Conjunto de PECs é a mais ambiciosa proposta legislativa desde a Lei de Responsabilidade Fiscal

Por Bruno Carazza.

 

Acabou o mistério. Depois de meses de adiamento, o ministro da Economia Paulo Guedes finalmente anunciou seu pacote de medidas para, nas suas palavras, transformar o Estado brasileiro numa “máquina eficiente e fraterna”, por meio do estabelecimento de uma “cultura de responsabilidade fiscal” que, apesar de prevista há quase vinte anos, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, ainda não foi concretizada nos três níveis da Federação.

Embora ainda não tenham sido divulgados os textos das suas propostas para as reformas administrativa e tributária, além do fast track para seu programa de privatizações, as medidas anunciadas ontem (05/11/2019) são bastante robustas e corajosas.

Guedes enviou para o Senado Federal, por meio de um grupo de parlamentares da base governista, um conjunto de três Propostas de Emenda à Constituição: as chamadas PEC Emergencial (PEC 186/2019), a PEC do novo Pacto Federativo (PEC 188/2019) e a proposta que extingue a maior parte dos fundos públicos (PEC 187/2019).

Não dá para entender as vantagens da estratégia de fatiar o plano do governo em três propostas distintas, ainda mais porque a PEC do Pacto Federativo contém a maior parte dos dispositivos da PEC Emergencial – o que pode provocar uma grande confusão durante a tramitação das propostas no Senado e na Câmara. O risco de se aprovarem dispositivos contraditórios é alto, como pode ser visto em alguns dispositivos que, mesmo em duplicação, estão numerados de forma diferente em cada uma das PECs.

Votação e aprovação em segundo turno, do texto principal da Nova Previdência (PEC 6/2019), no Plenário do Senado Federal. FOTO: Edu Andrade/ASCOM/ME

Quanto ao conteúdo, Paulo Guedes cumpriu o prometido e entregou ao Congresso um ambicioso programa não apenas fiscal, mas de reforma do Estado brasileiro. Para fomentar o debate sobre o mérito de suas ideias e intenções, segue um resumo dos principais tópicos das três PECs, agrupadas segundo seus principais temas:

Governança fiscal:

  • Cria o Conselho Fiscal da República, com a presença do Presidente da República e dos presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal de Contas da União, além de três governadores e três prefeitos. Objetivo é monitorar periodicamente a situação fiscal de todos os entes federativos.
  • Estabelece que o TCU consolidará a interpretação sobre a legislação fiscal no Brasil, determinando que suas Orientações Normativas tenham efeitos vinculantes sobre os Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios. O TCU também será a instância recursal caso os TCEs e TCMs descumpram a sua jurisprudência.
  • Institui um comando sobre consolidação e transparência de contas públicas. O ente federativo que não cumpri-lo não receberá transferências voluntárias e não poderá contratar operações de crédito.

Novo pacto federativo:

  • Segundo a proposta, a União transferirá parte dos recursos de participação na exploração econômico de petróleo, gás, recursos hídricos e minerais para Estados e municípios. Paulo Guedes estima um montante de R$ 400 bilhões a serem destinados aos outros entes federativos nos próximos 15 anos.
  • Essa oferta, entretanto, não vem desacompanhada de contrapartidas: os Estados devem abrir mão dos processos movidos contra a União questionando os repasses da Lei Kandir (perda de arrecadação dos estados em função da desoneração das exportações brasileiras) e não podem aplicar os recursos a serem recebidos no pagaemnto de pessoal ativo, inativo e pensionistas.
  • A União também repassará para Estados e municípios, em 3 anos, a integralidade da contribuição social do salário-educação.
  • Permite que Estados e municípios concedam bolsas de estudos para estudantes carentes na rede privada (os famosos vouchers) também para a educação infantil (de 0 a 5 anos). No texto atual da Constitucional, isso só é possível para os ensinos fundamental e médio.

Relação entre União, Estados e Municípios:

  • A União não poderá mais conceder garantias para operações de crédito de Estados e municípios.
  • A União não poderá mais intervir nos Estados e municípios para reorganizar as suas finanças públicas.
  • Extingue a linha de crédito da União para os Estados e municípios pagarem seus precatórios.

Desvinculação:

  • Autoriza a redução, nos limites de saúde, do valor aplicado em educação acima do limite constitucional – e vice-versa. Ou seja, os limites mínimos de despesas em educação e saúde foram preservados em conjunto, mas caberá a cada ente, anualmente, definir como alocará essas despesas entre cada uma das políticas públicas.
  • Reduz a destinação de recursos do PIS/Pasep para o BNDES: de 40% para 14%.
  • Extingue-se a vinculação de recursos de irrigação para as regiões Nordeste e Centro-Oeste.
  • Elimina a vinculação dos recursos dos royalties do petróleo e do pré-sal ao Fundo Social e às despesas com saúde e educação.
  • Extingue os fundos públicos que não sejam revalidados pelos Legislativos federal, estadual e municipal, transferindo seus patrimônios para os respectivos entes e as receitas a eles vinculadas para um fundo de erradicação da pobreza e outro de infraestrutura.

