provisória editada hoje por Bolsonaro estende ainda mais a liberdade do Executivo para realizar contratações temporárias, incluindo:

i) projetos industriais ou de engenharia;

ii) atividades que não sejam técnicas em projetos de cooperação internacional; 

iii) atendimento de demandas pelo aumento do volume de trabalho em qualquer órgão público;

iv) necessidade de redução de processos e de trabalho acumulado em anos anteriores;

v) desempenho de atividades que se tornarão obsoletas no curto e no médio prazo;

vi) atividades preventivas em caso de riscos ambientais, humanitários e de saúde pública;

vii) atendimento humanitário a imigrantes; e

viii) pesquisa e desenvolvimento de produtos e serviços em geral.

Além de criar novas hipóteses de contratação, a MP também flexibiliza seu procedimento em diversos pontos, a saber:

a) Elimina a exigência de ampla divulgação dos editais dos processos seletivos (hoje é necessária inclusive a publicação no Diário Oficial);

b) Dispensa o processo seletivo nos casos de emergência humanitária e situações de iminente risco à sociedade;

c) Amplia as possibilidades de contratação com base apenas nos critérios de "notória capacidade técnica", mediante apenas a análise do currículo do interessado;

d) Estende os prazos de duração dos contratos temporários em muitos casos (variando de 6 meses a 4 anos), bem como a possibilidade de prorrogação do vínculo - que dependendo da atividade poderá chegar até a 8 anos.

Outra grande novidade da Medida Provisória é a possibilidade de recontratação de servidores aposentados para desempenhar atividades específicas (relacionadas às suas antigas atribuições) ou até mesmo gerais. Nesse caso, o aposentado recontratado, além da aposentadoria, receberá um adicional por produtividade (podendo exercer seu trabalho até mesmo à distância) ou por jornada de trabalho, num limite de até 35% do salário da ativa, além de diárias (se necessárias viagens a trabalho) e vales transporte e alimentação.

O ministro Paulo Guedes e o presidente Bolsonaro no Palácio do Planalto, em 06/05/2019. Foto: Isac Nóbrega/PR.

 

MINHA ANÁLISE PRELIMINAR DA MP 922/2020:

1. Pela amplitude das hipóteses de contratação temporária, não resta dúvida de que a MP é o primeiro passo da reforma administrativa de Paulo Guedes;

2. O cenário de realização de novos concursos torna-se bastante sombrio para os próximos anos, pois de um lado o governo poderá contratar temporários para uma ampla gama de serviços e, de outro, existe um exército de servidores aposentados que, aposentados, estarão disponíveis para continuar executando o trabalho que exerciam antes de pendurar as chuteiras;

3. A possibilidade de recontratação de aposentados é claramente um agrado à categoria dos servidores públicos, pois suaviza as perdas decorrentes da reforma da previdência e, assim, reduz resistência às outras etapas da reforma administrativa.

4. A MP é excessivamente vaga nas suas hipóteses, o que poderá levar a muitos questionamentos judiciais com acusações de burla ao mandamento constitucional de realização de concurso público.

5. Apesar da boa intenção de introduzir métricas de produtividade e de pagamento por tarefas, o governo ainda não explicou como pretende fazer isso na prática.

6. E o que é mais grave para mim: A frouxidão dos critérios de dispensa do processo seletivo e a possibilidade de contratação por "notória capacidade técnica" aumentam o risco de favorecimento pessoal e indicações políticas, abrindo o caminho para novos casos de corrupção.

Segue a íntegra da MP: planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato

Para concluir, esta é a redação da Lei nº 8.745 já com as novas alterações: planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS


O incrível caso do governador que deu um tiro no pé

Romeu Zema cria uma armadilha para si mesmo ao propor reajuste de militares

Por Bruno Carazza.

 

"Romeu, Romeu, ah, por que és tu, Romeu?", se questionava Julieta ao ver seu amado colocando-se em perigo por causa da rivalidade entre as famílias Capuleto e Montéquio.

