Texto e gráficos de Bruno Carazza dos Santos

Dando sequência à minha análise sobre o Projeto de Lei no. 5.587/2016, que “regula” os aplicativos de transporte coletivo, algumas reflexões sobre privilégios estatais, (falta de) concorrência e o poder dos reguladores.

A imprensa brasileira adora um clássico, e não apenas no futebol. Análises políticas e econômicas costumam ser feitas na base do Fla-Flu, da esquerda contra a direita, dos monetaristas versus desenvolvimentistas, dos consumidores contra as empresas. No caso do PL no. 5.587/2016 não foi diferente. Com raras exceções, a aprovação na Câmara dos Deputados do projeto de lei que pretende regular os aplicativos de transporte urbano foi descrita como uma vitória de taxistas contra Uber, Cabify e similares. Mas o rol de vencedores e perdedores vai muito além. Vou tentar qualificar melhor a questão à luz de um pouco de teoria econômica e política.

O povo contra o PL no. 5.587/2016?

A imensa repercussão negativa da aprovação do PL nas redes sociais (só o meu post explicando a tramitação do projeto teve mais de 2.000 acessos!) e nas conversas cotidianas já mostra que os principais perdedores não são as empresas que desenvolveram esses aplicativos ou os seus motoristas, mas os milhões de usuários nas principais cidades brasileiras. Esses usuários acostumaram-se nos últimos anos a ter acesso, na palma da mão, a um serviço de transporte mais barato e com melhor qualidade do que os táxis em geral. Assim, um projeto de lei que dificulta a atuação desses aplicativos impõe custos à maioria (usuários) em favor de uma minoria (taxistas). Trata-se de um exemplo perfeito da Lógica da Ação Coletiva, teoria proposta por Mancur Olson em 1965 que demonstra como grupos com grande poder de organização e com muito interesse em jogo (como os taxistas) têm maior chance de sucesso na arena política do que a maioria desinteressada, desorganizada e com pouco a ganhar diretamente com a legislação em discussão (os usuários). Benefícios concentrados (dos taxistas) e prejuízos difusos (dos usuários) ditaram não apenas a tramitação do PL no. 5.587/2016: são a tônica do nosso subdesenvolvimento econômico e social.

Existem taxistas e taxistas

Outro aspecto importante dessa discussão, e parece que a imprensa também passou batido por ele, é a distinção entre duas espécies de “taxistas”. De acordo a legislação, os serviços de táxis tanto podem ser prestados por permissionários (pessoas que obtiveram a licença para explorar os serviços de táxi) quanto por motoristas que, autorizados pelo órgão municipal, alugam o táxi do permissionário, pagando em geral uma diária.

Para ter uma ideia da dimensão de cada uma dessas categorias, solicitei via Lei de Acesso à Informação à BHTrans, o órgão que regula o serviço aqui em Belo Horizonte, a relação de todos os taxistas em atividade na cidade. O resultado está no gráfico abaixo:

Como você pode ver, quase a metade dos taxistas em BH pertence à categoria de “associados”. São trabalhadores que pagam diárias de R$ 100 a 150 para o permissionário por 12 horas rodando pelas ruas da cidade. Ou seja, pessoas que só começam a lucrar depois de terem feito o suficiente para pagar essa dívida diária, além do combustível. E sem qualquer proteção da legislação trabalhista (aliás, nunca vi ninguém criticando sua exploração econômica pelos permissionários, como fazem com a Uber).

A situação dos taxistas sem licença era tão ruim que muitos deles começaram a migrar para Uber e Cabify. Afinal, muitos passaram a achar melhor ter flexibilidade de horário e repassar 25% de toda a receita para a empresa do aplicativo do que pagar uma diária fixa para o dono da licença do táxi. A liberdade tem um preço, e no caso deles, ele deve ser mais baixo do que o aluguel do táxi.

Taxistas ou rentistas?

Quanto aos taxistas permissionários, o crescimento de serviços como Uber e Cabify não gerou apenas uma queda de receita decorrente da concorrência pelos passageiros. A migração de taxistas associados gerou uma queda no valor das diárias de aluguel e a desvalorização das licenças.

Neste ponto chegamos ao cerne da disputa em torno do PL no. 5.587/2016. Ser “proprietário” de uma licença de táxi não é apenas ser um agente privado prestando um serviço público. É ser, sobretudo, um rentista.

É só fazer as contas: R$ 100 a 150 de diária por 12h dão de R$ 3 mil a 4,5 mil de renda mensal livres, sem precisar pegar no volante. E ainda sobram 12h para rodar no táxi ou até mesmo para alugar o táxi para outro associado.

E além disso existem os ganhos indiretos. Isenção de IPI e ICMS para comprar carros novos a cada 3 anos gera uma renda extra com a sua revenda, além da dispensa de ter que pagar ISSQN sobre seus ganhos e IPVA sobre o veículo. Nas cidades maiores os taxistas também podem comercializar o espaço de seus parabrisas traseiros para publicidade. Essas múltiplas fontes de renda (receitas advindas do taxímetro, das diárias cobradas dos taxistas não permissionárias e da publicidade), combinada com isenções tributárias sobre os veículos e a atividade em si, fazem com que uma licença valha, no mercado negro, de R$ 150 a 450 mil em alguns municípios, segundo consta na justificativa do Dep. Alberto Fraga (DEM/DF) ao PL 2.632/2015.

Ser detentor de uma licença de táxi é algo tão rentável que em muitas cidades existem indivíduos que detêm dezenas delas, obtidas na base do compadrio numa época em que não se exigia licitação.

