Por 8 votos a 3, encerrou-se hoje o julgamento da ADI nº 4650, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (veja). Esse fato poderia fazer de hoje uma data histórica: o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucionais as contribuições de pessoas jurídicas a partidos políticos e campanhas eleitorais.

Para quem, como eu, considera as doações eleitorais de empresas um desvirtuamento do jogo democrático em favor de grupos políticos e econômicos, a decisão é uma grande conquista. No entanto, as palavras do presidente do STF, Min. Lewandowski, ao afirmar que a proibição já vale para as eleições municipais de 2016, “salvo alteração legislativa significativa”, coloca um imenso ponto de interrogação sobre o assunto.

Afinal, há uma grande articulação para que o Congresso Nacional reverta a decisão do STF. “Mas pode isto, Arnaldo”? “Claro que pode, Galvão”! Como o Congresso Nacional exerce o papel de Poder Constituinte derivado, ele pode alterar a Constituição a qualquer momento e tornar as doações de empresas novamente constitucionais. Esta é, segundo a imprensa, a estratégia do Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunho, e do Min. Gilmar Mendes, do STF. A propósito, já escrevi sobre isto aqui e acolá.

Como o futuro sobre as doações de campanha é incerto, continuo com o meu trabalho quixotesco de demonstrar, com dados, como o poder econômico influencia a produção de leis no Brasil – e as doações de campanha são a minha pista para desbravar essa seara.

Na última postagem (aqui), tentei mostrar como a escolha dos membros das Comissões da Câmara dos Deputados é influenciada pelos doadores de campanha. Como disse, as Comissões são o campo onde o jogo é realmente jogado no Parlamento: onde um projeto de lei pode ganhar força ou ser arquivado, onde uma audiência pública pode lançar um assunto na mídia e ganhar a opinião pública, onde um Ministro pode ser convocado para dar informações… por isso, imagino ser bastante estratégico para os grupos de interesse que atuam no Congresso ter uma boa relação com os membros de uma Comissão.

Os dados que apresento a seguir são contundentes sobre essa influência das doações eleitorais de empresas na escolha dos membros das Comissões. Minha ideia foi agrupar os doadores em quatro grupos principais, representando grandes setores da economia (agropecuário, industrial, financeiro e infraestrutura) e ver quantos membros de cada Comissão receberam doações de cada um desses grupos. O resultado está no gráfico abaixo.

Radar

Se você não está acostumado com gráficos, caro leitor, por favor, não desista! Esse daí é bastante legal. É um gráfico de radar, e funciona assim:

1 – Cada linha representa o percentual de membros das Comissões que receberam doações dos quatros grandes setores econômicos: agropecuário (azul), financeiro (branco), industrial (laranja) e infraestrutura (amarelo).

2 – Nos vértices das figuras ficam os percentuais de membros de cada Comissão que receberam doações do setor em questão. Veja, no canto inferior direito, que a Comissão de Defesa do Consumidor tem a maioria dos seus membros financiados pelo setor de infraestrutura e industrial, por exemplo. Em breve vamos ver que isso tem um motivo.

3 – Quanto mais a figura se afasta do centro em determinado ponto, significa que uma parcela maior dos membros daquela Comissão tem suas contas bancadas pelo setor econômico em questão. Veja a escala dos círculos no centro da figura (quanto mais longe do centro, maior o percentual).

Olhando o gráfico acima, são várias as conclusões interessantes:

1 – Os setores de infraestrutura e industrial financiam a maior parte dos membros de quase todas as Comissões; o setor financeiro ocupa uma posição intermediária e o agropecuário é bem mais restrito;

2 – As figuras de todos os setores são “puxadas” para o lado da Comissão de Finanças e Tributação (à direita). Isto tem uma explicação: como todas as matérias tributárias são discutidas nessa Comissão, então ela desperta muito interesse do setor empresarial, independentemente da área de atuação;

3 – Como seria de se esperar, Comissões setoriais exercem uma atração natural sobre os respectivos setores. Por isso o setor agropecuário participa com maior peso na Comissão de Agricultura e Pecuária e na Comissão de Finanças e Tributação acontece o mesmo com o setor financeiro. Pelo mesmo motivo, a Comissão de Desenvolvimento, Indústria e Comércio é dominada por membros que receberam doações do setor industrial e as Comissões de Desenvolvimento Urbano, Minas e Energia e Viação e Transportes pelo setor de infraestrutura.