Pois no início deste mês, um outro Romeu, o governador de Minas Romeu Zema (Novo), enviou um projeto de lei para Assembleia Legislativa reajustando os salários de todas as categorias das polícias civil, militar, bombeiros e agentes penitenciários no Estado.

A proposta era a seguinte: 13% de aumento em julho de 2020; seguido de um outro reajuste de 12% de em setembro de 2021 e, no seu último ano de governo, mais 12% em setembro de 2022. É bom lembrar que, graças ao direito de paridade entre ativos e inativos, o incremento na remuneração beneficiaria também aposentados e pensionistas

Ainda durante a tramitação do PL na Comissão de Constituição e Justiça, o mesmo Zema enviou mensagem para o presidente da Assembleia solicitando a inclusão, no reajuste, das carreiras administrativas da Secretaria de Justiça e Segurança Pública.

De acordo com o informado pela Secretaria de Planejamento e Gestão, o impacto do aumento seria de: R$ 1,1 bilhão em 2020, R$ 2,85 bilhões em 2021 e R$ 5,6 bilhões em 2022.

Todos sabem que Minas Gerais tem uma das piores situações fiscais entre os estados brasileiros, com serviços públicos sendo comprometidos e salários do funcionalismo pagos há anos em parcelas.

Apesar dessa grave realidade, a Comissão de Fiscalização Financeira e Orçamentária da Assembleia concluiu (sem estudo algum!) que "a situação do Poder Executivo perante os limites estabelecidos na LRF não constitui impedimento para a concessão da recomposição pleiteada".

Lá na roça tem um ditado que diz que porteira onde passa um boi, passa uma boiada. Diante do reajuste a ser concedido aos militares e outras carreiras da segurança pública, o plenário da Assembleia aprovou uma emenda proposta por um grupo de deputados estendendo os aumentos para:

1) Professores e profissionais da Educação: 12,84% retroativos a jan/2020 + 4,17% retroativos a jan/19 + 6,81% retroativos a jan/18 + 7,64% retroativos a jan/17 + incorporação de um abono salarial e uma gratificação temporária concedidos no passado;

2) Demais servidores (dos cargos mais baixos da saúde até os super bem remunerados fiscais da Receita e Advogados do Estado): reajuste de 28,82% a partir de 01/07/2020.

3) Todos os aposentados e pensionistas do Estado, que têm direito a paridade: reajuste de 28,82%.

A mesma Comissão de (veja bem o nome!) Fiscalização Financeira e Orçamentária da Assembleia aprovou a emenda sem sequer se questionar sobre qual o impacto fiscal da medida. Estimativas não oficiais falam em R$ 20 bilhões nos próximos 3 anos.

A justificativa para a aprovação do reajuste mesmo diante do caos fiscal enfrentado por Minas Gerais é que a Lei de Responsabilidade Fiscal autoriza União, Estados e Municípios a concederem reajustes salariais, mesmo quando extrapolados todos os limites prudenciais de comprometimento da receita com gastos de pessoal, se eles se destinam à revisão geral anual prevista na Constituição Federal.

O governador de Minas, Romeu Zema (Novo), participa de cerimônia com militares em dezembro. Foto: Pedro Gontijo/Imprensa MG.

Como em Minas, do governador aos deputados estaduais, ninguém parece estar preocupado com a situação fiscal do Estado, o projeto, incluindo a emenda, foi aprovado em tempo recorde, em dois turnos, ontem (19/02).

Vale chamar a atenção para a frase da deputada Beatriz Cerqueira (PT), autora da emenda-bomba: “Se formos fazer o debate técnico, não há recursos para ninguém, mas o debate é político. Não é possível o governador ignorar 70% do funcionalismo”.

Como diria meu amigo Guilherme Tinoco no twitter (@gtinocolh), "não existe nova e velha política; existe política boa e ruim". E por aqui em Minas Gerais, do Novo ao PT, todos ainda estão na péssima política do populismo e da irresponsabilidade fiscal.