No caso de Belo Horizonte, o gráfico abaixo mostra que existem algumas frotas com até 30 licenças concedidas para a mesma pessoa jurídica. A regra geral, no entanto, é que as licenças sejam atribuídas a um único CPF. Isso não descarta o boato corrente no mercado de que é comum o uso de laranjas por pessoas que são, de fato, “donas” de várias licenças (se a PF ou a Receita quiserem, não deve ser difícil descobrir boa parte desses laranjas cruzando dados do CPF de permissionários).

A mobilização política em favor do PL no. 5.587/2016 reflete, portanto, uma reação dos permissionários contra a concorrência de Uber e Cabify, que com um novo modelo de negócios e o uso da tecnologia ameaçam o rentismo dos taxistas.

A rapidíssima aprovação do PL expõe uma típica atividade denominada de rent seeking (“busca de renda”) pela teoria econômica e política. Estudiosos como Gordon Tullock e James Buchanan, ainda na década de 1960, chamaram a atenção para empresas e grupos de interesses que, em vez de investirem na oferta de melhores produtos e serviços para os consumidores, preferem pagar lobistas, fazer contribuições de campanha ou corromper políticos para garantir privilégios como isenções tributárias, regulação benéfica ou barreiras à entrada de competidores. Com isso, obtêm rendas (daí o termo rent seeking) que são usufruídas por eles, mas pagas pela maioria silenciosa de contribuintes e consumidores.

[Aliás, as isenções tributárias que os taxistas conquistaram com lobby nas instâncias municipal, estadual e federal nos últimos anos torna totalmente sem sentido o argumento de que Uber e Cabify não pagam impostos e, por isso, são clandestinos e exercem concorrência desleal, não?]

A classe dos taxistas é tão eficiente na prática do rent seeking que em 2013 ela conseguiu até incluir numa medida provisória um dispositivo que garante aos permissionários o direito de transmitir a outorga do táxi para seus herdeiros em caso de falecimento dos taxistas. Haveria evidência maior de rentismo do que essa?

Combater empresas como Uber e Cabify no Congresso e nos tribunais, e não na qualidade e no preço de seus serviços, é uma típica atividade de rent seeking dos taxistas  permissionários para eliminar a concorrência e manter sua fonte de renda.

Aliás, o rent seeking exacerbado é outra característica marcante do capitalismo brasileiro. Quantos empresários gastam fortunas com lobby e corrupção para conseguir empréstimos subsidiados, regulação suave, regimes tributários especiais e proteção alfandegária, quando deveriam estar investindo em produtos e serviços melhores para concorrer no mercado nacional e internacional?

Ah, o poder…

Outro importante ator negligenciado nas análises sobre o PL no. 5.587/2016 são os reguladores municipais. Caso o projeto vire lei com a redação atual, toda atividade de empresas como Uber e Cabify no Brasil terá que ser regulada pelas autoridades de trânsito em cada município. Você imagina o poder que será dado aos políticos municipais com essa alteração na lei?

Na década de 1970, economistas da Escola de Chicago como George Stigler, Richard Posner, Robert Barro e Sam Peltzman apontaram que os representantes do Estado não são agentes passivos diante dos pleitos dos grupos de interesses: eles muitas vezes estabelecem as regras do jogo (regulação) levando em conta o que poderão extrair em termos pessoais para si (propinas, promoções, colocação profissional no futuro…). Sabe aquela velha máxima de “criar dificuldade pra vender facilidade”? É disso que estamos tratando aqui.

Atribuir a responsabilidade para autorizar e regular aplicativos de transporte em cada município é dar um imenso poder para representantes do Executivo e do Legislativo decidirem quem, quando, onde e como o serviço será prestado. Aliás, procure saber quando foi a última licitação de licenças de táxis na sua cidade – é uma boa evidência de quanto pode render o poder de uma caneta ao limitar a concorrência.

Afora o agravamento de possibilidades de má regulação e corrupção (não é à toa que a Uber rapidamente expôs as mazelas do serviço de táxi nas principais cidades brasileiras), a aprovação do PL pode matar uma exitosa experiência de não regulação vivenciada no Brasil até agora.

Uber, Cabify e cia estão mostrando que a regulação não precisa ser tão minuciosa e restritiva à concorrência como acontece no serviço dos táxis. De uma só tacada, colocaram a crença de que é necessário que o Estado controle preços (mostrando-se bem mais baratos que os táxis) e também qualidade – os serviços a garantem tanto via avaliação dos motoristas quanto pela segmentação do serviço (UberX, Uberpool, UberSelect e UberBlack estão disponíveis para todos os bolsos e preços).

Se houvesse genuíno interesse dos parlamentares em regular os aplicativos (e reconheço que isso é em parte necessário), isso deveria ter sido feito em termos de tributação, melhorias na segurança jurídica dos motoristas (garantias de contrato no seu vínculo com Uber, Cabify e etc) e direitos dos clientes (requisitos para os motoristas, indenizações em caso de dano, etc.). Atribuir poder regulatório a cada município é dar mais poder a tiranetes de balcão e políticos com uma tendência mafiosa.

Por esses motivos, o PL no. 5.587/2016 só me convence de que somos o país das corporações, do rent seeking e dos reguladores interessados no seu próprio bem-estar. Contra eles, precisamos de mais concorrência, mais inclusão e mais inovação.

PS: Agradeço aos amigos e colegas João Aurélio, Paulo Santa Rosa, Andrei Soares, Guilherme Hamdan, Adriano Gianturco, Pedro Bozzolla e Reinaldo Araújo por muitos insights para a elaboração deste texto.

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