Reserva de recursos para candidatos negros não é garantia de maior igualdade

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 31/08/2020, atualizado em 11/09/2020.

 

 

Passaram-se longos 50 anos até que o Pantera Negra conseguisse chegar às telas do cinema. Quase duas décadas antes da criação do super-herói negro na HQ de Stan Lee e Jack Kirby, em 1947 Jackie Robinson rompeu a convenção que vedava o acesso de atletas de ascendência africana aos times da principal liga de basebol norte-americana. Eleito o melhor jogador da temporada de 1949, em sua homenagem nenhuma equipe nos EUA utiliza mais o número 42 que o celebrizou – com uma única exceção anual, no “Jackie Robinson Day” (15/04) quando todos os jogadores, de todos os times, inclusive os técnicos, envergam 42 nos uniformes.

Nomeado em 1967, Thurgood Marshall foi o primeiro negro na Suprema Corte americana – sucedido por Clarence Thomas, eles são os únicos afrodescendentes num total de 102 pessoas que já ocuparam o cargo mais alto do Judiciário nos Estados Unidos desde 1789. No ano seguinte, em 05/04/1968, um dia após o assassinato de Martin Luther King, James Brown realizou um concerto em Boston. Transmitido ao vivo pela TV pública local, o show serviu para acalmar os ânimos da população negra, que em vez de ir para as ruas protestar ficou em casa assistindo à apresentação do ídolo – o que gerou acusações do movimento black de que Brown estava servindo aos interesses dos governantes brancos contra a causa da igualdade racial. Em resposta, Brown gravou “Say it loud – I´m black and I’m proud”.

Todos esses personagens, vividos no cinema pelo ator Chadwich Boseman, falecido em 26/08, revelam como é longa a luta por igualdade de direitos e oportunidades entre negros e brancos nas mais diversas áreas da sociedade. Em pleno 2020, o assunto permanece quente – haja vista os protestos nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd e o histórico boicote dos jogadores de basquete nos playoffs da NBA.

Por aqui, recentemente o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que tanto o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV quanto os recursos do bilionário fundo eleitoral devem ser divididos de forma proporcional ao total de candidatos negros que se inscreverem para a disputa. “Há momentos na vida em que cada um precisa escolher em que lado da história deseja estar. Hoje, afirmamos que estamos do lado dos que combatem o racismo e que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores”, disse o presidente da corte, ministro Luís Roberto Barroso.

Ontem (10/09), porém, o Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, concedeu uma liminar determinando que essa nova regra valerá inclusive para o processo eleitoral em curso, mudando as regras no meio do jogo.

A deputada Benedita da Silva (PT/RJ), em sessão solene em homenagem ao Dia Nacional da Consciência Negra em 2019. Foto: Vinícius Loures/Câmara dos Deputados
A deputada Benedita da Silva (PT/RJ), em sessão solene em homenagem ao Dia Nacional da Consciência Negra em 2019. Foto: Vinícius Loures/Câmara dos Deputados

A política brasileira é repleta de obstáculos à entrada de novos agentes que queiram contestar os donos do poder. Falta democracia interna aos partidos – convenções, prévias e consultas em geral são apenas para inglês ver – e as eleições são extremamente caras, disputadas em territórios muito grandes e com dezenas de milhares de concorrentes. Para se destacar na multidão, é preciso muito dinheiro para se tornar conhecido. Se o aspirante a um cargo público não é rico ou bem conectado com milionários, dependerá dos fundos partidário e eleitoral, mas eles são controlados com mãos de ferro pelos caciques partidários.

Desde a proibição das doações empresariais, em 2015, os políticos têm buscado compensar a queda na arrecadação aumentando o volume de dinheiro público para financiar as campanhas. Espertamente, não se preocuparam em criar regras para disciplinar a distribuição dos valores recebidos dentro de cada legenda. Na ausência de critérios, o TSE tem se encarregado de criá-los, instituindo cotas. Primeiro destinou 30% para as mulheres, e agora exigiu que se respeite a proporcionalidade racial.

Como pode ser visto no gráfico abaixo, mesmo com a reserva de recursos para as candidaturas femininas, as eleições de 2018 foram marcadas por clivagens de gênero e raça na repartição dos fundos eleitoral e partidário entre os postulantes a um assento na Câmara dos Deputados. Na média, homens receberam mais do que mulheres, e dentro de cada gênero brancos foram agraciados com mais dinheiro do que pardos e negros. Diante desse cenário, cotas tendem a nivelar o campo de disputa eleitoral. No entanto, é preciso ter cuidado.

Assim como acontece com a reserva de vagas em universidades públicas, será preciso atenção com a questão da autodeclaração para se evitar fraudes. Desde que o TSE exigiu que no ato de registro fosse declarada a cor, em 2014, 5.044 candidatos se inscreveram indicando duas ou três raças diferentes nas eleições seguintes. Agora que o apontamento da cor valerá dinheiro, é de se esperar que essas incongruências fiquem mais evidentes.

Também é preciso pensar em resolver o problema da assimetria na destinação de recursos dentro de cada cota. Em 2018, o grosso do montante distribuído para mulheres ficou concentrado em candidatas tradicionais e em esposas e filhas de velhos políticos, sem falar nos casos de laranjas – o que limitou o potencial de democratização de acesso de “cidadãs comuns” aos fundos de financiamento de campanhas.

Por fim, é sempre bom lembrar que mais dinheiro não é garantia nem de mais cadeiras e nem de melhores leis ou políticas públicas para as maiorias sub representadas na política brasileira. Ainda precisamos trilhar um longo caminho até atingirmos o objetivo fundamental de promoção do bem de todos, sem preconceitos de qualquer natureza, inscrito no art. 3º, inciso IV, de nossa Constituição.