Na última postagem destaquei o artigo “Democracy and Growth in Brazil”, de Marcos Lisboa e Zeina Latif, a respeito da estratégia de grupos privados e minorias em convencer o Estado a conceder-lhes benefícios e tratamentos privilegiados custeados pela maioria silenciosa da população – o rent seeking, no jargão econômico. Para esses pesquisadores, essa seria uma característica determinante de nosso desenvolvimento econômico e também de nossa democracia.

 

Segundos os autores, a opção por políticas setoriais contrasta com o descaso de sucessivos governos brasileiros com o investimento num sistema de educação de qualidade, com a construção de canais institucionais de participação popular na fiscalização dos programas governamentais e também com a formatação de políticas públicas horizontais, que beneficiem amplamente a economia e não grupos isolados – como a reforma tributária, por exemplo.

 

Em síntese, o trabalho de Lisboa & Latif (que se pretende constituir a pedra fundamental de uma louvável agenda mais ampla de pesquisa sobre o tema) não nega a necessidade de se incentivar, em determinados momentos, setores específicos, mas desde que isso seja feito de modo transparente.

 

Os autores concluem o artigo sugerindo a criação de instrumentos que explicitem os custos desses benefícios, assim como propiciem a avaliação contínua de seus efeitos, comparando-os com políticas alternativas.

 

Levando a questão para o campo do Direito, entendemos que o combate ao rent seeking envolve também uma completa reformulação de nosso sistema político, o que abrange desde a tão comentada limitação de doações de campanha por pessoas jurídicas, o barateamento das eleições, uma maior abertura para a participação popular na concepção e na avaliação das políticas (com audiências públicas que não sejam apenas “para inglês ver”), a regulamentação da atividade de lobby, entre outras.

 

Nesse contexto, e àluz do texto de Lisboa & Latif, chamo atenção para as medidas provisórias, que podem ser vista como um instrumento propício à prática do rent seeking no âmbito do Poder Executivo e do Poder Legislativo, comprometendo o exercício da democracia no país.

 

De acordo com o art. 62 da Constituição Federal (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art62), as medidas provisórias destinam-se a tratar de assuntos “relevantes e urgentes”, e por isso entram em vigor imediatamente após sua edição pelo Presidente da República. Ao Congresso Nacional concede-se um prazo para analisá-las e convertê-las em lei ou rejeitá-las – neste caso, regulando as relações jurídicas que foram estabelecidas durante a sua vigência.

 

A conduta dos vários Presidentes da República em explorar ao máximo a indeterminação de conceitos como “urgência” e “relevância”, combinada com a ausência do seu devido controle pelo Poder Legislativo e pelo Poder Judiciário, gerou um quadro de inegável descontrole.

 

Tanto foi assim que o Congresso Nacional, em 2001, editou a Emenda Constitucional nº 32, que procurou regular o trâmite legislativo das medidas provisórias, buscando coibir seu abuso pelo Poder Executivo.

Os números revelam que os resultados foram bastante limitados. Desde a edição da EC nº 32/2001 até 30/09/2013, foram editadas 625 medidas provisórias, o que representa uma média de uma medida provisória por semana (7,04 dias). O gráfico abaixo revela como ocorreu esse desempenho ano a ano.

 

Esse quadro mostra-se ainda mais preocupante quando se verifica a prevalência que as medidas provisórias têm alcançado na produção legislativa do Congresso Nacional. Desde a promulgação da EC nº 32/2001, as medidas provisórias convertidas em lei representam 20,7% de todas as leis ordinárias aprovadas.

 

O cenário torna-se mais sombrio quando se descontam do total de leis aprovadas aquelas meramente simbólicas (que dão nomes a obras públicas, estabelecem datas comemorativas ou designam “heróis da Pátria”) e outras de caráter estritamente executivo, como as leis que alteram o Orçamento anual. Computando-se dessa forma, as medidas provisórias convertidas em lei representam 38,9% de todas as leis ordinárias. Em outras palavras, praticamente 4 em cada 10 leis aprovadas no Brasil entraram em vigor sem debate parlamentar prévio e com tramitação legislativa de no máximo 120 dias.

 

Inegavelmente, a utilização descontrolada das medidas provisórias é um grande entrave à prática democrática levada a cabo pelos vários governos, como se vê no gráfico abaixo.

 

O artigo de Lisboa & Latif destaca que as decisões consensuais, apesar de mais custosas, mostram-se melhores e mais duradouras com o passar do tempo (“reforms in democratic regimes may be more difficult to negotiate, but they have proved to be more resilient”). E esse parece ser justamente o caso das medidas provisórias: sob o manto da “urgência” e da “relevância”, o Poder Executivo legisla sobre praticamente tudo, gerando normas imperfeitas que muitas vezes são questionadas no Poder Judiciário.

