Na última quarta-feira, 05/08/2009, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental que contestava o monopólio dos Correios.

A ação havia sido proposta pela Associação Brasileira das Empresas de Distribuição – Abraed e pretendia que o STF julgasse declarasse que o monopólio estatal estabelecido pela Lei nº 6.538/1978 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988.

Vamos traduzir o juridiquês, antes de adentrar no mérito da disputa judicial: Uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF é um tipo de ação prevista na Constituição (art. 102, § 1º) e regulamentada pela Lei nº 9.882/1999 (clique aqui). Ela tem duas utilidades: i) evitar ou reparar lesão a preceito constitucional provocados por atos do Poder Público ou ii) quando houver controvérsia se uma lei ou outra norma federal, estadual ou municipal está em desacordo com a Constituição, mesmo que tenha sido editado antes da Constituição. Trata-se de um dos vários meios previstos na legislação brasileira para o Supremo Tribunal Federal proteger a ordem constitucional contra possíveis agressões provocadas por leis ou outros atos do Poder Público.

A ADPF nº 46, prevista pela Abraed, se valeu justamente da segunda hipótese de cabimento de uma ADPF. Ela questionou que a concessão de monopólio estatal para a distribuição de cargas, cartões postais e malotes, estabelecida pela Lei nº 6.538/1978 (portanto, anterior à CF/1988) não estaria amparada pela nova ordem constitucional, que está baseada na livre iniciativa e na livre concorrência.

Vamos descer agora aos detalhes. O que diz a Lei nº 6.538/1978 (clique aqui)?

Fazendo uma alusão com o sistema de classificação biológica (taxinomia), temos que serviços postais são uma família, da qual objetos de correspondência, valores e encomendas são gêneros. Já as espécies de cada um dos gêneros estão definidas em cada um dos parágrafos do art. 7º da lei.

Art. 7º – Constitui serviço postal o recebimento, expedição, transporte e entrega de objetos de correspondênciavalores e encomendas, conforme definido em regulamento.
§ 1º – São objetos de correspondência:
a) carta;
b) cartão-postal;
c) impresso;
d) cecograma;
e) pequena – encomenda.
§ 2º – Constitui serviço postal relativo a valores:
a) remessa de dinheiro através de carta com valor declarado;
b) remessa de ordem de pagamento por meio de vale-postal;
c) recebimento de tributos, prestações, contribuições e obrigações pagáveis à vista, por via postal.
§ 3º – Constitui serviço postal relativo a encomendas a remessa e entrega de objetos, com ou sem valor mercantil, por via postal.

E o que está amparado pelo agora tão falado monopólio postal dos Correios? Todas essas formas de serviços postais? A resposta é não, e está definida no seguinte dispositivo da mesma lei:

Art. 9º – São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais:
I – recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;
II – recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada:

Daí vemos que a citada Lei estabele uma exclusividade de exploração, pela União (no caso, pelos Correios, empresa pública criada com esse fim), apenas para as atividades de carta, cartão-postal e correspondência agrupada.

Os serviços postais de encomendas, valores e impressos em geral (entrega de revistas, jornais, etc.) sempre estiveram a salvo do monopólio dos Correios. E foi por isso que as empresas de distribuição (Fedex, DHL, Variglog, Tam Express, etc.) floresceram nos últimos anos no país.

Mas então o que as empresas associadas à Abraed buscaram com a propositura da ADPF nº 46 no STF? Buscaram questionar o monopólio dos Correios inclusive em relação às cartas, cartões-postais e correspondências agrupadas (os famosos “malotes” das pessoas jurídicas).

Toda a disputa gira em torno do conceito de carta. Para a Lei nº 6.835/1978 a definição é a mais ampla possível:

Art. 47º – Para os efeitos desta Lei, são adotadas as seguintes definições:
CARTA – objeto de correspondência, com ou sem envoltório, sob a forma de comunicação escrita, de natureza administrativa, social, comercial, ou qualquer outra, que contenha informação de interesse específico do destinatário.

O que a Abraed queria? Sua intenção era que o STF reduzisse esse conceito para o mínimo possível, conforme pode ser visto em um trecho de sua petição inicial (que está disponível aqui):

“[Pede] declarar o que se entende por carta, que por motivos de segurança e privacidade, continuam sendo prerrogativas da argüida [ou seja, continue sendo monopólio do Correios], restringindo tal conceito de carta ao papel escrito, metido em envoltório fechado, selado, que se envia de uma parte a outra, com conteúdo único, para comunicação entre pessoas distantes contendo assuntos de natureza pessoal e dirigido, produzido por meio intelectual e não mecânico, excluídos expressamente deste conceito as conhecidas correspondências de mala-direta, revistas, jornais e periódicos, encomendas, contas de luz, água e telefone e assemelhados, bem como objetos bancários como talões de cheques, cartões de crédito, etc.”

Fica evidente, portanto, que a intenção das empresas de distribuição é reduzir uma exclusividade que foi devida por lei como sendo dos Correios. Se o STF reduzisse o conceito de “carta” para uma correspondência estritamente pessoal (daquelas que ninguém escreve mais, em tempos de email e celular) , abrir-se-ia um imenso mercado para essas empresas roubarem um naco daquilo que hoje, legalmente, é exclusivo dos Correios.

Temos aí um interessante caso em que uma disputa judicial centra-se na dúvida sobre se um mercado é ou não objeto de um monopólio estabelecido por lei.

Nas postagem seguintes exploraremos melhor o tema.