O Assunto #625: A panela de pressão do funcionalismo

Neste episódio, O Assunto procura entender distorções e suas consequências conversando com os economistas Bruno Carazza e Daniel Duque.

19/01/2022

Os atos desta terça-feira em Brasília são o capítulo mais recente de um movimento que começou ainda em 2021, quando Jair Bolsonaro operou para que fosse incluído, no Orçamento deste ano, R$ 1,7 bilhão destinado a reajustar os salários dos policiais federais, cujo apoio o presidente espera obter nas urnas em outubro. O tratamento diferenciado deflagrou reivindicações de servidores da Receita Federal e do BC, principalmente, mas reverbera em dezenas de outras categorias, com gestos de advertência e ameaças de paralisação. Neste episódio, O Assunto procura entender distorções e suas consequências conversando com os economistas Bruno Carazza e Daniel Duque. "É um grupo articulado e poderoso da administração pública", diz Carazza, doutor em direito e colunista do Valor Econômico, sobre os setores que lideram a atual temporada de reivindicações. Ele, que finaliza um livro a respeito do tema, resgata as origens da disparidade de remuneração e defende uma reforma que “racionalize carreiras e institua um sistema sério de avaliação". Pesquisador do Ibre-FGV, Duque detalha estudo comparativo da evolução salarial de diferentes categorias na última década, mostrando quem ganhou e quem perdeu da inflação. E chama a atenção para uma peculiaridade nacional: “O Brasil gasta com o Judiciário 3 vezes mais do que países desenvolvidos. Temos essa jabuticaba para resolver”.

Acesse: https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2022/01/19/o-assunto-625-a-panela-de-pressao-do-funcionalismo.ghtml

 


CNN 360º: Crise do funcionalismo

Thais Herédia analisa paralisação dos servidores da elite do funcionalismo público federal por reajustes salariais com estudo de Bruno Carazza.

18/01/2022

https://youtu.be/cAICd5E68Os?t=1100


CNN Live: Entenda como estão as negociações com servidores que ameaçam fazer greve

Especialista do assunto da Fundação Dom Cabral, Bruno Carazza, explica que esses funcionários públicos estão mirando como salário o teto do funcionalismo público. Por exemplo, o reajuste que a PF quer para seus servidores prevê que um delegado ganhe cerca de R$ 40 mil, mesmo salário que ganha um ministro do STF.

13/01/2022

Para economistas ouvidos pela analista de economia da CNN Priscila Yazbek, o principal problema é que não há espaço no teto de gastos, uma discussão que foi levada durante todo o ano passado, em meio à tramitação da PEC dos precatórios no Congresso, que abre espaço ao Auxílio Brasil no orçamento.

Os servidores federais já ganham bem mais que os empregados da iniciativa privada, como já mostraram diversos estudos, e existe desigualdade salarial dentro do próprio funcionalismo publico federal.

Especialista do assunto da Fundação Dom Cabral, Bruno Carazza, explica que esses funcionários públicos estão mirando como salário o teto do funcionalismo público. Por exemplo, o reajuste que a PF quer para seus servidores prevê que um delegado ganhe cerca de R$ 40 mil, mesmo salário que ganha um ministro do STF.

Mas, ainda assim, o especialista ouvido pela analista da CNN diz que ainda tem dúvidas se o reajuste será aprovado, porque quase todas as decisões de Bolsonaro recentes têm sido tomadas no sentido de fragilização da responsabilidade fiscal.

Outro fator é que são categorias que conseguem fazer pressão muito grande, travar a máquina pública, o que torna ainda mais incerto o futuro dessa questão.

Acesse: https://www.cnnbrasil.com.br/business/servidores-prometem-greve-para-terca-18-entenda-em-que-pe-estao-as-negociacoes/


CNN Novo Dia: Servidores entregam cargos comissionados por reajuste

Bruno Carazza é entrevistado por Rafael Colombo e Priscila Yazbek sobre pressões por reajustes para o funcionalismo público.

05/01/2022

A concessão que o governo fez a policiais federais ao acordar aumento exclusivo para a categoria pode gerar um efeito dominó, com uma forte pressão sobre o presidente Jair Bolsonaro em ano de eleição para que outras categorias da elite do funcionalismo também recebam reajustes.

“Num cenário de grande crise fiscal que o Brasil enfrenta, tudo isso mostra que estamos seguindo um caminho perigoso em ano eleitoral”, disse à CNN o mestre em economia e doutor em direito Bruno Carazza.

Para o especialista, há risco iminente de novas concessões, já que as reivindicações por salários devem vir de grupos de funcionários de alto escalão e com grande poder de articulação, que podem implicar desgaste do governo em ano eleitoral.

Ele classifica como parte da elite desse funcionalismo fiscais da receita, analistas do Banco Central, gestores governamentais, diplomatas, advogados públicos, entre outros, responsáveis por atividades como arrecadação tributária, fiscalização das instituições financeiras e execução do Orçamento.

Leia mais: https://www.cnnbrasil.com.br/business/aumento-geral-para-elite-do-setor-publico-e-caminho-perigoso-diz-especialista/

 

https://youtu.be/Ekk6NSl2Jvs


A elite e seu próprio umbigo

Pressão por reajuste de servidores evidencia distorções

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 27/12/2021.

