Reformular o Sistema S seria um ótimo exemplo

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 26/07/2021

Causou polêmica na semana passada a declaração do Secretário de Política Econômica, Adolfo Saschida, na Live do Valor: “Temos que passar a faca no Sistema S; tem que tirar dinheiro deles para transferir para o jovem carente”.

Na entrevista ao diretor-adjunto de redação Cristiano Romero e à repórter Edna Simão, Saschida apresentou as linhas gerais do novo programa que o governo planeja lançar para atacar dois problemas que foram agravados pela pandemia: o desemprego e a baixa qualificação dos jovens brasileiros.

A intenção da equipe do ministro Paulo Guedes é proporcionar à famosa geração nem-nem – o imenso contingente de jovens que nem trabalham e nem estudam – uma possibilidade de inserção no mercado de trabalho por meio da combinação de concessão de bolsas de R$ 550 mensais, estágios em empresas e cursos de qualificação profissional.

Sem dinheiro no caixa para financiar as ações, a proposta do Ministério da Economia é empurrar a fatura para o setor privado – metade dos recursos seriam bancados pelas empresas que ofertarem vagas aos jovens, e a outra viria de uma “facada” nas entidades vinculadas às confederações patronais que representam os interesses da indústria, do comércio, agropecuária e transportes, entre outros.

A declaração do Secretário de Política Econômica causou reação imediata, claro, dos dirigentes patronais, mas também da população em geral, nas redes sociais. A perspectiva de interferência em organizações que proveem capacitação profissional soou como mais um atentado do governo contra a educação. É o preço a se pagar por fazer parte da equipe de Bolsonaro; sempre se desconfia de que a proposta seja nefasta, mesmo quando a causa faz todo o sentido.

O Sistema S é daqueles institutos brasileiros difíceis de serem explicados para um estrangeiro. Legítimas jabuticabas nacionais, são instituições privadas voltadas para o treinamento profissional e a assistência social de seus empregados, mas custeadas por tributos embutidos nos preços dos produtos e serviços consumidos por toda a coletividade. Para completar a bizarrice, essa incrível massa de recursos públicos é administrada com liberdade quase irrestrita pelo próprio setor beneficiado.

A ideia é uma herança de Getúlio Vargas, que por meio de um decreto-lei criou, em 1942, o então Serviço Nacional de Aprendizagem dos Industriários (Senai). Com o fim da ditadura varguista e também da Segunda Guerra Mundial, o presidente Eurico Gaspar Dutra replicou o modelo para o comércio, com a criação do Senac, e mais do que isso, estendeu sua atuação para a assistência social, fundando os Serviços Sociais da Indústria e do Comércio – respectivamente Sesi e Sesc. Na época acreditava-se na colaboração entre o empresariado e o Estado para prover bem-estar para as classes trabalhadoras.

A ditadura militar também deu sua contribuição para a construção desse sistema paraestatal, com a instituição, em 1972, de um organismo para a promoção das pequenas e médias empresas; inicialmente batizado de Cebrae, a sigla mudou em 1990 para Sebrae, para manter a coerência com suas congêneres.

Com a redemocratização, Collor atendeu aos pleitos do agronegócio e lançou o Senar, de aprendizagem rural, enquanto Itamar Franco dobrou-se às pressões do setor de transportes e criou o sistema Sest/Senat. Com FHC as cooperativas ganharam o Sescoop, e Lula inovou com uma Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) e outra de Desenvolvimento Industrial (ABDI).

Adolfo Sachsida, secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Foto: EDU ANDRADE/Ascom/ME

Como acontece em geral com os programas governamentais e suas parcerias com o setor privados, muito pouco se sabe sobre a efetividade e a eficiência das transferências de renda no Brasil. Num dos poucos estudos mais aprofundados realizados sobre o Sistema S, os economistas Thais Nikito (Udesc), Regis Ely e Felipe Ribeiro (ambos da UFPel) utilizaram dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2014 para demonstrar que a participação em cursos oferecidos pelo Sebrae, Senac e Senai estimula a formalização de empreendedores e eleva as jornadas de trabalho e os rendimentos.

Também pudera: de acordo com dados da Secretaria da Receita Federal, os onze Serviços Sociais Autônomos absorveram, em 2020, R$ 16,5 bilhões em tributos incidentes sobre a folha de pagamentos das empresas brasileiras. Diante de um volume tão grande de recursos sugados das empresas e consumidores brasileiros, o mínimo que se espera deles são resultados positivos. A grande questão é se esses custos justificam a existência de uma estrutura tão inchada.

Com recursos abundantes e unidades espalhadas por todos os Estados e centenas de municípios, o Sistema S desperta a cobiça de políticos de todos os matizes e de dirigentes empresariais que se especializam em viver do dinheiro público.

Embora sejam financiadas majoritariamente por impostos, essas entidades possuem natureza jurídica de direito privado, o que significa que não estão sujeitas a todas as exigências e controles aplicáveis à administração pública, como a realização de concursos para a seleção de pessoal e regimes rigorosos de licitação. Como resultado, denúncias de nepotismo, superfaturamento de contratos e obras e favorecimento na contratação de empregados são frequentemente apresentadas ao Tribunal de Contas da União e ao Ministério Público.

A caixa-preta do Sistema S só começou a ser aberta em 2019, quando um decreto de Bolsonaro determinou que os serviços autônomos mantidos com verbas públicas publiquem suas contas na internet. Graças a isso, podemos constatar distorções do topo à base: de dirigentes que recebem quase R$ 70 mil a garçons e motoristas com salários acima de R$ 5 mil mensais.

Empresários nacionais reclamam, com razão, da elevada carga tributária, de órgãos ineficientes onde imperam indicações políticas e cabides de empregos, acompanhados de um funcionalismo inchado, recebendo supersalários distantes da realidade. Cortar a própria gordura, passando a faca no seu Sistema S, seria um excelente exemplo de reforma que o empresariado poderia oferecer à sociedade brasileira.