Transição inaugura fase das negociações políticas

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 07/11/2022.

 

O cafezinho de Bolsonaro nem bem esfriou e os vultos da República já procuram o próximo inquilino do Palácio do Alvorada.

Gilberto Kassab já apresentou sua fatura – e ela foi reajustada após a vitória apertada de Lula. Em entrevista à Folha, o presidente do PSD declarou que seu partido é agora de centro-direita, e para aportar seus 42 deputados e 11 senadores na base do governo, faz pesadas exigências.

Luciano Bivar, do União Brasil, disse ao Globo que não descarta participar da base lulista, a depender da proposta. Sua contrapartida são 59 deputados e 10 senadores – embora a maioria deles seja bolsonarista.

Renan Calheiros, por sua vez, critica que o governo Lula esteja cedendo demais às exigências do Centrão. Está com ciúmes. Seu MDB, com 42 deputados e 10 senadores, tem intenção de ter assento privilegiado na nova composição governista.

Até Edir Macedo pregou o perdão e revelou estar orando pelo petista. Sua Igreja Universal domina o Republicanos e conta com um rebanho de 41 deputados e 3 senadores.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foto: Marina Ramos/ Câmara dos Deputados

Na ponta do lápis, a esquerda (PT/PV/PCdoB, Psol/Rede, PSB e PDT) contará com 125 deputados federais e 14 senadores. Não dá nem para apresentar uma PEC.

No outro extremo, entre ex-ministros, apoiadores de primeira hora (aqueles eleitos pelo PSL em 2018 e reeleitos pelo PL neste ano), militares, pastores e defensores de bandeiras como o armamento civil, o bolsonarismo-raiz fez em torno de 110 cadeiras na Câmara e 13 no Senado.

Neste empate técnico entre as principais forças políticas do país, o desempate será definido no centro – seja no auto-denominado “centro democrático” (MDB, PSD, PSDB/Cidadania, Podemos), seja no Centrão (PL, PP, União Brasil, Republicanos e outras siglas menores).

É praticamente impossível diferenciar conservadorismo de fisiologismo. Sorte que temos os números para nos ajudar a interpretar o movimento dos ventos da política.

Dos 513 deputados que tomarão posse em fevereiro, podemos identificar 235 filiados a partidos de centro ou de direita que exerceram pelo menos um mandato na Câmara de 2007 até hoje.

Comparando as votações de cada um deles com o posicionamento do governo (de Lula 2 a Bolsonaro), vemos que o governismo é predominante neste grupo. A média de apoio ao presidente foi de 67,1% no segundo mandato de Dilma Rousseff a 91,8% com Temer.

Esses números são favoráveis a Lula. Entre os 41 deputados de partidos do centro e do Centrão que trabalharam durante seu segundo mandato (2007-2010) e estarão na Câmara em 2023, a média de apoio à sua gestão nas votações foi de 85,5%.

 

Isso quer dizer que Lula terá uma avenida aberta para governar conforme bem entender? Não é bem assim.

Barry Ames, professor emérito da Universidade de Pittsburgh e um grande especialista nas relações entre os Poderes Executivo e Legislativo brasileiros, relativiza essa alta taxa de aprovação.

Em seu livro Os Entraves da Democracia no Brasil, Ames argumenta que os números positivos não levam em conta os casos em que o governo nem sequer consegue propor ao Congresso reformas que considera importantes, diante da reação negativa dos líderes partidários. Também não são computadas como derrotas as propostas que acabam engavetadas e os projetos “amaciados” nas negociações de bastidores.

A depender da temática, o poder de mobilização do Presidente da República fica à mercê dos interesses privados. Na votação do Código Florestal, por exemplo, o governo foi derrotado em diversos dispositivos porque o Centrão, que em 2012 ainda era bastante fiel à presidente Dilma Rousseff, resolveu seguir a orientação da bancada ruralista.

O episódio demonstra que quanto mais fluido o apoio, maior o risco de derrotas, principalmente em projetos politicamente sensíveis.

Faltando quase dois meses para a posse, Lula já se encontra às voltas com os desafios da governabilidade. Na proposta orçamentária de 2023 não há qualquer espaço para as suas muitas promessas eleitorais. A saída é obter um aval do Congresso para furar o teto.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foto: Marina Ramos/ Câmara dos Deputados

Para aprovar a tal PEC da transição, Lula está numa situação inusitada. De um lado, precisará contar com o apoio de 219 deputados e 14 senadores que deixarão Brasília em breve porque não foram reeleitos. O acerto, porém, terá que contemplar também os desejos e ambições de seus substitutos, com quem o petista irá conviver nos próximos quatro anos.

Do lado os caciques partidários, cada qual quer valorizar seu passe, sinalizando com fusões e federações. As moedas de troca são as de sempre: verbas e cargos. À medida que as conversas avançam, a manutenção do orçamento secreto se torna mais real e o número provável de ministérios de Lula já passa de três dezenas.

A se pautar pela movimentação em Brasília nesta primeira semana pós-eleição, a política retorna à normalidade. O bom e velho presidencialismo de coalizão parece estar de volta.

Enquanto sai de cena o presidencialismo de colisão que marcou a era Bolsonaro, só podemos torcer para que, em meio a tantas negociações, o clima não degenere novamente para presidencialismo de cooptação.