 

Jair Bolsonaro abriu a caixa de Pandora. Ao decidir conceder um reajuste salarial para policiais federais, despertou a inveja, a cobiça e o ciúme das demais carreiras do topo do serviço público brasileiro. Imediatamente, auditores da Receita entregaram seus cargos comissionados, assim como associações de servidores anunciam para janeiro uma paralização dos trabalhos.

Existem inúmeras razões para se pagar bem os empregados do Estado. Altos salários atraem bons profissionais, o que em tese melhora a qualidade dos serviços prestados. Um corpo técnico bem remunerado, também na teoria, é menos propenso a ser capturado pelos interesses do setor privado ou por políticos poderosos, protegendo as políticas públicas dos vícios do patrimonialismo, do lobby ou da corrupção pura e simples.

No Brasil, porém, bons princípios são sempre distorcidos pelo corporativismo e utilizados para justificar o injustificável.

O economista Roberto Macedo foi um dos primeiros a mergulhar nos dados e a comparar, com rigor estatístico, as diferenças salariais entre o setor público e privado no Brasil. Coletando informações de centenas de milhares de trabalhadores de companhias estatais e particulares em 1981, e controlando os testes econométricos segundo setor da economia, gênero, idade, escolaridade, ocupação e anos de experiência dos trabalhadores, o professor da USP constatou que os empregados nas estatais ganhavam quase o quádruplo do que os do setor privado, e que uma parcela expressiva dessa diferença (entre 26% e 83%, a depender da ponderação) não era explicada pelos perfis distintos da mão-de-obra entre os dois segmentos. Havia, portanto, um robusto prêmio salarial pago aos empregados públicos simplesmente porque eles eram... empregados públicos.

Desde o trabalho pioneiro de Macedo, dezenas de pesquisas vêm reforçando a mesma constatação: servidores do Estado ganham mais do que trabalhadores do setor privado, mesmo descontando as características pessoais (sobretudo de escolaridade e experiência de trabalho) entre eles. Esses resultados não levam em conta, ainda, o mais generoso dos benefícios indiretos: a estabilidade no emprego. Isso, como o velho comercial dizia, “não tem preço”.

Mas há servidores e servidores. Aqueles que estão na ponta do atendimento ao cidadão, como professores da educação básica ou técnicos de enfermagem nos centros de saúde, recebem, em média, menos do que seus pares do setor privado. Mas quando se avança para os cargos burocráticos de mais alto nível, a desigualdade muda de direção.

Jair Bolsonaro durante visita a grupo de Policiais Rodoviários Federais. Foto: Carolina Antunes/PR

Advogados da União, fiscais da Receita, gestores governamentais, auditores do Tesouro e da CGU, diplomatas, analistas do Banco Central, pesquisadores do Ipea e policiais federais constituem a elite do Poder Executivo Federal.

Esses servidores, logo após aprovados em concurso, já começam a receber entre R$ 19.197,06 (no caso das carreiras do ciclo de gestão) e R$ 21.020,09 (fiscais e advogados públicos). Os delegados da Polícia Federal, que pressionam Bolsonaro por aumento, têm remuneração inicial de R$ 23.692,24.

Esses vencimentos, para o começo de profissão, são muito superiores a seus equivalentes no setor privado. Apenas em termos de comparação, um advogado júnior num dos maiores escritórios de São Paulo ganha em torno de R$ 6.000 mensais, assim como um gerente de auditoria numa das “big four” (Deloitte, E&Y, KPMG e PwC) recebe em torno de R$ 8.000 por mês, segundo o site Glassdoor.

Além de começarem ganhando muito bem, as trajetórias profissionais na nata do Poder Executivo federal são curtas. Em tese, um gestor ou auditor de finanças e controle chega ao topo em 13 anos – e para chegar até lá não há um processo rigoroso de avaliação de desempenho. Assim, em pouco tempo estão recebendo entre R$ 27.300 (técnicos do Bacen, do Tesouro e da CGU) e R$ 30.900 por mês (os delegados da PF).

Mas desde que se estabeleceu que o teto do funcionalismo é a remuneração dos ministros do STF (R$ 39.300,00), essa passou a ser a meta da elite do funcionalismo.

As carreiras com maior poder de pressão tentam chegar lá por meio de novos penduricalhos. Os auditores da Receita que acabaram de entregar os cargos e realizam “operação padrão” pleiteiam que seja ampliado o seu “bônus de eficiência e produtividade” – o nome é uma ironia, pois se trata de um extra de R$ 3 mil mensais que hoje é distribuído igualmente a todos (inclusive aposentados!). A vida dos advogados da União é ainda melhor: depois que conseguiram contrabandear um dispositivo no Código de Processo Civil, eles vêm recebendo um adicional (os famosos “honorários de sucumbência”) que passou de R$ 10 mil mensais em 2021 (também estendido aos inativos).

Como os salários no Brasil são irredutíveis, só há duas formas de trazer esses rendimentos para próximo da realidade.

Para os servidores atuais, não há muito o que ser feito: apenas resistir aos pleitos de reajuste, e deixar que a inflação corroa seu valor real até que eles se equiparem aos níveis de cargos com igual nível de qualificação e responsabilidade observados no setor privado. É o que vinha sendo feito desde a adoção do teto de gastos, até Bolsonaro passar a desrespeitá-lo sistematicamente.

