Opinião Minas: Impactos no Corte no Orçamento do Censo do IBGE
Nos últimos dias, o orçamento para 2021 da União no congresso foi aprovado com vários cortes anunciados. Entres eles, um de 95% do destinado à pesquisa do Censo, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Quais os impactos desse corte sem dados e sem pesquisas? E como fica a formulação de políticas públicas no país? Este é o tema que discutimos na edição de hoje do #OpiniãoMinas, com o doutor em direito, mestre em economia e professor do IBMEC-BH, Bruno Carazza.
31/03/2021
https://youtu.be/z-MBWlnNIOI
O novo apagão
Revista Isto É, 13/09/2019
Para não infringir a meta fiscal, governo fica sem dinheiro para despesas básicas e serviços. Emissão de passaportes pode ser afetada e houve ministério que, para conseguir fechar as contas, cortou até o cafezinho.
Para evitar o colapso, há outra saída, que não foi seguida. Guedes não atacou o problema dos subsídios, desonerações e benefícios, segundo o economista Bruno Carazza, do Ibmec. “O governo abre mão de 20% de receita da arrecadação para beneficiar alguns grupos”, afirma. O governo recém-eleito poderia ter atuado para atacar as bilionárias e generosas desonerações introduzidas no apagar das luzes do governo Dilma Rousseff. Mas isso não ocorreu. Apostou todas as suas fichas na Reforma da Previdência, que atenuará o problema orçamentário quando for aprovada, mas os seus efeitos só serão sentidos nas contas públicas nos próximos anos. Além disso, Carazza considera muito radical a sugestão de Guedes de eliminar as despesas obrigatórias. Por mais que seja apropriado discutir os efeitos provocados por esses gastos, é importante lembrar que foram introduzidos para privilegiar rubricas como educação, segurança, pesquisa e meio ambiente.
Leia a íntegra da reportagem clicando aqui
O teto ameaça desabar
Em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão
Por Bruno Carazza
Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 09/09/2019.
O ministro Paulo Guedes gosta de metas ambiciosas e números grandiloquentes. Ainda durante a campanha, no programa Central das Eleições, da Globonews (24/08/2018), o futuro superministro da Economia anunciou sua intenção de zerar o déficit primário no primeiro ano de governo e de obter R$ 2 trilhões com privatizações, vendas de imóveis e concessões até o final do primeiro mandato de Bolsonaro.
No final de janeiro, durante a reunião do Fórum Econômico de Davos, Guedes insistia na tese do déficit zero. Em entrevista ao jornalista Jonathan Ferro, da agência Bloomberg de notícias financeiras, o ministro assegurou que alcançaria a meta logo no primeiro ano do governo com reforma da previdência, cessão onerosa do petróleo, privatizações e concessões, devolução de recursos do BNDES e de outros bancos públicos para a União e um corte de 10% dos subsídios da União.
Apesar do excesso de otimismo do ministro, a dura realidade de Brasília já se impôs. Na proposta de lei orçamentária para 2020 encaminhada ao Congresso, o Ministério da Economia admitiu que a meta não será alcançada em 2019 e nem sequer ao final do mandato de Bolsonaro: a previsão para 2020 é que estaremos no vermelho em R$ 118,9 bilhões.
Ao longo de nossa história recente, o governo brasileiro lidou com o crônico problema fiscal seguindo abordagens muito diferentes. Durante boa parte dos anos 1980 e 1990, empurrou-se a sujeira para debaixo do tapete no período de hiperinflação e nos primeiros anos do Plano Real. Quando a crise internacional bateu à nossa porta em 1999, decidiu-se atuar pelo lado da arrecadação: a carga tributária subiu de uma média de 26,4% do PIB na década de 1990 para 32,2% nos dez anos seguintes, o que foi suficiente para sustentar um dos pilares do tripé macroeconômico, gerando uma sequência de superávits primários superiores a 3% do PIB a partir do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Com a carga tributária batendo às raias do insuportável, ainda no primeiro governo Lula começou-se a buscar uma solução estrutural para o crescimento das despesas da União. É nessa época que surge, por exemplo, a proposta de Delfim Netto, logo encampada pela equipe de Antonio Palocci, de congelamento das despesas correntes com o objetivo de se zerar o déficit nominal (primário mais juros) num horizonte de 8 anos. Então à frente da Casa Civil, Dilma Rousseff interditou o debate chamando a ideia de “rudimentar”.