Agora Zema tem diante de si três opções: 1) veta o projeto integralmente (e se indispõe contra servidores civis E militares); 2) veta apenas a emenda dos civis (e passa os próximos 3 anos enfrentando greves na saúde, educação, etc., por ter privilegiado os policiais) ou 3) sanciona (e quebra Minas Gerais de vez). É o famoso tiro no pé.

Qualquer que seja sua decisão, a falta de habilidade política e a fraqueza para suportar pressões do governador Romeu Zema (Novo), somadas à total irresponsabilidade fiscal da Assembleia Legislativa, empurram Minas Gerais para o abismo e o caos social.

E agora? O governador que se elegeu prometendo arrumar a casa, encarando os privilégios, vai ter coragem de vetar a lei e desarmar a armadilha que criou para si mesmo? Como diria a Julieta, de Shakespeare: "Ó meu gentil Romeu! Se amas [a responsabilidade fiscal], proclama-o com sinceridade"!

 


O funcionalismo não é mais aquele?

Reforma administrativa no RS pode servir de exemplo

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 03/02/2020.

 

“Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra”. Assim diz o refrão do hino gaúcho, que tem origem na Revolução Farroupilha (1835-1845), quando a então província de São Pedro do Rio Grande do Sul se levantou contra o Império brasileiro, reivindicando maior autonomia, menor tributação de sua produção e, ao fim, proclamando-se uma república independente. Não por acaso, “Novas façanhas” foi o lema escolhido pelo governador Eduardo Leite (PSDB) para ser a marca da sua gestão.

Na semana passada, o jovem governador conseguiu um feito que merece ser cantado em verso e prosa. O tucano convocou extraordinariamente a Assembleia Legislativa e, num esforço concentrado de apenas três dias, conseguiu aprovar um pacote de sete medidas que incluem a aplicação das novas regras da Previdência no Estado, uma reforma administrativa para os servidores e novos planos de carreira para professores e policiais civis e militares.

Enquanto a maioria dos Estados brasileiros, mesmo diante de uma grave crise fiscal, enfrenta uma paralisia decisória, esperando soluções vindas da União, Eduardo Leite vem mostrando resultados expressivos. A que podemos atribuir um desempenho legislativo tão superior a outras administrações que se elegeram igualmente com o discurso da renovação e da necessidade de adoção de medidas duras de ajuste, como Romeu Zema (Novo/MG) e Wilson Witzel (PSC/RJ)?

Três fatores parecem ter contado para a bem-sucedida gestão de Eduardo Leite até o momento: i) uma equipe de excelente qualidade técnica, alguns deles recrutados em outros Estados do país, ii) a construção de uma ampla base de apoio na Assembleia, envolvendo deputados de todos os partidos representados, com exceção de PT, PDT e Psol; e iii) o empenho pessoal do governador em enfrentar categorias com grande poder de mobilização e pressão, como professores e militares. Com relação a esse terceiro tópico, a aprovação das reformas no Rio Grande do Sul indica que algo está mudando na correlação de forças na sociedade brasileira.

Começou com a PEC da Previdência de Paulo Guedes e Rodrigo Maia. A maioria dos analistas prevíamos uma tramitação demorada, dada a tradicional resistência do funcionalismo público contra o aumento da idade mínima e a elevação das alíquotas de contribuição. No entanto, a reforma passou em poucos meses e com escassas concessões ao lobby corporativista. O sucesso na Previdência foi tanto que a equipe econômica de Bolsonaro logo se animou a propor a chamada PEC Emergencial – cuja principal medida é a possibilidade de redução da carga horária e dos salários dos servidores em até 25% – e a elaborar um projeto de reforma administrativa.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, se reúne com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - Foto: Rodger Timm / Palácio Piratini

Os governantes em geral sempre tiveram medo de enfrentar os privilégios do funcionalismo público. Além de organizados em sindicatos e associações fortes, algumas carreiras têm condições de paralisar o funcionamento da máquina pública caso cruzem os braços e outras podem azucrinar a vida de políticos com o vazamento de informações ou a abertura de investigações. Por que motivo então esses grupos de interesses tão articulados, mobilizados e com grande poder de barganha vêm sofrendo seguidas derrotas, inclusive em nível local, como acabou de ocorrer nos pampas?