 

No entanto, essa “usurpação das atribuições do Legislativo pelo Executivo” é evidentemente agravada pela frouxidão de deputados e senadores em dar um basta na situação. Como se vê no gráfico abaixo, a taxa de aprovação média das medidas provisórias editadas desde 2001 é de 87,2%. Em outras palavras, há um incentivo enorme para o Poder Executivo evitar o debate parlamentar e editar medidas provisórias sabendo que as chances de sua aprovação pelo Congresso são de quase 90%!

 

 

Analisando essa questão sob a perspectiva do rent seeking, pode-se argumentar que o instituto das medidas provisórias apresenta todos os incentivos para tanto o Poder Executivo quanto o Poder Legislativo incorporarem à legislação dispositivos que atendem a seus próprios interesses e a interesses de particulares sem o devido debate democrático.

 

O Poder Executivo, de um lado, repetindo o mantra de que “é impossível governar sem MPs”, edita essas normas em geral sem qualquer discussão prévia com a sociedade, muitas vezes tratando de assuntos diversos, e com vigência imediata. Para citar exemplos recentes, a reformulação do setor elétrico (MP nº 579/2012) e o Programa Mais Médicos (MP nº 621/2013) são casos de grandes políticas públicas implementadas a fórceps e que geraram diversos questionamentos, inclusive judiciais.

 

O Poder Legislativo, por seu turno, aproveita-se do prazo curto para aprovação das MPs para barganhar nacos de poder ou orçamento com o Poder Executivo e pegar carona na tramitação expressa da MP “contrabandeando” emendas parlamentares que não guardam qualquer relação com seu assunto original.

 

A combinação de vigência imediata, ausência de uniformidade temática e o prazo curto de tramitação conferem os incentivos para o Poder Executivo e o Poder Legislativo evitarem o debate democrático das propostas, abrindo um amplo espaço para que grupos de interesse possam garantir sorrateiramente benefícios como regulação mais favorável e isenções tributárias em detrimento da sociedade em geral.

 

Os exemplos sobre essa prática pululam nos jornais semanalmente. Tanto é assim que a Ordem dos Advogados do Brasil está defendendo a rápida aprovação da Proposta de Emenda à Constituição nº 70/2011, que altera o processo legislativo das MPs e exige a uniformidade temática dos assuntos tratados por elas (http://www.oab.org.br/noticia/26155/oab-nacional-defende-fim-das-emendas-caronas-em-mps-no-congresso).

 

Os intensos debates sobre o Programa Mais Médicos são outra evidência do déficit democrático gerado pelas medidas provisórias. Tanto é assim que o Supremo Tribunal Federal convocou audiência pública para discutir duas Ações Diretas de Inscontitucionalidade impetradas contra o programa (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=249852).

 

Levando-se em consideração que tanto o Poder Executivo quanto os parlamentares têm interesse no instituto das medidas provisórias, pois permitem viabilizar antidemocraticamente dispositivos que atendem a objetivos particulares e muitas vezes antirrepublicanos, questiona-se sobre as vantagens desse instituto para toda a sociedade.

 

Nesse aspecto, as medidas processuais previstas na Proposta de Emenda à Constituição nº 70/2011, em tramitação na Câmara dos Deputados, constituem meros paliativos para o problema, uma vez que serão mantidos os incentivos do sistema para os abusos do Poder Executivo e a complacência do Parlamento nesse assunto.

 

Uma solução mais abrangente para o problema seria preencher a indeterminação dos conceitos de “urgência e relevância”, definindo expressamente na Constituição as situações em que a medida provisória pode ser utilizada, como para resolver nos casos de calamidade pública, por exemplo.

 

Mas se quisermos resgatar definitivamente a desejável prevalência do Poder Legislativo na elaboração das leis, deveríamos repensar a utilidade social do instituto das medidas provisórias.

 

É preciso destacar que a Constituição já dispõe de um mecanismo (a urgência constitucional, regulada no art. 64) que, apesar de não propiciar vigência imediata, garante uma rápida tramitação a projetos de lei considerados importantes pelo Presidente da República. Sob urgência constitucional, Câmara e Senado têm cada qual 45 dias para apreciar a matéria, sob pena de obstruir a pauta de votações das outras matérias.

 

Não seria então o caso de se extirpar de nossa Constituição as medidas provisórias, herança dos autoritários Decretos-lei do Estado Novo de Vargas e da Ditadura Militar, para privilegiar a tramitação legislativa de projetos de lei com urgência constitucional?

 

A democracia e o desenvolvimento econômico agradeceriam uma radical redução ou até mesmo a eliminação desse importante canal de viabilização de rent seeking no Estado brasileiro.

 


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