Para o futuro, há uma agenda de reformulação importante a ser implantada: racionalização dos cargos, com a unificação de atribuições e competências, redução dos vencimentos de entrada para níveis compatíveis com postos semelhantes no setor privado, alongamento das carreiras, adoção de avaliação de desempenho periódica, reestruturação remuneratória (com uma parte fixa, porém baixa, e outra variável de acordo com as metas cumpridas) e a regulamentação da demissão por insuficiência de resultados.

No mito narrado por Hesíodo, após ver que todo tipo de mal estava saindo do jarro que lhe foi confiado por Zeus, Pandora se apressou em tentar fechá-lo para minimizar os danos. Mas já era tarde demais; só havia restado a Esperança. Se o efeito cascata do aumento para a elite do funcionalismo se comprovar, nem ela resistirá.


Realidades paralelas

O caminho da agenda legislativa de Bolsonaro tem muitos atalhos e desvios

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 08/02/2021.

 

Imagine-se em 2022. No auge da campanha, o candidato à reeleição é questionado sobre seus feitos durante o mandato. A pandemia atrapalhou muito os seus planos, mas com a vacinação já avançada, o pior havia ficado para trás. E o mais importante: a economia voltara a crescer.

Além disso, graças à sua parceria com os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, uma ampla agenda de projetos havia sido aprovada, deixando o país pronto para decolar nos próximos quatro anos.

Aguardada por décadas, a reforma tributária iniciou um processo de simplificação gradual de impostos federais, estaduais e municipais, reduzindo bastante a burocracia. A aliança com o Centrão venceu a resistência das corporações de servidores públicos e, com o novo Pacto Federativo e a reforma administrativa, seria possível começar a colocar as contas em ordem.

Tantas vezes questionado, Paulo Guedes deu a volta por cima com os novos marcos regulatórios para os setores de petróleo, gás natural, energia elétrica, ferrovias e navegação. Um novo ciclo de crescimento, liderado pelo investimento privado, estava prestes a começar – e a privatização da Eletrobrás, anunciada para os próximos meses, não deixava nenhuma dúvida quanto a isso.

Depois que os principais países do mundo controlaram a covid, em meados de 2021, um incrível boom de commodities impulsionou a mineração e o agronegócio brasileiros. Com a simplificação do licenciamento ambiental, a regularização fundiária na Amazônia e a autorização para a extração mineral em terras indígenas, as exportações brasileiras bateram novo recorde. A entrada de dólares no país foi beneficiada pelas novas regras no mercado de câmbio e o novo Banco Central independente.

Mas não era só na economia que o presidente tinha resultados a entregar aos seus eleitores. No campo da segurança pública, as forças policiais agora tinham melhores condições de combater o crime com a exclusão de ilicitude nas operações para Garantia de Lei e Ordem. Os agentes públicos puderam se proteger melhor depois que cada um ganhou autorização para adquirir até dez armas de fogo. Cidadãos de bem, associados aos clubes de Colecionadores, Atiradores e Caçadores, também foram beneficiados com uma legislação mais permissiva para a compra de armamento e munição.

Depois de indicar um ministro terrivelmente evangélico para o Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro e a ministra Damares Alves anunciaram a abertura das inscrições para o homeschooling em 2023. Contra as críticas de que a medida poderia aumentar o número de crianças abusadas sexualmente, eles citaram as novas leis que aumentaram as penas e tornaram hediondos os crimes sexuais contra menores e a pedofilia.

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Entre a intenção e a realidade há uma enorme distância: 513 deputados, 81 senadores e dezenas de votações em comissões e no plenário das duas casas legislativas. Soma-se a isso a resistência da opinião pública e de grupos com interesses divergentes influenciando o jogo.

O anúncio da agenda prioritária do governo servirá de métrica para indicar se o novo casamento de Bolsonaro com o Centrão renderá ganhos eleitorais no ano que vem.

Há frutos fáceis de serem colhidos. Na área econômica, a autonomia do Banco Central, os limites mais restritos para o teto remuneratório no serviço público e a nova lei do gás natural já passaram pelo Senado e estão prontos para serem votados na Câmara. Trilhando o caminho inverso, as novas normas para a navegação de cabotagem e para o gás natural aguardam serem pautadas no plenário do Senado, para daí irem à sanção presidencial.

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, faz apresentação na Comissão Mista de Orçamentos em 20/11/2019. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

O pacote fiscal de Paulo Guedes, porém, mal começou a tramitar. O trio das PECs Emergencial, do novo Pacto Federativo e dos fundos públicos ainda aguardam parecer do relator – e a reforma administrativa nem relator tem. Para virarem realidade, precisam ser aprovadas em dois turnos por pelo menos 308 deputados e 49 senadores. Até lá ainda haverá audiências públicas, debates em comissões, manobras para adiamento de votação. Enfim, it’s a long and winding road.

Pior é o caso da reforma tributária, para a qual não há acordo sobre qual modelo deve prosperar: se o da Câmara (PEC nº 45/2019), do Senado (PEC nº 110/2019) ou a alternativa ainda incompleta de Paulo Guedes (PL nº 3.887/2020). Como diz o velho ditado: nenhum vento é favorável quando não se sabe para onde ir.

