Ciência Política deveria iluminar estratégia do governo

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 30/08/2021

 

Na sua longa caminhada rumo à vitória em 2018, não foram poucas as vezes em que o então deputado Jair Bolsonaro vilipendiou o Bolsa Família, acusando-o de ser eleitoreiro e de desincentivar o trabalho. Houve ocasião em que o chamou pejorativamente de “Bolsa Farelo”, e em outra insinuou, contra todas as evidências empíricas, que o programa estimulava mulheres pobres a terem mais filhos. Uma vez no poder, Bolsonaro não apenas manteve o benefício, como busca ampliá-lo, rebatizando-o de Auxílio-Brasil.

Na sua longa caminhada rumo à vitória em 2002, Lula era um árduo defensor da instituição do imposto sobre grandes fortunas, o único tributo federal previsto na Constituição que nunca saiu do papel. Durante os oito anos em que ocupou o Palácio do Planalto, porém, Lula nunca se esforçou verdadeiramente por cumprir sua promessa. E mais do que isso: atual líder nas pesquisas de intenção de voto para as próximas eleições, o petista recentemente declarou em entrevistas e nas redes sociais que é contra taxar a riqueza acumulada pelos multimilionários.

As contradições entre o discurso e a prática desses dois importantes líderes políticos ilustra bem uma característica marcante da história brasileira desde a redemocratização. Tendo à disposição as duas principais armas para combater a pobreza e a desigualdade – a elevação de gastos e transferências de renda, de um lado, e a instituição de um sistema tributário progressivo, de outro –, nossa classe política, independentemente da posição ideológica, opta sistematicamente pelo caminho mais fácil do aumento da despesa pública.

Numa tese de doutorado que acaba de ser defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), Eduardo Lazzari se vale de farta documentação histórica, dados legislativos e evidências internacionais para explicar mais este paradoxo brasileiro: por que motivo, num país com tamanha desigualdade social, a defesa por um sistema tributário mais justo não gera incentivos político-eleitorais para a sua implementação?

A hipótese levantada por Lazzari baseia-se nas distinções entre a distribuição e a tangibilidade de custos e benefícios envolvidas nas opções por buscar a redistribuição de renda via gastos ou por meio da tributação.

Dos primeiros programas de distribuição de leite e de vale-gás no governo Sarney até o auxílio-emergencial de Bolsonaro, passando pela instituição do SUS, a universalização do acesso à educação básica, o Bolsa Família e os aumentos reais no salário mínimo, todos os presidentes brasileiros tentaram deixar a sua marca com políticas públicas centradas na despesa. Embora com impactos distintos, maior ou pior focalização, a intenção sempre foi extrair retornos eleitorais com os gastos sociais.

A explicação para isso está no fato de que políticas públicas que ampliam gastos sociais ou transferências de renda têm benefícios palpáveis para os cidadãos mais pobres, enquanto seu financiamento é diluído por impostos pagos por toda a sociedade – o aumento das despesas sociais, portanto, tem benefícios tangíveis e concentrados para os eleitores, e seus custos são difusos.

No caso da tributação progressiva ocorre justamente o contrário: aumentar as alíquotas do imposto de renda ou reinstituir a tributação de dividendos tem benefícios que não são percebidos pelos mais pobres, mas sua instituição pesa imediatamente no bolso dos mais ricos – que se mobilizam, então, para barrar a proposta. Com custos concentrados e benefícios difusos, a classe política não tem interesse em enfrentar interesses poderosos em prol de um sistema tributário que cobre mais de quem tem mais capacidade contributiva. Em outras palavras, propostas de reforma tributária progressiva não dão voto.

Entre os vários exercícios realizados para comprovar a sua tese, Lazzari utilizou um algoritmo assistido para analisar quase 5.000 projetos de lei de natureza tributária apresentadas no Congresso entre 1989 e 2020. A conclusão é retumbante: do total de proposições, apenas 5,1% foram classificadas como tendo o objetivo de reduzir a regressividade no sistema tributário brasileiro.

Classificando a vinculação partidária dos autores das proposições, o cientista político identificou que parlamentares da esquerda tendem a ser mais ativos em apresentar propostas de aumentar os tributos sobre os mais ricos – porém, essa vantagem desapareceu quando o PT esteve no governo; uma evidência de que, uma vez no poder, ninguém quer confusão com os donos do capital.

O arcabouço teórico e as evidências empíricas apresentadas na tese de Eduardo Lazzari demonstram como economistas do governo precisam estar mais atentos aos diagnósticos e prescrições vindas da Ciência Política. Tome-se o caso da reforma tributária atualmente em discussão no Congresso.

Ministro da Economia, Paulo Guedes entrega segunda fase da Reforma Tributária no Congresso Nacional. Foto: EDU ANDRADE/Ascom/ME

 

A PEC nº 45/2019 – concebida no Centro de Cidadania Fiscal, dirigido por Bernard Appy – não tinha como propósito principal combater a regressividade no nosso sistema tributário. Ao perseguir uma maior simplificação do sistema e diluindo seu custo de implementação ao longo de vários anos, a proposta enfraquecia o poder de veto dos eventuais perdedores em caso de mudança. Ao defender que questões de desigualdade deveriam ser tratadas via programas de transferência de renda, as chances de aprovação aumentaram.

Mas eis que surgiu Paulo Guedes com sua ideia de retomar a tributação sobre dividendos e o fim da isenção dos juros sobre capital próprio. Embora a iniciativa seja meritória, o governo não possui base política no Congresso para superar a resistência dos poderosos grupos econômicos que se beneficiam desse privilégio tributário. Aplicando aqui a tese de Lazzari, ao introduzir no debate o conflito distributivo, Guedes mina as perspectivas de aprovação da reforma.

Há algumas semanas fez sucesso nas redes sociais um meme em que um meia habilidoso faz uma jogada individual brilhante e deixa o atacante cara a cara com o goleiro. Seria um gol de placa, se o centroavante não isolasse a bola grosseiramente por cima da meta. Na legenda, dizia-se: “Bernard Appy e Paulo Guedes”.