Essa história de meta, aliás, nunca foi o forte de Dilma (“não vamos colocar meta, mas quando atingirmos a meta, vamos dobrar a meta”). Rendendo-se às pressões de grupos de interesses, seu governo abandonou a perseguição de superávits no moto-contínuo de incentivos tributários, crédito subsidiado e aumentos para o funcionalismo público, que agravaram uma situação já delicada de despesas constitucionais obrigatórias em expansão.
Foi somente em 2016 que o Congresso Nacional, premido pela gravidade do quadro fiscal, adotou pela primeira vez uma medida estrutural para lidar com o descontrole da despesa pública no Brasil. Por meio da Emenda Constitucional nº 95, ficou determinado que por vinte anos os gastos dos três Poderes da União estarão limitados ao reajuste da inflação. Não é exagero dizer que o sucesso no encaminhamento da reforma previdenciária é consequência direta da imposição do teto de gastos – com as despesas de todo o setor público congeladas, o Congresso concordou em atacar a principal causa do descompasso. Na euforia pela vitória do governo no Congresso, frequentemente nos esquecemos que as novas regras apenas reduzirão o crescimento das despesas previdenciárias, estando longe de serem uma solução definitiva para se evitar o caos e equilibrar as contas.
A ideia central na criação do teto, uma solução simples e poderosa da equipe econômica do presidente Temer, foi ressuscitar o processo orçamentário como palco de debates sobre as escolhas governamentais. Existe, porém, uma questão prévia e de difícil solução: nem todos os jogadores têm o mesmo cacife para participar da disputa orçamentária travada perante Poderes Executivo e Legislativo. Assim, impera a lógica da ação coletiva do economista Mancur Olson: na disputa por nacos do orçamento, grupos com melhor capacidade de articulação tendem a prevalecer sobre a massa difusa da sociedade, que acabará pagando a conta.
Analisando a proposta orçamentária enviada pelo governo, fica claro que o time de Paulo Guedes opta pelo caminho mais fácil de evitar conflitos com grupos de interesses bem representados na política brasileira. O mesmo assessor econômico do candidato Bolsonaro, que na campanha afirmara na Globonews que “se depender de mim, não haverá subsídio para setores específicos no Brasil”, com menos de um mês como ministro terminou sua entrevista em Davos dizendo que “se eu desejar começar a cortar subsídios aqui e ali, eu perco suporte político”.
No orçamento enviado pelo Congresso Nacional o ministério da Economia estima um total de R$ 331 bilhões em subsídios, desonerações, regimes especiais e benefícios de toda a natureza, transferindo renda para os mais variados segmentos da economia brasileira. Sem coragem para atacar esses privilégios fiscais, a proposta de Paulo Guedes distribui o ônus do cumprimento do teto nos ombros de políticas públicas sensíveis para a população e o futuro do país – como a educação, a segurança pública, a pesquisa e o meio-ambiente.
Como diria a sabedoria popular, “em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Com um orçamento cada vez mais curto, ministros e parlamentares começam a bombardear a política do teto de gastos, chamando-a de inexequível. A tibieza de Guedes em comprar brigas com setores que lucram parasitando nosso sistema tributário coloca em risco a principal medida estrutural para enfrentar o crônico déficit público brasileiro.