A explicação pode residir numa combinação de elementos que indicam como a sociedade brasileira tem mudado nos últimos tempos. Circunstâncias demográficas, econômicas e políticas parecem indicar que a maré se tornou desfavorável para os servidores públicos.

De um lado, os protestos de 2013 vocalizaram uma percepção que estava latente entre os cidadãos: a má qualidade dos serviços prestados pelo Estado. O sentimento de revolta expresso nos cartazes que pediam saúde, educação e segurança “padrão Fifa” foi muito bem captado por uma nova geração de políticos que ascendeu ao poder com promessas de renovação e foco na gestão em lugar da velha política.

Para completar, a disseminação de ferramentas de transparência colocou sob holofotes, quase cotidianamente, situações de servidores ganhando muito acima da realidade brasileira. Nas eleições de 2018, o combate aos privilégios no serviço público fez parte do programa de governo de todos os principais candidatos, de Amoêdo a Boulos, passando por Bolsonaro, Alckmin, Meirelles, Marina, Haddad e Ciro.

Por outro lado, a precarização das relações de trabalho – expressa tanto pela terceirização de atividades quanto pela uberização dos serviços – fez com que uma parcela expressiva da população migrasse da categoria de trabalhadores para “empreendedores”. De acordo com a PNAD Contínua divulgada na última sexta-feira, são 29 milhões brasileiros atuando como empregadores ou trabalhadores por conta própria – o que representa quase um terço da mão-de-obra ocupada no país. Soma-se a isso o fato de que várias pesquisas têm apontado o crescimento das denominações evangélicas, que além de preceitos religiosos vêm disseminando uma mentalidade de maior protagonismo pessoal visando o progresso, inclusive material, de seus fiéis.

Para boa parte da sociedade, o Estado brasileiro – com seu excesso de burocracia, tributação elevada e péssimos serviços públicos – passou a ser visto como um obstáculo, e não como uma proteção. Não é de se surpreender, portanto, como o discurso liberal vem ganhando força na população brasileira, embalado pelas promessas de que um Estado menor e mais eficiente estimulará o crescimento do país. E na esteira desse pensamento, a indignação contra os privilégios de algumas categorias de servidores públicos tem se generalizado.

A ascensão ao poder, no âmbito federal e em muitos Estados e municípios, de uma nova leva de dirigentes e parlamentares comprometidos com uma agenda liberal, combinada com uma sociedade cada vez mais contaminada pelo espírito empreendedor, representa uma tempestade perfeita contra o funcionalismo público. E a façanha do governador gaúcho de aprovar uma reforma administrativa com tanta facilidade pode servir de exemplo a todo o país, como diz seu hino.


“Farinha pouca, meu pirão primeiro”: Aumento do funcionalismo, rent seeking e presidencialismo de coalizão no Brasil

Aprovação do aumento para diversas carreiras do funcionalismo na Câmara dos Deputados revela como o presidencialismo de coalizão brasileiro torna-se refém dos grupos de interesses

“Esse aumento já está precificado no Orçamento, então, optamos por dar logo e tirar esse assunto da frente. Quanto mais demora, mais chance o governo estará dando para os servidores se mobilizarem por novo reajuste — disse um interlocutor palaciano”.

 

Na noite de quarta para quinta-feira a Câmara dos Deputados aprovou 14 (sim, você leu bem: QUATORZE) projetos de lei reajustando as remunerações de diversas carreiras do funcionalismo federal dos três Poderes e mais o Ministério Público (“o quarto poder”) – a íntegra deles pode ser consultada aqui. Além do impacto bilionário num contexto em que o país enfrenta grave crise fiscal – seriam R$ 64 bilhões até 2019 –, essa medida expõe a forma pela qual o sistema político brasileiro torna-se refém de grupos de interesses – como algumas carreiras de servidores públicos.