Na questão ambiental, tanto a regularização fundiária quanto a mineração em terras indígenas ainda não começaram a andar, embora a proposta sobre licenciamento esteja avançada na Câmara. Todas elas, contudo, enfrentarão forte resistência não só de ambientalistas, mas de países comprometidos com o clima – agora reforçados pelos Estados Unidos, com Biden na presidência.

Por fim, na pauta de segurança pública e costumes, com a exceção do PL nº 3.723/2019, que facilita a aquisição de armas por policiais e já foi aprovado na Câmara, as demais proposições ainda estão em estágio inicial de análise.

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É bem verdade que existe um repertório imenso de possibilidades para se pular etapas e se dispensar exigências do processo legislativo. Tudo depende de uma sintonia fina entre o Palácio do Planalto, os presidentes da Câmara e do Senado e os líderes dos partidos. A vitória de Lira e Pacheco foi um importante passo; porém, como num casamento, Bolsonaro terá que cultivar a relação com o Centrão dia a dia.

Também é importante não ter ilusões. Ainda que as PECs sejam aprovadas, os investimentos não inundarão o país imediatamente, pois em geral se exige regulamentação e, sobretudo, estabilidade política e econômica. Aliás, se a PEC Emergencial passar, o presidente terá coragem de cortar despesas mesmo em ano eleitoral?

Se os resultados econômicos podem demorar a chegar, mais armas nas ruas e menos rigor com o meio ambiente, por sua vez, têm efeitos imediatos. E eles, infelizmente, são irreversíveis.


Jair Bolsonaro, ao lado de Rodrigo Maia (D) e Davi Alcolumbre (E) durante declaração à imprensa no Palácio da Alvorada em 12/08/2020. Foto: Carolina Antunes/PR

Chovendo no molhado

Reforma administrativa precisa de regulamentação, não de PEC

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 14/09/2020.

Em Brasília, sempre que um governante ou ministro quer mostrar serviço, ele prepara uma PEC para ser enviada ao Congresso. O anúncio movimenta a mídia, gera discussões entre especialistas, atiça debates entre parlamentares e, principalmente, passa ao público a impressão de que o governo está realmente empenhado em resolver os muitos e graves problemas nacionais. Propor uma PEC sempre faz muito barulho, mas em geral produz pouco resultado.

Se a classe política estivesse realmente empenhada em realizar uma reforma administrativa para modernizar a gestão de pessoal no serviço público, reduzir distorções nas remunerações em relação ao setor privado e eliminar privilégios de carreiras, não seria necessário enviar nenhuma PEC para o Congresso – bastaria ter a coragem de regulamentar aquilo que já foi inserido na Carta Magna pelos constituintes originais em 1988 e depois pelas reformas encaminhadas pelos presidentes Fernando Henrique e Lula na virada do século.

A estabilidade do servidor público acabou há 22 anos, quando o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional nº 19, determinando que o servidor público poderia perder o cargo caso não fosse aprovado em avaliação periódica de desempenho.

Já os penduricalhos nas remunerações da elite do funcionalismo público (inclusive magistrados, procuradores, servidores do Legislativo e militares) estão limitados aos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal desde 2003, após a aprovação da Emenda Constitucional nº 41.

Desde 1998, também, nossa Constituição define que cada ente federativo deverá estabelecer em lei os requisitos para a entrada no serviço público, os graus de responsabilidade e complexidade dos cargos e os seus respectivos sistemas remuneratórios.

Paulo Guedes pretende submeter os servidores púbicos federais à lógica de meritocracia? Pois bem, em 28/11/1998 FHC enviou para o Congresso o PLP nº 248, disciplinando “a perda de cargo público por insuficiência de desempenho do servidor público estável”. A matéria foi aprovada na Câmara em 1999 e, no início de 2000, passou também pelo crivo do Senado. Como os senadores propuseram modificações, o texto retornou à Câmara, onde tramitou lentamente ao longo das duas últimas décadas.

A boa notícia é que a matéria já foi aprovada pelas comissões e agora aguarda somente a votação em Plenário para ir a sanção presidencial. Dependendo apenas da vontade política do governo e de Rodrigo Maia, os maus servidores públicos poderiam iniciar 2021 podendo ser demitidos por insuficiência de desempenho – sem PEC, sem nada.

Jair Bolsonaro, ao lado de Rodrigo Maia (D) e Davi Alcolumbre (E) durante declaração à imprensa no Palácio da Alvorada em 12/08/2020. Foto: Carolina Antunes/PR
Jair Bolsonaro, ao lado de Rodrigo Maia (D) e Davi Alcolumbre (E) durante declaração à imprensa no Palácio da Alvorada em 12/08/2020. Foto: Carolina Antunes/PR

Agora, se o objetivo for eliminar os adicionais que inflam salários nos três Poderes, fazendo valer, de verdade, o teto remuneratório no serviço público, não é necessário mexer novamente na Constituição, pois essa regra já existe deste 2003. Se o governo realmente quiser extirpar, com uma única canetada, o cipoal de leis e decisões administrativas que concedem toda sorte de acréscimos remuneratórios travestidos de auxílios-moradia, honorários de sucumbência pagos a advogados públicos, bônus de produtividade de fiscais da Receita, ajudas de custos a diplomatas, jetons por participação em conselhos de estatais e por aí vai, só é preciso pressionar pelo avanço do PL nº 6.726/2016.