Mais uma derrota do governo: a PEC 02/2015
Considerações sobre a PEC 02/2015 e a mais nova derrota do governo
Publicado originalmente no @BrunoCarazza em 26/03/2019
A PEC foi proposta em 10/02/2015, capitaneada pelo dep Hélio Leite (DEM-PA).
O objetivo era tornar obrigatória a execução financeira das emendas coletivas propostas até o limite de 1% da receita corrente líquida.
Emendas coletivas são aquelas propostas pelas bancadas estaduais e pelas comissões permanentes, tanto da Câmara quanto do Senado.
Com base nos valores de 2018, isso representaria R$ 8,05 bilhões no ano.
A PEC foi aprovada na CCJ em 08/07/2015.
Na sequência, o dep Mendonça Filho (DEM-PE) solicitou a criação de comissão especial para analisá-la. Foi de pronto atendido por Eduardo Cunha, então presidente da Câmara.
O dep Carlos Gaguim (MDB-TO) foi designado relator.
O dep. Gaguim apresenta um substitutivo muito mais ambicioso e abrangente do que o texto original.
Seu objetivo é dar maior realismo ao orçamento.
Atenção para o seguinte dispositivo: "Considera-se obrigatória, ressalvado impedimento técnico e observadas as limitações fiscais, a execução de programações que integrem políticas públicas e metas prioritárias, observado o PPA e a LDO".
E continua: " O dever de execução das programações abrangidas pelo parágrafo anterior tem como propósito garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade, devendo a administração adotar os meios e medidas necessários à implementação do programa de trabalho."
O substitutivo do dep. Gaguim foi aprovado em 26/11/2015 e depois dormitou numa gaveta qq da presidência da Câmara por mais de 3 anos, sem movimentação.
Em 25/02/2019, o dep. Hélio Leite apresentou requerimento para incluir a votação da PEC na ordem do dia.
Hoje, às 12h, estava agendada uma reunião de líderes.
A PEC não estava prevista na Ordem do Dia da sessão ordinária de hoje à tarde.
Mas entrou na ordem do dia da sessão extraordinária, marcada para as 20h.
O dep. Marcel Van Hattem (NOVO/RS), solicitou a retirada de pauta da PEC. Foi derrotado.
A PEC foi levada a votação em primeiro turno, SENDO APROVADA POR 448 A 3.
Vários partidos da base do governo e de centro direita apresentaram um destaque para suprimir aquele dispositivo que expandia o conceito de despesa obrigatória que eu citei no item 10 acima, e conseguiram por ampla maioria (389 a 5). Reduziram, assim, o impacto da PEC.
Imediatamente após a votação em primeiro turno, os deputados aprovaram requerimento dos líderes para dispensar o intervalo de 10 dias entre um turno e outro (manobra prevista no regimento).
Na sequência, aprovou-se a PEC em segundo turno, POR 453 A 6.
A matéria agora vai ao Senado, onde o governo ainda não foi testado.
MINHA OPINIÃO:
É mais uma derrota do governo no braço de guerra com o Congresso.
É mais uma vitória de Rodrigo Maia, que mostra que tem o colégio de líderes nas suas mãos neste momento.
O impacto da medida não é desprezível (R$ 8 bilhões ao ano).
Não se esqueçam, no entanto, que Paulo Guedes recentemente ofereceu ao Congresso o protagonismo sobre o orçamento como moeda de troca pela reforma da previdência.
Sendo assim, toda essa manobra parece ter sido mais uma demonstração de força de Maia e do Congresso contra Bolsonaro do que propriamente contra a equipe econômica e a reforma da previdência. Mas essa é só a minha opinião formada no calor da hora.
Adendo: Faz sentido tb a visão contrária, de q a ampla maioria reflete uma concessão do governo para pacificar o Congresso. A ampla maioria, inclusive no PSL, seria um indicativo disso.
Nesse caso, Bolsonaro teria finalmente capitulado e passado a jogar o jogo da velha política, em q para ganhar o Congresso, abre-se o cofre da viúva?
