Datafolha indica elevação de risco de questionamento do resultado das urnas

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 30/05/2022.

 

O resultado da última pesquisa Datafolha, divulgada na noite de quinta-feira (26/05), agitou a política brasileira. Apontando uma vitória de Lula já no primeiro turno, com 54% dos votos válidos, ela enfureceu os apoiadores de Jair Bolsonaro, que passaram a desacreditar o instituto e acusá-lo de manipulação dos dados, que seriam incompatíveis com o “DataRua” das aparições públicas do presidente.

Não é a primeira vez que isso ocorre, e há poucas semanas as críticas tiveram outro alvo e origem oposta. Publicado em 13 de abril, levantamento do PoderData mostrou a diferença de Lula sobre Bolsonaro caindo para apenas 5 pontos percentuais, o que gerou uma avalanche de acusações vindas da esquerda sobre a lisura da pesquisa e supostos interesses escusos nos números indicados.

Vivemos um tempo em que a credibilidade das pesquisas está abalada, e isso se deve a uma série de fatores. Para começar, a ausência de um censo demográfico desde 2010 prejudica o planejamento da amostragem. Diferentes metodologias e tecnologias de coleta também produzem resultados muitas vezes divergentes, deixando muitas dúvidas no ar.

Com as sucessivas ondas de golpes a que estamos sujeitos diariamente, cidadãos se tornaram mais arredios a atenderem os entrevistadores, sejam presenciais ou por telefone. A elevada abstenção nas eleições e as decisões tardias de voto, marcas dos últimos pleitos (como nas vitórias de Witzel no Rio e Zema em Minas Gerais em 2018) produzem surpresas que são apontadas como erros flagrantes dos institutos de pesquisas.

Mas há um outro fenômeno que prejudica ainda mais a confiança nas medidas de intenções de voto: a forte segregação da população brasileira, agravada pelos algoritmos das redes sociais, nos prenderam em ilhas de preferências políticas que causam falsas percepções da realidade.

Nem sempre foi assim. Entre 1994 e 2002, os presidentes eleitos (FHC duas vezes e depois Lula) dominaram por ampla margem as intenções de voto durante boa parte da corrida eleitoral em todos os segmentos de todos os recortes usualmente utilizados nas pesquisas eleitorais – gênero, idade, escolaridade, renda, região, etc. O resultado das urnas era aceito de forma inconteste.

Em 2006, porém, começa a surgir uma nítida clivagem social nas preferências eleitorais. Naquele ano, apesar da folgada vitória de Lula sobre Alckmin no segundo turno (60,83% a 39,17%), as pesquisas na véspera da votação indicavam que o ex-tucano levava vantagem sobre o petista entre os eleitores de nível superior (53% a 47%), de rendimentos mensais superiores a 10 salários-mínimos (56% a 44%) e moradores da região Sul (52% a 48%).

Desde então, esse padrão só se intensifica. De um lado, a maioria petista a cada eleição (com Dilma Rousseff em 2010 e 2014, Fernando Haddad em 2018 e agora Lula em 2022) se consolidou entre as mulheres, os jovens e os eleitores de baixa renda e ensino fundamental, além dos moradores do Nordeste. O outro lado (José Serra em 2010, Aécio Neves em 2014 e Bolsonaro em 2018 e 2022), por sua vez, ampliou sua base no público masculino, mais velho, de renda e escolaridade altas e habitantes do centro-sul do país – mais recentemente, acrescente-se aí também a maioria dos eleitores evangélicos.

O fato de termos maiorias de esquerda e de direita, lulistas e bolsonaristas, em territórios tão fortemente demarcados demonstra que nós vivemos em bolhas não apenas na internet. Enquanto nas redes sociais os algoritmos se encarregam de aproximar aqueles que pensam igual, na vida real a classe social a que pertencemos e nossas relações de trabalho e amizade também nos segregam em câmaras de ressonância de convicções e preferências políticas mais ou menos uniformes.

Numa sociedade tão dividida em termos econômicos, regionais, etários e religiosos, questionamentos sobre a “veracidade” de pesquisas tornam-se muito mais frequentes. Qualquer pesquisa que indique Lula à frente será considerada manipulada por empresários do agronegócio de Sinop, no Mato Grosso, pois lá Bolsonaro é o preferido pela imensa maioria de seus familiares e amigos. Da mesma forma, levantamentos que apontarem uma redução na liderança do petista será vista com desconfiança nos meios acadêmicos, onde o sentimento de “Fora Bolsonaro” é praticamente uma unanimidade.

A questão torna-se muito mais séria quando essa percepção extrapola o campo das pesquisas e chega à própria legitimidade do processo eleitoral. Nesse sentido, a segunda leva de resultados do último Datafolha é muito preocupante.

Para 34% dos entrevistados, existe muita chance de haver fraude nas eleições deste ano. Isso significa que a pregação de Bolsonaro contra a segurança das urnas eletrônicas e a imparcialidade da Justiça Eleitoral vem surtindo efeito, uma vez que essa percepção é compartilhada não apenas por 60% de seus eleitores, mas encontra ressonância até mesmo em 21% daqueles que pretendem votar em Lula em outubro.

As dúvidas sobre a confiabilidade das urnas povoam o imaginário de 24% dos brasileiros, e eles não são exclusivamente bolsonaristas. 16% dos eleitores lulistas já não acreditam no sistema eletrônico utilizado no Brasil; entre os apoiadores do presidente, o indicador chega a 40%.

Além da falta de credibilidade dos institutos de pesquisas e das suspeitas sobre a segurança das urnas, um provável desfecho conturbado das eleições deste ano também já entrou no radar dos brasileiros. Para 56% dos entrevistados, é preciso levar a sério os ataques do presidente aos ministros do TSE e do STF e as suas ameaças sobre as eleições – e neste quesito não há diferença de julgamento entre bolsonaristas e lulistas.

Uma sociedade dividida, com redes sociais amplificando a polarização, disseminação de dúvidas sobre a legitimidade do processo eleitoral e a normalização de ataques às instituições que garantem o resultado das urnas – a bomba relógio já está armada para explodir entre 02 de outubro de 2022 e primeiro de janeiro de 2023. Tic-tac, tic-tac, tic-tac…