Elaborado por uma Comissão Especial liderada pelos senadores Antônio Anastasia (PSD/MG) e Kátia Abreu (PP/TO), o projeto que submete todos os agentes públicos aos R$ 39.293,32 mensais recebidos pelos membros da Suprema Corte foi aprovado pelo Senado no final de 2016 e desde o início de 2019 aguarda a decisão do presidente da Câmara para designar a Comissão Especial que vai concluir a sua apreciação, antes de ir a plenário. Já há inclusive um parecer do relator Rubens Bueno (Cidadania/PR) sugerindo a aprovação do projeto, mas a proposta ainda jaz numa das gavetas de Rodrigo Maia.

E mesmo que Bolsonaro não queira afetar a situação dos servidores atuais, Paulo Guedes poderia muito bem tirar do armário de seu ministério os anteprojetos elaborados por integrantes de sua equipe econômica ainda no governo Temer e que reformulam as centenas de carreiras do serviço público federal, reduzem a remuneração de entrada e alongam os prazos para promoções. As propostas já estão prontas desde 2018 e bastaria vontade política do atual ministro da Economia para convencer o presidente a enviá-las ao Congresso de imediato.

Mas se o propósito for reduzir as distorções entre as condições de trabalho entre os setores público e privado, ajudaria muito fazer um pente-fino na Lei nº 8.112/1990, que regulamenta o regime jurídico único dos servidores federais. Alguns desses benefícios têm valor quase simbólico – alguns dias a mais de licença em caso de casamento ou falecimento de familiares próximos, por exemplo. Outras benesses são ainda mais injustificadas, como regimes bem mais generosos do que o oferecido pelo INSS para afastamentos em caso de tratamento de saúde (extensivo a familiares) ou a liberação por até três meses (com remuneração!) para fazer campanha eleitoral caso o funcionário deseje se candidatar a algum cargo eletivo.

Alguns ajustes na legislação dos servidores públicos também poderiam gerar até alguma economia para nossos combalidos cofres públicos, como a restrição da ajuda de custo de até três salários mensais em caso de remoções e a eliminação do auxílio-funeral de um salário extra para a família em caso de falecimento (mesmo se já estiver aposentado). O valor seria irrisório em relação ao monstruoso déficit público atual, mas pelo menos o governo sinalizaria que está realmente empenhado em eliminar distorções que não fazem mais sentido em pleno século XXI.

Bolsonaro e Guedes apenas chovem no molhado ao pensarem que reformularão o serviço público mudando novamente a Constituição. A verdadeira reforma administrativa precisa ser feita via legislação ordinária e complementar. Para isso, não precisamos de PEC, mas sim de coragem para enfrentar as corporações e aprovar projetos que já estão maduros no Congresso Nacional há anos.


Presidente da República, Jair Bolsonaro durante reunião com o Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Isac Nóbrega/PR

Finalmente, a Reforma Administrativa

Conheça os principais pontos da PEC enviada pelo governo ao Congresso

Por Bruno Carazza

 

A novela acabou. Depois de muita indefinição, finalmente o governo federal enviou ao Congresso a PEC da Reforma Administrativa. De uma forma geral, a proposta é coerente com outra proposta de Paulo Guedes enviada ao Congresso no final do ano passado, a PEC do Pacto Federativo, procurando dar mais flexibilidade para a gestão de carreiras e pessoal no setor público, principalmente em face das graves restrições fiscais que o país vive tanto na União, quanto em praticamente todos os Estados e municípios.

A seguir apresentação uma breve síntese dos seus principais pontos.

Além dos tradicionais princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência exigidos da Administração Pública (o famoso "LIMPE", tão conhecido dos concurseiros), foram acrescentados os valores de imparcialidade, publicidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade como nortes para atuação estatal.

Se a PEC for aprovada, existirão três formas de entrada em definitivo no serviço público: a) emprego público, para o qual será exigido apenas por concurso de provas ou provas e títulos; b) cargo com vínculo por prazo indeterminado, que precisará, além do concurso, também de aprovação após um ano de experiência; e c) cargo típico de Estado, com a exigência de concurso e mais dois anos de experiência avaliada.

Segundo as novas regras, será extinto o “regime jurídico único”, que se aplica a todos os servidores, independentemente de carreira ou atribuições.

Em seu lugar, uma lei complementar federal regulará matérias como gestão de pessoas, remuneração, benefícios, progressão e promoção, duração de jornada de trabalho, cargos de liderança, etc. para todo o setor público em todos os níveis federativos.

Questões como o funcionamento dos vínculos de experiência, por prazo determinado e por prazo indeterminado, a definição dos cargos típicos de Estado e os cargos de liderança serão regulados independentemente em cada ente federativo (União, Estados e municípios), segundo as suas necessidades e particularidades.

A estabilidade no serviço público também deixará de existir na forma ampla como conhecemos hoje. Na proposta do governo, ela ficará restrita aos ocupantes de cargos típicos de Estado e será adquirida após os dois anos de experiência e mais um ano de estágio probatório. Para os demais servidores, portanto, não haverá mais a garantia de emprego.