A literatura especializada sobre o presidencialismo de coalizão brasileiro considera que nosso país encontrou uma maneira razoavelmente estável de funcionar politicamente: atribuindo grandes poderes ao Poder Executivo (medidas provisórias, controle sobre o orçamento, milhares de cargos em comissão, centenas de estatais) e aos líderes partidários no Congresso, a maioria dos Presidentes conseguiu aprovar seus projetos de maneira previsível e com alta disciplina partidária (a referência básica de leitura aqui são os textos de Fernando Limongi e Argelina Cheibub). Quando esse sistema não funcionou, os Presidentes (Collor e Dilma) sucumbiram ao jogo político e caíram via impeachment. Embora esse modelo seja muito convincente para analisar a governabilidade no Brasil, meu argumento é que o presidencialismo de coalizão brasileiro facilita a ação dos grupos de interesses, e o futuro aumento dos rendimentos dessas carreiras ilustra bem como isso funciona.

Nos idos de 1965, o cientista político e economista Mancur Olson publicou um clássico que revolucionou a análise dos grupos sociais enquanto atores políticos. Simplificando radicalmente as várias conclusões d’A Lógica da Ação Coletiva, grupos com interesses econômicos bem definidos, com grande capacidade de organização e relativamente poucos membros têm mais chances de garantir vantagens do Estado à custa daqueles que não conseguem se organizar para evitá-las (e a razão para isso vem do famoso problema do carona: “se eu não vou ganhar quase nada diretamente com isso, vou me envolver pra quê?”).

No caso do reajuste do funcionalismo, temos claramente essa situação: sindicatos de algumas carreiras com maior poder de mobilização e membros de Poderes com grande poder de pressão (em tempos de Lava Jato, não é recomendável desagradar juízes e procuradores) estão em vias de conseguir reajustes que vão deteriorar ainda mais a situação fiscal do país. E essas benesses serão custeadas por toda a sociedade, por meio de cortes em outros programas governamentais, aumento de impostos, inflação, aumento de juros (quando o lado fiscal não ajuda, a dose do remédio monetário tem que ser mais forte e mais amarga) ou “tudo isto ao mesmo tempo agora”.

Olson não chegou a viver em tempos de popularização da internet e das redes sociais (ele faleceu em 1998), mas sua prescrição continua atual: o máximo de reação que essa injustiça terá da coletividade dos brasileiros será algumas reportagens na imprensa e alguns posts indignados no facebook e no twitter, e o reajuste será sacramentado pelo Senado nos próximos dias e sancionado pelo novo Presidente da República.

A ação de grupos de interesses no Brasil – de servidores públicos a grandes empresas, de ruralistas a igrejas evangélicas – é facilitada pela forma como nosso presidencialismo de coalizão funciona. Num sistema político em que o Presidente depende de uma base muito ampla e heterogênea de partidos com fraquíssima identidade ideológica e parlamentares escolhidos em eleições em que se depende sobremaneira de doações de campanha e/ou exposição na mídia ou a grupos específicos (sindicatos, igrejas, movimentos sociais, etc.), as medidas de interesse do governo são geralmente aprovadas, como preveem os modelos da Ciência Política brasileira, mas a um custo muito alto. E neste preço são incluídos os privilégios a quem consegue ter acesso aos canais certos – ao próprio Presidente da República ou a seus Ministros, aos líderes partidários, aos presidentes de comissões, aos relatores dos projetos, etc.

A frase que abre esta postagem ilustra bem como esses assuntos são tratados. O aumento dos servidores é visto pelas autoridades simplesmente como um empecilho a ser retirado da pauta para o Presidente da República aprovar as principais medidas de seu programa de governo: mesmo que esse reajuste custe bilhões aos contribuintes, mesmo que ele afete a vida de milhões que sofrerão com cortes em programas ou projetos sociais, mesmo que ele sinalize para o mercado que o governo não se preocupa com a sustentabilidade fiscal.