O teto, os furos e a lei do mais forte: considerações sobre a PEC nº 55/2016 (ou 241/2016, se você preferir)
Texto e gráficos de Bruno Carazza dos Santos
A proposta de colocar um teto para as despesas públicas é necessária e urgente, mas seus dispositivos revelam muito sobre a incrível incapacidade dos governos brasileiros de dizer “não” aos grupos de interesses
A PEC do Teto (PEC nº 55/2016, em tramitação no Senado, antiga PEC nº 241/2016, quando estava na Câmara) é a bola da vez a dividir os brasileiros. Depois das eleições de 2014 e do impeachment de Dilma Rousseff, agora a tentativa do governo de estabelecer um limite anual para as despesas públicas está levando as pessoas às ruas, abalando amizades e azedando reuniões familiares.
Meu ponto de partida para analisar a PEC é que responsabilidade fiscal não deveria ser algo para as pessoas se posicionarem contra ou a favor. Não gastar mais do que se arrecada deveria ser um valor a ser exigido de todos os governantes e partidos políticos, e não um tema a dividir quem é de esquerda e quem é de direita.
Nesse sentido, considero bastante louvável a iniciativa do governo de estabelecer um limite de gastos numa perspectiva de médio e longo prazo. Afinal de contas, nosso quadro fiscal se deteriorou gravemente nos últimos anos: a arrecadação caiu, as despesas cresceram muito e, como consequência, a dívida pública vem subindo perigosamente. Quanto mais déficit, mais dívida, mais juros, menos crescimento e mais tendência à inflação.
Primeiro Ato - O teto
[Para acompanhar a análise abaixo, sugiro baixar o texto da PEC]
Para tentar conter esse quadro de derrocada econômica, o governo atual propôs mudar a Constituição para estabelecer um Novo Regime Fiscal, que terá vigência de 20 anos (art. 101) e estabelecerá limites individualizados para as despesas primárias (ou seja, não inclui despesas de juros) dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público e da Defensoria Pública (art. 102, caput). Observe que a PEC não se aplica a Estados e Municípios, apenas para a União.
Mas como será calculado esse teto? Em 2017, o teto será o gasto efetivo de 2016, mais um reajuste de 7,2%. A partir de 2018, será o limite do ano anterior, mais a inflação acumulada em 12 meses observada até junho (art. 102, § 1º). Isso significa que os gastos poderão seguir crescendo nos próximos anos, mas no máximo corrigidos pela inflação – como os economistas gostam de dizer, o gasto será congelado em termos reais.
Na prática, esta é a mecânica da PEC para realizar o ajuste fiscal de longo prazo: os limites calculados segundo a PEC devem ser respeitados por cada Poder (art. 102, § 2º); a Proposta de Lei Orçamentária anual deve ser compatível com o teto (art. 102, § 3º); o Poder Legislativo não poderá ampliar o limite durante a tramitação do Orçamento (art. 102, § 4º) e durante o ano não poderão ser autorizados créditos extras que ultrapassem o teto (art. 102, § 5º).
Meu problema com a PEC não está no teto em si. A estratégia proposta pelo governo é gradualista (sem cortes bruscos de imediato, o que torna a sua aprovação mais fácil), abrangente (divide o ônus do ajuste entre todos os Poderes) e tem um horizonte temporal longo, mas flexível – de acordo com o art. 103, depois de 10 anos o reajuste do teto poderá ser revisto em cada mandato presidencial.
Após analisar o texto da PEC e ler várias críticas contra e a favor, aí vão as minhas principais críticas.
Segundo Ato: As claraboias no teto
Meu primeiro problema com a PEC está nos furos do teto. No art. 102, § 6º estão presentes as exceções ao limite de despesas. O inciso I trata das transferências constitucionais para Estados e Municípios, que eu reconheço ser um aspecto difícil de lidar neste momento – assim, faz sentido entrar como uma exceção. Os incisos seguintes, no entanto, são grandes claraboias abertas no teto, que podem inviabilizar o ajuste necessário para reintroduzir a responsabilidade fiscal no governo.
