Esquerda e direita se aglomeram em nome da política

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 31/05/2021.

 

E o povo voltou para as ruas. Abondando as recomendações da ciência de que é preciso evitar aglomerações a fim de se evitar uma terceira onda da covid, milhares de pessoas lotaram as cidades do país nos dois últimos finais de semana em nome da política.

Embora o senso comum atribua ao brasileiro uma natureza passiva e conformista, não foram poucos os episódios de nossa história em que a população se indignou e se mobilizou em massa reivindicando mudanças. Das revoltas populares no Império (Cabanagem, Balaiada, Sabinada, Farroupilha), passando pela Revolta da Vacina (1904), as greves operárias na década de 1920, os movimentos a favor e contra a ditadura militar (1964-1968) e chegando mais recentemente às Diretas Já (1984) e ao impeachment de Collor (1992), milhares ou milhões se marcharam em favor de causas variadas.

Em junho de 2013, porém, algo diferente aconteceu. Sua dinâmica e sobretudo suas consequências ainda são motivo de estudos e controvérsias, mas o fato é que, articuladas nas redes sociais, as manifestações cresceram em número de participantes, abrangência territorial e diversidade de reivindicações, numa velocidade sem precedentes em nossa história.

O gigante acordou a partir de uma proposta de aumento de vinte centavos na tarifa de transporte público no município de São Paulo – mas é óbvio que não se tratava apenas disso. Os protestos por aqui repercutiam um espírito dos novos tempos, inspiradas na Primavera Árabe e nos movimentos “Ocuppy” surgidos nos Estados Unidos e na Europa na esteira da grave crise financeira de 2008-2010.

Durante duas semanas, justamente quando o país se preparava para receber a Copa das Confederações (evento teste para a Copa do Mundo de futebol de 2014) milhões saíram às ruas de mais de 500 municípios e sacudiram o país, com efeitos sentidos até hoje.

Junho de 2013 talvez tenha sido a última vez em que pessoas de esquerda e de direita, progressistas e conservadores, estiveram lado a lado reivindicando mudanças na política brasileira. Também havia uma ampla diversidade de segmentos sociais: contingentes expressivos do chamado “precariado”, de uma “nova classe média” que havia ascendido economicamente e da classe média tradicional mostravam-se insatisfeitos, cada qual com seus argumentos, com um Estado que entregava serviços públicos de péssima qualidade e uma elite política que não mais os representava.

Circunstâncias especiais contribuíram para o ineditismo do movimento. Sem lideranças claras, com uma pauta difusa e refutando a presença de partidos, sindicatos e políticos tradicionais, as pessoas se sentiram confortáveis a aderir às passeatas sem serem rotuladas como seguidora dessa ou daquela corrente. E assim a promessa de que “amanhã vai ser maior” se cumpriu dia após dia.

As jornadas de junho desapareceram da mesma forma surpreendente com que surgiram. De lá para cá, porém, os brasileiros parecem ter retomado o gosto pelas manifestações de rua. Suas características alteraram-se radicalmente, contudo.

Os motivos deixaram de ser genéricos e tornaram-se muito bem definidos. Protestou-se contra a corrupção sistêmica revelada pela Operação Lava Jato, pelo impeachment de Dilma, contra o golpe do impeachment de Dilma e também em oposição aos cortes de recursos para a educação – e mais recentemente a pandemia ensejou manifestações daqueles que se opõem às medidas de restrição à circulação de pessoas e, ontem, contra a gestão da crise de saúde pelo governo federal. E por trás das justificativas para cada uma dessas demonstrações populares havia objetivos políticos também bem específicos, capitaneadas por movimentos de esquerda ou de direita.

Muitos analistas apontam os protestos de 2013 como a origem da crescente polarização que desde as eleições de 2014 divide o país. Ao refutarem a configuração do sistema político brasileiro, questionando a representatividade dos partidos e da classe dirigente, abriu-se a caixa de Pandora. A agenda da melhoria da qualidade dos serviços públicos deu lugar à negação da política como instrumento de mediação e ao questionamento dos valores democráticos duramente reconquistados com a Nova República.

Com o agravamento da pandemia e sua consequente queda de popularidade, Bolsonaro tem fomentado recorrentemente manifestações públicas como tentativa de demonstrar força e apoio social. Seja a pé ou montado a cavalo, sobrevoando de helicóptero ou acelerando uma motocicleta, o presidente estimula aglomerações defendendo o fim do distanciamento social para evitar o desemprego e a fome. Embora não se duvide que uma parte considerável do público presente a esses eventos se preocupe com os efeitos econômicos e sociais do fechamento do comércio, por trás do discurso de Bolsonaro há um objetivo meramente político e eleitoral.

A gravidade da pandemia, com suas mais de 460 mil mortes e ondas intermináveis de contaminação, dificultava a resposta de seus opositores. Afinal, seria contraditório promover a mobilização de pessoas quando era essa uma das principais críticas ao comportamento irresponsável do presidente. As milhares de pessoas que lotaram praças e avenidas de dezenas de cidades brasileiras no último sábado comprovaram, porém, que temem mais a política de Bolsonaro do que o risco de contaminação pela covid.

As manifestações de sábado foram um legítimo grito de indignação contra a gestão deplorável da pandemia por parte do governo federal. No entanto, apesar de não ter tido candidato discursando nos palanques, pelos movimentos que a organizaram e as bandeiras e camisas envergadas por boa parte dos presentes, elas tinham cor e inclinação política muito bem definidas.

As jornadas de maio de 2021 inauguram o início oficial da disputa eleitoral do ano que vem – ou pelo menos o momento em que a campanha, seja de motocicleta ou a pé, começa a tomar de modo antecipado as ruas do país.