As carreiras a serem beneficiadas pelos aumentos valem-se de seu acesso privilegiado ao Poder para pressionar por benefícios mesmo sem, muitas vezes, fazer por merecê-los. [A partir desta parte eu estou correndo o sério risco de me indispor com vários amigos e a jogar contra o meu próprio interesse particular, uma vez que faço parte de uma das carreiras a serem beneficiadas pelo aumento].

Os Ministros do Supremo Tribunal Federal argumentam que o aumento de seus subsídios para R$ 39.293,32 a partir de 01/01/2017 não cobrem a inflação dos últimos anos. Eles têm razão: desde 01/01/2005 a inflação foi de 93%, enquanto seus rendimentos subirão “apenas” 82,75%. Mas é preciso tratar a questão com um pouco mais de cuidado.

É claro que os onze Ministros do STF, por serem a cúpula do sistema judiciário brasileiro, têm uma elevadíssima responsabilidade, e devem receber muito bem. Por isso, não questiono que recebam quase R$ 40 mil mensais. O problema é que o estabelecimento dessa remuneração como teto para o funcionalismo instigou diversas carreiras a pressionar para serem incluídas nesse sistema e, assim, conseguir reajustes automáticos a reboque.

Atualmente, o reajuste dos subsídios dos ministros do STF se espraia para todos os membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública – além de outros agentes públicos eleitos. Mas todo sindicado de carreiras tem como uma de suas plataformas políticas principais incluir suas atividades no rol daquelas “funções essenciais” da Constituição e, assim, cristalizar seus ganhos como uma percentagem (90,25% é o número mágico!) dos pagamentos feitos aos Ministros do STF.

Nesse cenário, mesmo que essas carreiras do funcionalismo com maior poder de organização e pressão sobre os postos-chave de nosso presidencialismo de coalizão ainda não tenham alcançado sucesso nessa campanha, os ganhos da cúpula do Judiciário tornaram-se o parâmetro para as negociações salariais – e eles vêm obtendo reajustes significativos nas duas últimas décadas. Os gráficos abaixo apresentam dados extraídos do Boletim Estatístico de Pessoal do Ministério do Planejamento com os salários iniciais e máximos de algumas dessas carreiras “típicas de Estado” e sua evolução em relação à inflação.

início

topo

inflação

 

Como se vê pelos gráficos, a questão de fundo colocada pelo reajuste dos servidores não é de variação (ou seja, recomposição de inflação), mas sim de nível. Com o sistema posto no Brasil, os salários médios de uma parcela não desprezível dos funcionários públicos federais, com grande poder de organização e pressão, alcançaram patamares fora da realidade – ainda mais uma realidade marcada por grave crise fiscal, desemprego e recessão que assolam a população brasileira.

Esse quadro torna-se ainda mais grave quando se verifica que servidores com salários médios em torno de R$ 20 mil, ou juízes, procuradores e defensores públicos ganhando R$ 30 mil mensais (fora os 60 dias de férias anuais, auxílio moradia e outros privilégios) são amparados por estabilidade no emprego – não é formal, mas acaba sendo de fato – e não estão sujeitos a sistemas efetivos de avaliação de resultados.

Corrigir essa distorção é tarefa hercúlea: seriam necessários pelo menos rever o sistema de remuneração e avaliação de pessoal, criar instituições para avaliar os resultados do gasto público e reformar o sistema orçamentário (afinal, simplesmente aumentar a meta do déficit não deve ser a solução). O problema é que governos fracos são especialmente vulneráveis a comportamentos oportunistas de grupos de interesses bem organizados. Como a responsabilidade fiscal ainda não se tornou um valor inquestionável na sociedade brasileira, o mais provável que ela continue refém dos grupos de interesses – e os servidores públicos são apenas um deles.