O primeiro grande furo (art. 102, § 6º, II) trata dos créditos extraordinários, que são autorizações para gastos extras em situações “imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública” (CF, art. 167, § 3º). Você pode não saber, mas ao longo deste ano já foram autorizados gastos extras que superam R$ 45 bilhões para as mais variadas finalidades, com justificativas na maior parte das vezes forçadas, que nem de longe se enquadram em situações de “guerra, comoção interna ou calamidade pública”. Com a adoção da PEC, é muito provável que essa válvula de escape será utilizada cada vez mais pelos governos – e da pior forma possível, via medidas provisórias, com pouco debate parlamentar e quase nenhuma discussão pública. Para fechar essa brecha, e se pretendem que a PEC seja realmente séria, deveriam aproveitar a mudança constitucional e reformular a redação do art. 167, § 3º, para algo neste sentido:
Art. 167, § 3º. A abertura de crédito extraordinário somente será admitida em caso de guerra ou para lidar diretamente com situações de decretação de calamidade pública.
Ao eliminar o “como” da redação atual e retirar um conceito vago como “comoção interna”, eliminaríamos quase todo o conteúdo impreciso do dispositivo constitucional. Dessa forma, seria mais difícil fazer malabarismo retórico para permitir a execução de despesas corriqueiras não previstas originalmente no Orçamento. Somente assim teríamos uma justificativa para abrir essa exceção ao teto. Caso contrário, acredito que os governos terão uma larga avenida para burlar o limite da PEC.
A outra claraboia no teto da PEC é uma pegadinha do malandro. Segundo o art. 102, § 6º, III, não estão sujeitas ao limite “as despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização de eleições”. Uma medida bem-intencionada, não? #sqn (“só que não”, traduzindo para os mais velhos, rsrsrs). Você sabe o que está incluído no orçamento da Justiça Eleitoral? Sim, o Fundo Partidário. E você sabe que estão articulando a criação de um Fundo Eleitoral para financiar as despesas dos candidatos nas eleições? Pois bem, então você pode imaginar a quem essa exceção está direcionada. Sim, aos partidos políticos e a seus candidatos, que poderão receber mais recursos de dois em dois anos, enquanto as demais despesas do governo estarão congeladas! O exemplo, neste caso, não está partindo de cima – e por isto essa exceção deveria ser suprimida sumariamente.
A terceira janela para as estrelas da PEC está no inciso IV do mesmo dispositivo das exceções. De acordo com sua redação, não estão submetidas ao teto as “despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes”. Confesso que para saber do que se tratavam tive que recorrer ao Google, que prontamente me levou a uma página do Ministério do Planejamento com a lista das empresas estatais não dependentes de recursos do Tesouro para realizar seus investimentos. E quem eu encontrei lá? As suspeitas de sempre, as estatais que estiveram no noticiário policial nos últimos anos como canais de corrupção, clientelismo e contabilidade criativa: Petrobrás, Eletrobrás, Caixa Econômica, BNDES, Banco do Brasil, Docas, Infraero, Correios e cia. Logo, de acordo com o texto da PEC, o dinheiro continuará indo para o ralo nesses órgãos, enquanto os demais órgãos terão suas torneiras fechadas. Deixando essa brecha aberta, a tendência é que voltemos a ter orçamentos paralelos cada vez mais robustos daqui pra frente.
