O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade é uma autarquia federal que está permanentemente na mídia, por ter entre as suas atribuições a responsabilidade pela aprovação administrativa dos grandes casos de fusão e aquisição de empresas. Colgate/Kolynos, Ambev, Nestlé/Garoto e Sadia/Perdigão são apenas alguns exemplos de processos julgados pelo órgão e que tiveram grande repercussão.

 

Nas duas últimas semanas o Cade está novamente nas primeiras páginas dos jornais, desta vez pelas denúncias de existência de um cartel entre empresas que burlavam licitações públicas em alguns Estados brasileiros.

 

O caso Siemens é emblemático por diversos motivos: chama a atenção do público para um lado ainda pouco conhecido do Cade, que é o combate a cartéis; desnuda uma prática bastante comum em licitações públicas, em que poucas empresas combinam preços e repartem o objeto da contratação entre si, lesando o patrimônio público; demonstra que o Brasil não está a salvo da atuação de grandes cartéis internacionais; comprova que o descaso com a administração dos recursos públicos não é privilégio deste ou daquele partido político, mas endêmico na Administração Pública brasileira, entre outros motivos.

 

O objetivo desta postagem, porém, é explorar um aspecto para o qual os analistas da mídia ainda não se deram conta, pelo menos nas análises e reportagens que eu li até o momento. Na minha visão, a decisão da Siemens de procurar o Cade para propor colaboração com a investigação em troca de imunidade contra multas e prisão (o chamado acordo de leniência), inclusive para seus executivos, indica uma evolução legal e institucional da defesa da concorrência em todo o mundo, e inclusive no Brasil.

 

Desde o início dos anos 1990, os principais órgãos de defesa da concorrência nos Estados Unidos e na União Europeia decidiram centrar sua atenção no combate aos cartéis. Para isso, reforçaram suas legislações numa política conhecida como sticks and carrots (“porretes e cenouras”): de um lado, aumentaram os benefícios para as empresas que decidissem denunciar cartéis e contribuir com as investigações (as cenouras), e de outro aumentaram as multas contra as empresas que fossem condenadas por essa prática, assim como as penas de prisão para os seus dirigentes (os porretes).

 

O resultado dessa prática foi um crescimento significativo das empresas condenadas e dos valores das multas, como atestam os gráficos abaixo, referentes aos Estados Unidos….
e à União Europeia:

 

O Brasil não ficou à margem desse movimento. De um órgão praticamente decorativo entre a sua criação em 1962 e a estabilização inflacionária com o Plano Real em 1994, o Cade vem ganhando poderes e aprimorando a sua forma de atuação. O primeiro marco foi a aprovação da Lei nº 8.884/1994, mais moderna e condizente com a prática internacional em matéria de defesa da concorrência. Em seguida, a Lei nº 10.149/2000 aprimorou os mecanismos de combate e investigação a cartéis, entre eles a possibilidade de autorização judicial para mandados de busca e apreensão de documentos e computadores e os acordos de leniência – que foram fundamentais para a recente investigação aberta contra o cartel nas licitações de metrô e trens urbanos em São Paulo, Distrito Federal e, aparentemente, outros Estados. A evolução legal foi coroada em 2011, com a aprovação da Lei nº 12.529/2011 (http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12529.htm), que reformulou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, buscando maior racionalidade na análise dos processos administrativos, com a criação, no âmbito do Cade, de uma Superintendência-Geral (responsável pelas investigações e instrução processual, tanto de concentrações de empresas quanto de condutas anticompetitivas) e um Tribunal Administrativo de Defesa da Concorrência (responsável por julgar os processos).

Mas a evolução do sistema brasileiro não ocorreu apenas no âmbito legal. O Cade vem firmando nos últimos anos diversos acordos de cooperação com órgãos congêneres em diversos países, para facilitar a troca de informações e a realização de investigações conjuntas, o que é fundamental para o combate a cartéis internacionais. Desde o ano 2000 foram firmados acordos e convênios com Rússia (2001), EUA e Argentina (2003), Portugal (2005), Chile e Canadá (2008), Comissão Europeia e Mercosul (2009), Portugal (2010), França e Rússia (2011) e Peru e China (2012). E do ponto de vista interno, o Cade também tem estreitado os laços com as agências reguladoras e outros órgãos, como a Secretaria da Receita Federal, o Banco Central, a Anac, a ANS, a Aneel, além da Polícia Federal e os Ministérios Públicos Federal e Estaduais, permitindo maior acompanhamento dos mercados e obtenção de informações relevantes às suas investigações.