A regulamentação da avaliação periódica e da perda do cargo por desempenho insatisfatório será feita por lei ordinária, e não mais por lei complementar – o que aumenta as chances de ela ser aprovada no Congresso. A perda do cargo poderá também ocorrer por decisão judicial colegiada (e não mais pelo trânsito em julgado), significando que condenações em segunda instância afastarão de imediato os servidores – ainda que possa haver reversão no futuro.

Ainda no que diz respeito à estabilidade no emprego, nas estatais (empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias) ela só poderá ser concedida por negociação sindical se houver direito equivalente na iniciativa privada.

Além da estabilidade, os ocupantes de cargos típicos de Estado terão a garantia de não terem sua jornada e remuneração reduzidos caso seja aprovado o dispositivo da PEC do Pacto Federativo que permite ao chefe do Poder realizar esses cortes para conter despesas.

A PEC também procura atacar os chamados “penduricalhos”, benefícios em geral agregados às carreiras por legislações avulsas. Se for aprovada, ficarão limitados para todos os servidores e empregados públicos: férias acima de 30 dias, adicionais por tempo de serviço, reajustes retroativos, licenças-prêmio, redução de jornada sem redução de rendimento (exceto nos casos de saúde), aposentadoria compulsória como punição, indenização por substituição, progressão automática apenas com base no tempo de serviço, indenizações sem previsão de requisitos (como bônus, honorários, auxílios-moradia, etc.) e a incorporação de remuneração de cargos ao salário.

Servidores afastados ou licenciados deixarão de ter direito a receber pela remuneração de cargo em comissão, gratificações, bônus, honorários, etc.

Quanto ao acúmulo de cargos, a PEC traz três regras distintas:

a) Ocupantes de cargos típicos de Estado não poderão realizar qualquer outra atividade remunerada, com a exceção de docência e atividade de profissional de saúde, quando houver compatibilidade de horários.

b) Para servidores não ocupantes de cargos típicos de Estado, o exercício de outra atividade remunerada poderá ser realizado se os horários forem compatíveis e não houver conflito de interesses.

c) A PEC expressamente assegura ao militar da ativa a possibilidade de acumular cargos ou empregos de profissional de saúde ou magistério.

Presidente da República, Jair Bolsonaro durante reunião com o Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Isac Nóbrega/PR
Presidente da República, Jair Bolsonaro durante reunião com o Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Isac Nóbrega/PR

Num ponto que eu considero bem confuso da PEC, as funções de confiança (que são privativas de servidores públicos) ficam substituídas por "cargos de liderança e assessoramento", cujos critérios mínimos de acesso serão definidos por ato do chefe de cada Poder. Não ficou claro, para mim, qual será, na prática, a diferença desses postos e os cargos em comissão.

Por falar nessa categoria, ocupantes de cargo em comissão, servidores com vínculo por prazo determinado e ocupantes de "cargo de liderança e assessoramento" estão vinculados ao regime geral de previdência social (INSS).

A PEC também atribui ao Presidente da República uma ampla liberdade para regular a estrutura administrativa do governo federal. Questões para as quais hoje se exige lei aprovada no Congresso poderão ser decididas por decreto, como a extinção, criação e transformação de ministérios, autarquias e fundações, bem como seus respectivos cargos em comissão, cargos em liderança, etc. O Presidente também poderá, por decreto, transformar cargos públicos vagos e reorganizar cargos efetivos, desde que não alterem remuneração ou a estrutura da carreira - exceto cargos típicos de Estado.

Fica também instituída a aposentadoria compulsória aos 75 anos em consórcios públicos e estatais.

Fugindo um pouco da questão dos servidores públicos (mas com impacto direto na forma de atuação do Estado), a PEC estabelece que uma futura lei poderá disciplinar que União, Estados ou municípios firmem instrumentos de cooperação com órgãos públicos e entidades privadas para a execução de serviços públicos, podendo compartilhar estrutura física e pessoal de particulares, com ou sem contrapartida financeira.

Por fim, como regra geral a PEC preserva os direitos dos atuais servidores.

Numa primeira avaliação, a PEC segue a lógica de flexibilizar a gestão de RH e desarmar toda uma estrutura constitucional que garante promoção automática, avaliação para inglês ver, muitas garantias e penduricalhos para servidores públicos. Por outro lado, a PEC tem muito a ser aprimorada no Congresso para minimizar riscos de pressão política de superiores e corrupção.

Mas o bicho vai pegar de verdade quando o governo tentar regulamentar reestruturação de carreiras, novas formas de concursos e avaliação, regras de promoção e progressão, remuneração básica e de topo, extinção dos penduricalhos, etc. Especialmente a questão da definição das carreiras típicas de Estado promete muita polêmica e jogos de interesses para a inclusão ou exclusão de categorias que serão beneficiadas pela proteção da estabilidade.

Em cada tópico a ser regulamentado há interesses fortemente estabelecidos de carreiras muito bem organizadas e articuladas, o que exigirá um esforço muito maior do ministro da Economia do que foi convencer o Presidente da República a encaminhar a PEC ao Congresso.