Por fim, o art. 102 da PEC traz ainda dois presentes para Legislativo, Judiciário, MP e Defensoria Pública. De acordo com os parágrafos 7º e 8º, nos três primeiros anos o Poder Executivo assumirá eventuais descumprimentos ao teto por parte desses “Poderes” (limitado a 0,25% do limite do Executivo). Não considero justo que os programas de governo e políticas públicas executados pelo Poder Executivo paguem o pato pelos excessos desses outros órgãos, cujas despesas estão concentradas principalmente em pessoal. Além disso, o parágrafo 9º permite que a cada ano esses Poderes possam compensar os limites individualizados entre seus órgãos. Assim, eventuais ultrapassagens ao teto pela Justiça do Trabalho, por exemplo, poderão ser compensadas por maiores apertos na Justiça Federal – o que não deixa de ser um desvirtuamento do espírito de comprometimento geral presente na PEC.
Terceiro Ato: O Teto e a Lei do Mais Forte, ou Grupos de interesse versus Políticas Sociais
Uma das maiores virtudes da PEC é tornar o processo orçamentário uma coisa real no Brasil. Há séculos o orçamento brasileiro é chamado de peça de ficção, pois durante sua elaboração a receita é superestimada e a despesa subestimada – e, assim, com um pouco de jeitinho, nossos políticos conseguem colocar na Lei Orçamentária quase todos os seus sonhos e aspirações. Mas como um antigo poeta baiano já dizia, “a vida é real e de viés” e ao longo do ano o dinheiro fica curto e o governo tem que rebolar para fechar a conta: faz contingenciamentos na boca do caixa, inventa uma contabilidade criativa, joga o que não der para o futuro (os famosos “restos a pagar”), emite dívida ou moeda – cada Presidente nos últimos anos fez suas opções nesse amplo cardápio de irresponsabilidade fiscal.
Mas é justamente na sua maior virtude – forçar o governo a elaborar um orçamento realista – que reside o maior problema da PEC na minha visão. Com a imposição do teto, o governo terá que fazer escolhas, priorizar, decidir onde realmente alocará os recursos escassos que administra. O processo orçamentário, portanto, tornar-se-á a cada ano um conflito orçamentário. E nesse conflito, levará vantagem quem tiver mais condições de convencer o governo de que sua proposta de política pública é mais urgente, necessária e merecedora de recursos. E nesse processo levarão vantagem, como sempre, os amigos do Rei ou quem está mais próximo dele: grandes doadores de campanha (via caixa 1 ou caixa 2), ilustres representantes do PIB nacional, grupos de interesses bem organizados em seus lobbies, corporações de servidores públicos, entre outros. A coletividade, detentora difusa do interesse público, entra em grande desvantagem nesse jogo orçamentário reorganizado pela PEC.
Em seus dispositivos, a PEC oferece quase nada para “igualar as armas” entre os grupos de interesse – bem organizados, com mais recursos e com maior acesso a quem decide sobre o orçamento – e a coletividade – com dificuldades de mobilização e de liderança. Nesse sentido, vislumbro apenas o art. 108, que exige estimativa de impacto financeiro dos projetos de lei que criem despesa ou renúncia de despesas, e o art. 109, que suspende a tramitação das proposições para avaliar seu impacto sobre o cumprimento do teto. Muito pouco, quase nada.
Ao contrário, a PEC esvazia o principal instrumento de proteção ao interesse público presente no atual sistema orçamentário brasileiro: as vinculações de recursos para despesas obrigatórias. A literatura considera as vinculações uma péssima medida de finanças públicas: engessam o poder do gestor de estabelecer prioridades, cristalizam despesas ao longo do tempo, impedem que o orçamento acompanhe as mudanças de cenário. Eu concordo com todas essas críticas – se aplicadas ao Reino Unido, à Dinamarca ou à Alemanha. Num país com tantas desigualdades sociais como o Brasil, as vinculações de recursos para áreas de interesse público como saúde e educação, que privilegiam a coletividade, são um mal necessário: protegem essas áreas contra a sanha dos grupos de interesses na repartição do bolo orçamentário. E a PEC, é preciso reconhecer, enfraquece as vinculações.