Esse aprimoramento legal e institucional do Cade tem sido reconhecido internacionalmente. Um exemplo é o ranking publicado pela revista britânica Global Competition Review, que anualmente analisa as principais agências antitruste do mundo segundo um extenso rol de variáveis, que vai do número e da idade média do pessoal técnico ao orçamento, passando pelo número de decisões e condenações de cartéis. Analisando as avaliações do Brasil por parte dessa revista, o Cade passou de último lugar no ranking em 2002 (tendo recebido apenas uma estrela, de um máximo de 5), para uma posição de destaque em 2013. Após uma elogiada implementação da nova lei, a revista atribuiu ao Cade 4 estrelas, num patamar equivalente a países com maior tradição em matéria antitruste, como se vê na tabela abaixo (agradeço ao amigo Mário Sérgio Gordilho e à Assessoria Internacional do Cade pelo repasse dos relatórios da Global Competition Review):

 

 

5 estrelas

 

 

Comissão Europeia

 

 

França

 

 

Alemanha

 

 

Reino Unido (Competition Commission)

 

 

Estados Unidos (Divisão Antitruste do Departamento de Justiça)

 

 

Estados Unidos (Federal Trade Commission)

 

 

4,5 estrelas

 

 

Japão

 

 

4 estrelas

 

 

Brasil (Cade)

 

 

Austrália

 

 

Holanda

 

 

Espanha

 

 

Reino Unido (Office of Fair Trade)

 

 

3,5 estrelas

 

 

Canadá

 

 

Itália

 

 

Coreia do Sul

 

 

Nova Zelândia

 

 

Outro indicador da evolução recente do Cade pode ser obtido numa pesquisa realizada anualmente pelo Fórum Econômico Mundial de Davos. Combinando entrevistas com um grupo de mais de 3.000 executivos de multinacionais e dados estatísticos, o Global Competitiveness Report (http://www.weforum.org/reports/global-competitiveness-report-2012-2013) analisa a competitividade dos países por meio de variáveis quantitativas e qualitativas, que envolvem desde o tempo médio de abertura de uma empresa até a carga tributária e o nível de educação da força de trabalho.
Entre as variáveis qualitativas pesquisadas pelo Fórum, pergunta-se aos executivos sobre a sua percepção sobre a efetividade do órgão antitruste. E o gráfico abaixo revela que, ao contrário dos países desenvolvidos, que tiveram uma piora na percepção de efetividade da política antitruste de 2006 a 2013 (possivelmente devido às medidas anticíclicas após a crise de 2008), o Brasil apresentou uma significativa melhoria, a ponto de ficar praticamente no mesmo nível das economias avançadas.

 

 

 

 

Esse aumento da percepção de efetividade da política antitruste brasileira captada nas pesquisas da Global Competition Review e do Fórum Econômico Mundial, aliado à aprovação da nova Lei de Defesa da Concorrência em 2011 e às inovações institucionais já citadas, ajudam a explicar a recente corrida de empresas ao Cade para propor acordos de leniência em troca de imunidade nas investigações contra cartéis, como aconteceu com a Siemens.

 

O gráfico abaixo revela que, desde que a legislação de combate a cartéis foi instituída, em 2000, o número de acordos de leniência firmados cresceu significativamente, principalmente às vésperas da aprovação da Lei nº 12.529/2011 e após a sua entrada em vigor em 2012.

 

 

 

É inegável que o Cade ainda tem diante de si uma série de problemas a serem resolvidos, como a falta de pessoal e a forte pressão imposta por outras áreas do governo contra as suas decisões, mas os números acima permitem concluir que o órgão está prestes a iniciar um ciclo virtuoso: à medida em que consegue aumentar a percepção de sua efetividade no combate a cartéis, cresce o número de empresas interessadas em firmar acordos para trocar a delação por imunidade administrativa e criminal, o que por sua vez aumenta as chances de condenação dos demais integrantes do cartel, levando a um novo incremento na percepção de efetividade do órgão, reiniciando o ciclo.

 

Oxalá esse movimento se intensifique, e que o caso Siemens seja apenas o primeiro de muitos que exponham e condenem as empresas que se unem para penalizar a coletividade, principalmente em se tratando de obras públicas, como muito bem chamou a atenção há poucos dias a urbanista Raquel Rolnik em seu blog (http://raquelrolnik.wordpress.com/2013/08/09/quando-vamos-enfrentar-os-carteis-que-tomaram-conta-de-nossas-cidades/).

 

Até a próxima!