Não é o fim do concurso público, mas é o início da reforma administrativa

Medida Provisória nº 922/2020 amplia consideravelmente a possibilidade de contratação temporária no serviço público

Por Bruno Carazza

 

Como todos sabem, no serviço público brasileiro a regra é a contratação por concurso (CF, art. 37, II). Em casos especiais, previstos em lei, a Constituição admite exceções, desde que para "atender a necessidade temporária de excepcional interesse público" (CF, art. 37, IX).

A norma que trata da contratação temporária é a Lei nº 8.745/1993, que originalmente listava poucas situações em que o concurso poderia ser dispensado: calamidades públicas, epidemias, censos demográficos do IBGE, contratação de professores substitutos/visitantes nas universidades públicas e obras e serviços de engenharia realizadas excepcionalmente pelas Forças Armadas.

Ao longo do tempo, os sucessivos governos (de Itamar a Temer) ampliaram o rol de possibilidades de contratação temporária: demarcação territorial, registro de patentes, fiscalização agropecuária, vigilância da Amazônia, serviços de tecnologia da informação, construção e reforma de presídios, crises ambientais, programa Mais Médicos, etc.

A Medida Provisória editada hoje por Bolsonaro estende ainda mais a liberdade do Executivo para realizar contratações temporárias, incluindo:

i) projetos industriais ou de engenharia;

ii) atividades que não sejam técnicas em projetos de cooperação internacional; 

iii) atendimento de demandas pelo aumento do volume de trabalho em qualquer órgão público;

iv) necessidade de redução de processos e de trabalho acumulado em anos anteriores;

v) desempenho de atividades que se tornarão obsoletas no curto e no médio prazo;

vi) atividades preventivas em caso de riscos ambientais, humanitários e de saúde pública;

vii) atendimento humanitário a imigrantes; e

viii) pesquisa e desenvolvimento de produtos e serviços em geral.

Além de criar novas hipóteses de contratação, a MP também flexibiliza seu procedimento em diversos pontos, a saber:

a) Elimina a exigência de ampla divulgação dos editais dos processos seletivos (hoje é necessária inclusive a publicação no Diário Oficial);

b) Dispensa o processo seletivo nos casos de emergência humanitária e situações de iminente risco à sociedade;

c) Amplia as possibilidades de contratação com base apenas nos critérios de "notória capacidade técnica", mediante apenas a análise do currículo do interessado;

d) Estende os prazos de duração dos contratos temporários em muitos casos (variando de 6 meses a 4 anos), bem como a possibilidade de prorrogação do vínculo - que dependendo da atividade poderá chegar até a 8 anos.

Outra grande novidade da Medida Provisória é a possibilidade de recontratação de servidores aposentados para desempenhar atividades específicas (relacionadas às suas antigas atribuições) ou até mesmo gerais. Nesse caso, o aposentado recontratado, além da aposentadoria, receberá um adicional por produtividade (podendo exercer seu trabalho até mesmo à distância) ou por jornada de trabalho, num limite de até 35% do salário da ativa, além de diárias (se necessárias viagens a trabalho) e vales transporte e alimentação.

O ministro Paulo Guedes e o presidente Bolsonaro no Palácio do Planalto, em 06/05/2019. Foto: Isac Nóbrega/PR.

 

MINHA ANÁLISE PRELIMINAR DA MP 922/2020:

1. Pela amplitude das hipóteses de contratação temporária, não resta dúvida de que a MP é o primeiro passo da reforma administrativa de Paulo Guedes;

2. O cenário de realização de novos concursos torna-se bastante sombrio para os próximos anos, pois de um lado o governo poderá contratar temporários para uma ampla gama de serviços e, de outro, existe um exército de servidores aposentados que, aposentados, estarão disponíveis para continuar executando o trabalho que exerciam antes de pendurar as chuteiras;

3. A possibilidade de recontratação de aposentados é claramente um agrado à categoria dos servidores públicos, pois suaviza as perdas decorrentes da reforma da previdência e, assim, reduz resistência às outras etapas da reforma administrativa.

4. A MP é excessivamente vaga nas suas hipóteses, o que poderá levar a muitos questionamentos judiciais com acusações de burla ao mandamento constitucional de realização de concurso público.

5. Apesar da boa intenção de introduzir métricas de produtividade e de pagamento por tarefas, o governo ainda não explicou como pretende fazer isso na prática.

6. E o que é mais grave para mim: A frouxidão dos critérios de dispensa do processo seletivo e a possibilidade de contratação por "notória capacidade técnica" aumentam o risco de favorecimento pessoal e indicações políticas, abrindo o caminho para novos casos de corrupção.

Segue a íntegra da MP: planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato

Para concluir, esta é a redação da Lei nº 8.745 já com as novas alterações: planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS


O funcionalismo não é mais aquele?

Reforma administrativa no RS pode servir de exemplo

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 03/02/2020.

 

“Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra”. Assim diz o refrão do hino gaúcho, que tem origem na Revolução Farroupilha (1835-1845), quando a então província de São Pedro do Rio Grande do Sul se levantou contra o Império brasileiro, reivindicando maior autonomia, menor tributação de sua produção e, ao fim, proclamando-se uma república independente. Não por acaso, “Novas façanhas” foi o lema escolhido pelo governador Eduardo Leite (PSDB) para ser a marca da sua gestão.