Ainda que os técnicos do governo argumentem que a PEC não diminuirá os recursos para saúde e educação, a leitura do art. 105 é clara. Os percentuais mínimos de aplicação de 15% da receita corrente líquida para a saúde (CF, art. 198, § 2º, I) e de 18% dos impostos em educação (CF, art. 212) passam a estar sujeitos ao teto. Nesse caso, teríamos o seguinte cenário: i) nos anos em que a arrecadação de impostos crescer menos que a inflação, o governo terá mais espaço para cumprir os percentuais mínimos previstos na Constituição; mas ii) nos anos em que a receita subir mais do que a inflação, o teto impedirá que os gastos em educação e saúde cresçam em termos reais, e assim os percentuais de 15% e de 18% não serão cumpridos. Em outras palavras, essa mecânica presente na PEC faz com que o governo “cumpra tabela” com educação e saúde nos momentos de crise, liberando recursos para gastos em outras áreas quando a receita estiver abaixo da inflação, e impede que o governo expanda as despesas em saúde e educação nos anos de bonança, quando a arrecadação superar a inflação. Por mais apreço que eu tenha pela responsabilidade fiscal, acho esse mecanismo bastante perverso do ponto de vista social.
É preciso dar um desconto para o governo porque, no art. 102, § 6º, I da PEC (aquele das exceções para as transferências constitucionais), ficou isenta do teto a complementação que a União faz para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – o Fundeb. O problema é que a vigência do Fundeb se encerra em 2020, e a partir daí a União fica desobrigada a fazer essa transferência para o ensino básico em Estados e Municípios. Logo, depois disso imperará o teto também nessa importante área social.
Ao esvaziar a vinculação de recursos para as áreas sociais, a PEC desequilibra o jogo em favor dos grupos de interesses no processo orçamentário. Ou você imagina que teremos ocupações de escolas, passeatas e greves todo ano para garantir mais recursos para saúde e educação enquanto o orçamento está sendo elaborado? Quem você acha que terá mais sucesso em ser ouvido pelo governo na definição do Orçamento: empresários com lobby organizado pela CNI pleiteando novos subsídios para a indústria nacional, empreiteiras que continuam abastecendo campanhas eleitorais via caixa 2, ruralistas com sua bancada lutando por novas renegociações de dívidas junto ao Banco do Brasil, servidores da elite do funcionalismo público querendo reajuste salarial ou você e eu que queremos uma educação básica melhor no Brasil?
Também li por aí que a PEC levará a uma maior cobrança dos eleitores, exigindo dos deputados e senadores que atribuam mais recursos para a saúde e a educação. Isso poderia fazer sentido se tivéssemos um sistema eleitoral com lista fechada ou voto distrital, em que haveria maior identificação entre o eleitor e o partido ou candidato eleito. No sistema atual, em que votamos em uma pessoa e elegemos outra, com coligações de partidos que não dizem nada para ninguém, imaginar que temos este tipo de accountability entre os políticos e seus eleitores no Brasil é até ingênuo. A menos que a voz rouca das ruas se levante, como aconteceu em junho de 2013 - mas é difícil esperar que isto aconteça anualmente.
Por todos esses motivos, acho que a PEC, apesar de ter a vantagem de tornar real o conflito orçamentário, acabará estabelecendo a lei do mais forte nas finanças públicas brasileiras. E a corda, como sempre, arrebentará no lado mais forte – a grande massa de brasileiros desprotegidos de um sistema de saúde e educação decentes.
Sem um Gran Finale: O governo vai jogar o problema para o futuro?
Para finalizar minha análise sobre os dispositivos da PEC, resta tratar das medidas previstas pelo governo para restabelecer o equilíbrio fiscal em caso de descumprimento do teto.
De acordo com o art. 104, se o limite for desrespeitado, os Poderes da União estarão proibidos de conceder vantagens remuneratórias de qualquer natureza para seus servidores, criar cargos, alterar estruturas de carreiras, contratar pessoal, realizar concursos públicos e criar ou conceder reajustes de despesas obrigatórias acima da inflação. Além disso, o Poder Executivo não poderá criar ou expandir subsídios, subvenções, incentivos ou benefícios tributários até que o teto seja reestabelecido (art. 104, § 2º).