4 – Os setores econômicos também se preocupam com uma agenda defensiva. Para evitar uma pauta que afete negativamente seus interesses, o setor agropecuário financia uma parcela relativamente maior dos membros da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. O mesmo vale para a “quebrada” dos gráficos na direção da Comissão de Direito do Consumidor: os setores financeiro, industrial e de infraestrutura financiam uma parcela relativamente maior dos membros dessa Comissão. Se você se lembrar das listas de empresas com maiores queixas nos Procons (bancos, eletroeletrônicos e telefônicas), vai entender o porquê de esses setores financiarem com maior intensidade os deputados que optam por atuar na Comissão de Direito do Consumidor.

5 – Há uma tendência nítida do gráfico em direção à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional para todos os setores. Alguém tem alguma explicação plausível para esse fenômeno? Agradeço sugestões!

O perfil de indicações das Comissões da Câmara expostos no gráfico anterior são reforçados pela tabela abaixo, em que eu demonstro o valor médio das doações feitas por cada setor econômico.

Comissões e Setores (1)

Na primeira linha, eu coloquei o valor médio da doação de cada setor para cada deputado federal eleito nas últimas eleições financiado pelo respectivo setor (no cálculo eu inclui também aqueles que já se licenciaram e os suplentes que entraram em seus lugares). Nesse cálculo eu simplesmente dividi o valor total das doações do setor pelo número de deputados que receberam dinheiro daquele setor.

Nas linhas abaixo, eu realizei o mesmo cálculo para todas as Comissões permanentes da Câmara. A ideia era saber qual foi o valor médio das doações direcionadas pelo setor aos membros da Comissão financiados por eles nas últimas eleições.

As células marcadas em verde representam as Comissões em que os setores “aplicaram” um valor superior à sua média de doações para toda a Câmara. Os resultados reforçam inteiramente os dados mostrados no gráfico de radar acima:

1 – Infraestrutura e indústria são os setores que “investiram” um valor médio maior nos deputados eleitos em 2014;

2 – A Comissão de Finanças e Tributação, pelo seu papel estratégico, exibe médias maiores nos “investimentos” de todos os setores em seus membros;

3 – Nas Comissões setoriais também predominam deputados que receberam maiores doações dos respectivos setores. Além dos já destacados acima, chamo a atenção para o desempenho destacado da Comissão de Viação e Transportes para o setor agrícola (a logística é uma questão chave para o setor) e as Comissões de Agricultura e Pecuária e Minas e Energia para o setor industrial (talvez pelo papel que têm como insumos da indústria). As altas médias do setor financeiro em diversas Comissões setoriais são também elucidativas do quanto este segmento da economia é dependente do bom desempenho do setor produtivo, via mercados de crédito e acionário.

4 – As médias altas também afloram nas Comissões de perfil mais “social”, mas que podem trazem grandes prejuízos para os setores econômicos em questão: é o caso das já citadas Comissões de Defesa do Consumidor (financeiro e infraestrutura), Meio Ambiente (para o setor agropecuário) e de Trabalho, Administração e Serviço Público (todos os setores, exceto infraestrutura).

5 – A Comissão de Constituição e Justiça, por ser a única por onde tramitam necessariamente todos os projetos de lei, também possui médias mais altas dos setores industrial e financeiro;

6 – O mistério da Comissão de Relações Internacionais e Defesa Nacional aparece aqui também: médias mais altas em todos os setores.

Resumindo: percebe-se que há uma clara tendência de que as principais Comissões da Câmara sejam dominadas por parlamentares que receberam maiores doações de setores que têm grande interesse nos assuntos de competência daquela Comissão. Em economia chamamos isto de viés de seleção, e os gráficos acima demonstram que ele é bem forte em Comissões de perfil mais geral, porém de papel estratégico para a economia (Finanças e Controle, Constituição e Justiça), nas Comissões setoriais e também nas Comissões mais “sociais” que podem ter impacto negativo sobre os lucros desses setores.

São resultados como esses que me inspiram a continuar investigando as leis e os números, para identificar como nossas instituições permitem a criação de normas que continuarão a transferir renda da coletividade para grupos específicos.

Como diria o Min. Luís Roberto Barroso, numa bela frase no julgamento da inconstitucionalidade das doações eleitorais feitas por empresas:

“O papel do direito é procurar minimizar o impacto do dinheiro na criação de desigualdade na sociedade e acho que temos uma fórmula que potencializa a desigualdade em vez de neutralizá-la” (Min. Luís Roberto Barroso).



 

Nota: Como essas análises são reflexões ainda preliminares sobre achados da pesquisa de tese (veja as explicações em http://leisenumeros.blogspot.com.br/2015/03/rumo-tese-de-doutorado.html), seus comentários, críticas e sugestões são muito bem vindos, pois certamente vão contribuir para melhorar a qualidade da pesquisa.

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