Na semana passada, o jovem governador conseguiu um feito que merece ser cantado em verso e prosa. O tucano convocou extraordinariamente a Assembleia Legislativa e, num esforço concentrado de apenas três dias, conseguiu aprovar um pacote de sete medidas que incluem a aplicação das novas regras da Previdência no Estado, uma reforma administrativa para os servidores e novos planos de carreira para professores e policiais civis e militares.

Enquanto a maioria dos Estados brasileiros, mesmo diante de uma grave crise fiscal, enfrenta uma paralisia decisória, esperando soluções vindas da União, Eduardo Leite vem mostrando resultados expressivos. A que podemos atribuir um desempenho legislativo tão superior a outras administrações que se elegeram igualmente com o discurso da renovação e da necessidade de adoção de medidas duras de ajuste, como Romeu Zema (Novo/MG) e Wilson Witzel (PSC/RJ)?

Três fatores parecem ter contado para a bem-sucedida gestão de Eduardo Leite até o momento: i) uma equipe de excelente qualidade técnica, alguns deles recrutados em outros Estados do país, ii) a construção de uma ampla base de apoio na Assembleia, envolvendo deputados de todos os partidos representados, com exceção de PT, PDT e Psol; e iii) o empenho pessoal do governador em enfrentar categorias com grande poder de mobilização e pressão, como professores e militares. Com relação a esse terceiro tópico, a aprovação das reformas no Rio Grande do Sul indica que algo está mudando na correlação de forças na sociedade brasileira.

Começou com a PEC da Previdência de Paulo Guedes e Rodrigo Maia. A maioria dos analistas prevíamos uma tramitação demorada, dada a tradicional resistência do funcionalismo público contra o aumento da idade mínima e a elevação das alíquotas de contribuição. No entanto, a reforma passou em poucos meses e com escassas concessões ao lobby corporativista. O sucesso na Previdência foi tanto que a equipe econômica de Bolsonaro logo se animou a propor a chamada PEC Emergencial – cuja principal medida é a possibilidade de redução da carga horária e dos salários dos servidores em até 25% – e a elaborar um projeto de reforma administrativa.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, se reúne com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - Foto: Rodger Timm / Palácio Piratini

Os governantes em geral sempre tiveram medo de enfrentar os privilégios do funcionalismo público. Além de organizados em sindicatos e associações fortes, algumas carreiras têm condições de paralisar o funcionamento da máquina pública caso cruzem os braços e outras podem azucrinar a vida de políticos com o vazamento de informações ou a abertura de investigações. Por que motivo então esses grupos de interesses tão articulados, mobilizados e com grande poder de barganha vêm sofrendo seguidas derrotas, inclusive em nível local, como acabou de ocorrer nos pampas?

A explicação pode residir numa combinação de elementos que indicam como a sociedade brasileira tem mudado nos últimos tempos. Circunstâncias demográficas, econômicas e políticas parecem indicar que a maré se tornou desfavorável para os servidores públicos.

De um lado, os protestos de 2013 vocalizaram uma percepção que estava latente entre os cidadãos: a má qualidade dos serviços prestados pelo Estado. O sentimento de revolta expresso nos cartazes que pediam saúde, educação e segurança “padrão Fifa” foi muito bem captado por uma nova geração de políticos que ascendeu ao poder com promessas de renovação e foco na gestão em lugar da velha política.

Para completar, a disseminação de ferramentas de transparência colocou sob holofotes, quase cotidianamente, situações de servidores ganhando muito acima da realidade brasileira. Nas eleições de 2018, o combate aos privilégios no serviço público fez parte do programa de governo de todos os principais candidatos, de Amoêdo a Boulos, passando por Bolsonaro, Alckmin, Meirelles, Marina, Haddad e Ciro.

Por outro lado, a precarização das relações de trabalho – expressa tanto pela terceirização de atividades quanto pela uberização dos serviços – fez com que uma parcela expressiva da população migrasse da categoria de trabalhadores para “empreendedores”. De acordo com a PNAD Contínua divulgada na última sexta-feira, são 29 milhões brasileiros atuando como empregadores ou trabalhadores por conta própria – o que representa quase um terço da mão-de-obra ocupada no país. Soma-se a isso o fato de que várias pesquisas têm apontado o crescimento das denominações evangélicas, que além de preceitos religiosos vêm disseminando uma mentalidade de maior protagonismo pessoal visando o progresso, inclusive material, de seus fiéis.

Para boa parte da sociedade, o Estado brasileiro – com seu excesso de burocracia, tributação elevada e péssimos serviços públicos – passou a ser visto como um obstáculo, e não como uma proteção. Não é de se surpreender, portanto, como o discurso liberal vem ganhando força na população brasileira, embalado pelas promessas de que um Estado menor e mais eficiente estimulará o crescimento do país. E na esteira desse pensamento, a indignação contra os privilégios de algumas categorias de servidores públicos tem se generalizado.

A ascensão ao poder, no âmbito federal e em muitos Estados e municípios, de uma nova leva de dirigentes e parlamentares comprometidos com uma agenda liberal, combinada com uma sociedade cada vez mais contaminada pelo espírito empreendedor, representa uma tempestade perfeita contra o funcionalismo público. E a façanha do governador gaúcho de aprovar uma reforma administrativa com tanta facilidade pode servir de exemplo a todo o país, como diz seu hino.