Essas medidas são todas importantes e condizentes com o espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal – essa desconhecida. No entanto, ao ler esses dispositivos, me veio à mente novamente a questão dos grupos de interesses.
Ora, vivemos um quadro fiscal muito agudo, causado justamente pela prodigalidade dos governos anteriores em conceder benesses a grupos muito específicos como empresários que se refastelaram com toda sorte de financiamentos subsidiados e regimes tributários especiais e servidores públicos de carreiras de elite dos três Poderes que passaram a ganhar acima de R$ 20 mil ou R$ 30 mil sem qualquer avaliação séria de produtividade. Também tivemos uma série de políticas públicas mal desenhadas, que drafam recursos públicos com baixo retorno social.
Olhando as medidas corretivas previstas na PEC, vejo que elas se destinam justamente a esses grupos que foram os mais beneficiados pelo descontrole fiscal dos últimos anos. Se a situação atual já é grave, fico me perguntando por que motivo o governo não toma medidas contundentes para lidar com esse problema agora. Por que não adotar um pacote suspendendo os reajustes de salários concedidos a determinadas carreiras do Executivo, Legislativo, Judiciário e MP ao longo deste ano e lançar um cronograma de desativação (phasing out) da ampla rede de benefícios tributários e creditícios concedidos para o empresariado brasileiro nos últimos anos, ainda mais agora que a OMC os condenou?
A resposta está na relação umbilical entre as elites políticas e econômicas no Brasil. Em vez de dizer “não” e conceber as medidas corretas para restabelecer o equilíbrio fiscal, o governo prefere empurrar com a barriga e entregar a bomba para o governo seguinte, que terá que lidar com o estouro dos tetos a partir de 2019. E isso porque não quer arcar com o custo de piorar o status daqueles que, no final das contas, sustentam o governo. E aqui a ambiguidade do verbo “sustentar” é proposital.
Eu realmente gostaria de terminar essa análise da PEC otimista, como comecei no primeiro ato. O desfecho, no entanto, é melancólico: devido a decisões superiores expressas em pequenos detalhes, a PEC pode falhar no seu intuito de restabelecer o equilíbrio das contas públicas e ainda fragiliza o atendimento da coletividade diante de interesses privados muito bem organizados.
É lamentável ver uma medida tão importante para o país ter seus objetivos desvirtuados pelo desinteresse do governo em atacar de frente as causas de nosso descontrole fiscal.
Fechem as cortinas.
Post scriptum do dia 16/11/2016, às 8:44h: Com a base que o governo tem no Congresso, é inevitável que a PEC seja aprovada tal qual ele está redigida. No entanto, o governo não pode se iludir com essa vitória. Há uma extensa agenda de reformas que precisa ser aprovada e o governo não pode subestimar a resistência popular causada pela adoção da PEC do teto.
Não ficarei surpreso se tivermos uma nova onda de manifestações tal qual tivemos em junho de 2013 quando essas novas propostas, que por natureza são impopulares, forem discutidas ao longo de 2017. Se tivemos tanta repercussão negativa com a PEC do teto e a MP do ensino médio, imagine quando for enviada para o Congresso a reforma da Previdência.
Se quisesse aplacar a insatisfação social crescente, o governo deveria sinalizar para a população que sua preocupação com o ajuste fiscal está acima de interesses particulares. Para isso, deveria rever as exceções presentes na PEC e implementar um pacote de cortes de despesas que atinja o "bolsa empresário" e reveja os reajustes do Judiciário, Legislativo e das carreiras da elite do Poder Executivo. Só assim ele poderia demonstrar para o cidadão em geral que seu compromisso é com a austeridade nas contas públicas, e não com o desmantelamento das políticas sociais.
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