Desindexação:

  • Exclui a revisão anual e a vinculação ao salário mínimo do Benefício de Prestação Continuada – BPC.
  • Elimina a indexação das despesas de saúde da União à variação do PIB.

Gatilhos em caso de crise fiscal:

  • Válidos em caso de descumprimento da regra de ouro (para a União) e quando as despesas correntes superarem 95% das receitas correntes (para Estados e Municípios). No caso desses últimos, o percentual será apurado bimestralmente, levando em conta os 12 meses anteriores.
  • Medidas temporárias de ajuste (uma espécie de “shutdown à brasileira” segundo o próprio Paulo Guedes) incluem medidas no âmbito do funcionalismo público (suspensão da concessão de reajustes salariais, criação de cargos, alteração de carreiras, admissão de pessoal, realização de concursos públicos, criação ou majoração de auxílios e benefícios indenizatórios), a criação ou o reajuste acima da inflação de despesas obrigatórias, a criação ou ampliação de programas e linhas de financiamento, a renegociação de dívidas e a concessão ou o aumento de benefícios tributários.
  • Medidas complementares ainda podem ser adotadas, como a redução da jornada de trabalho de servidores de todos os Poderes, com redução proporcional de seus rendimentos, a suspensão ou promoção de servidores (exceto carreiras em estrutura piramidal, como juízes, MP, polícia e diplomacia) e o repasse de recursos do PIS/Pasep para o BNDES (no caso da União).

Novas regras sobre o processo orçamentário:

  • A sustentabilidade fiscal, mais especificamente quanto à trajetória da dívida pública, passa a ser o grande norte da política fiscal, orientando a elaboração dos orçamentos.
  • Extingue o plano plurianual e transforma a lei orçamentária em lei de orçamento plurianual (a lei de diretrizes orçamentárias foi mantida).
  • O orçamento plurianual deverá fixar a despesa para o primeiro ano e indicar a previsão para os anos seguintes. Uma Lei Complementar definirá qual será o horizonte do orçamento plurianual (2, 3, 4 anos…).
  • Como consequência, os créditos especiais e extraordinários também poderão valer para os exercícios financeiros seguintes.
  • Fortalece a aplicação da regra de ouro (vedação de operações de crédito que superarem as despesas de capital), aplicando-a para o ano corrente.

Pacificação de dúvidas de aplicação sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal:

  • Inclui pensionistas no cálculo dos limites de despesas de pessoal para todos os entes federativos.
  • Os Poderes Legislativos de todos os entes federativos deverão incluir no cálculo de seus limites de despesas o pagamento de inativos e pensionistas.
  • Flexibiliza o conceito de irredutibilidade dos rendimentos de servidores públicos, para permitir o ajuste proporcional de seus ganhos em caso de redução da jornada. Essa regra vale inclusive para parlamentares, juízes, membros do Ministério Público, secretários estaduais e ministros.
  • Os Poderes Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública deverão limitar suas despesas na mesma proporção do Poder Executivo em caso de não cumprimento dos limites fiscais.

Limites fiscais ao ativismo judicial:

  • O rol de direitos sociais da Constituição Federal (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados) fica sujeito ao “direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”.
  • Decisões judicias que impliquem despesas só serão cumpridas se houver dotação orçamentária suficiente para o seu pagamento. Essa norma dá concretude ao conceito de “reserva do possível” nos casos de judicialização do acesso a saúde e a outras políticas públicas.
  • Leis ou atos que gerem despesas sem dotação orçamentária suficiente não gerarão obrigação de pagamento futuro pelo erário (norma anti-esqueletos).

Criação de municípios:

  • A Lei Complementar que permite a incorporação, fusão e desmembramento de municípios também deve disciplinar o critério de viabilidade financeira.
  • Municípios de até 5.000 habitantes que não obtiverem pelo menos 10% da sua receita via arrecadação própria (IPTU, ISS e ITBI) até 30/06/2023 deverão se fundir com municípios limítrofes, até o limite de 3 por município agregador.

Regras mais duras para o funcionalismo público:

  • Extingue-se o direito de revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos.
  • Veda o pagamento de benefícios para servidores com efeitos retroativos.
  • Veda o pagamento de benefícios decorrentes de decisões judiciais antes do seu trânsito em julgado.
  • Proíbe leis que concedam pagamentos retroativos de qualquer natureza.

Benefícios fiscais:

  • Benefícios e incentivos de natureza tributária não poderão ser criados, ampliados ou renovados quando superarem 2% do PIB.
  • Benefícios e incentivos tributários, creditícios e financeiros serão reavalidos no máximo a cada 4 anos.

 

Como se vê, as mudanças são bastante abrangentes e serão certamente motivo de grandes discussões durante a sua tramitação, tendo em vista seus impactos sobre o atual (des)equilíbrio orçamentário e sobre as políticas públicas, principalmente saúde e educação. Precisamos acompanhar de perto esses debates.