Reforma eleitoral merece maior atenção

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 12/07/2021.

 

Em 2008 a prefeitura de Belo Horizonte realizou uma licitação para a concessão dos serviços de transporte coletivo para os próximos 20 anos. Entre as regras da disputa, havia uma série de requisitos técnicos definidos para, supostamente, filtrar apenas as empresas que possuíssem capacidade financeira e operacional para exercer a atividade com qualidade e segurança. Mas o diabo mora nos detalhes, como diz o chiste comumente atribuída ao arquiteto Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969).

O inciso VI do item 8.3.5.1 do edital estabelecia que, para participar do leilão, os interessados deveriam comprovar a disponibilidade de imóveis para abrigarem as garagens dos ônibus a serem utilizados durante a vigência do contrato. O prazo para o atendimento dessa condição era exíguo (a licitação seria realizada em 60 dias), e dada a escassez de terrenos numa cidade do porte de Belo Horizonte, poucas empresas apareceram para o certame. Não por acaso, apenas as concessionárias que já prestavam o serviço apresentaram propostas – as mesmas que, há três gerações, controlam o transporte coletivo na capital mineira.

Seja nas licitações públicas ou nos processos seletivos de empresas, os critérios condicionam as escolhas. E na política não é diferente.

Pesquisa CNI/Ibope realizada em março de 2018, no início da campanha eleitoral daquele ano, indicou as características pessoais mais apreciadas pelos entrevistados em um candidato: ser honesto (87%), nunca ter se envolvido em casos de corrupção (84%) e transmitir confiança (82%). Com relação à sua formação e características profissionais, esperava-se que um aspirante a cargo público conhecesse os problemas do país (89%), tivesse experiência em assuntos econômicos (77%) e possuísse boa formação acadêmica (74%).

Eleição após eleição, porém, selecionamos políticos com perfis muito distantes do desejado pela maioria da sociedade. Para os pessimistas (realistas, alguns dirão), nossos governantes são o retrato do nosso povo. Outros, mais fatalistas, dizem que temos os políticos que merecemos.

Quando se questiona, numa mesa de bar ou em programas de entrevistas, quais as causas para escolhermos vereadores, prefeitos, governadores, deputados, senadores e presidentes tão despreparados para conduzir o país, as respostas em geral apontam para o baixo nível de escolaridade dos eleitores, as práticas de clientelismo e compra de votos, ou a obrigatoriedade de votar.

Mas existe uma razão de fundo que explica melhor a histórica baixa qualidade, na média, dos nossos representantes nos Poderes Executivo e Legislativo dos três níveis da Federação. As legislações partidárias e eleitorais conduzem àquilo que, em economia, chamamos de seleção adversa. Por aqui, a política afasta pessoas bem preparadas e honestas e permite que o jogo seja controlado por indivíduos em geral sem compromisso com a coletividade e, não raro, afeitos à corrupção.

A não ser nos municípios muito pequenos, não é fácil ser eleito para qualquer cargo executivo ou legislativo no Brasil – e isso não acontece porque os requisitos para tanto sejam elevados. Com dezenas de partidos, centenas ou milhares de concorrentes e disputas realizadas em territórios muito grandes ou populosos, não adianta ter bom caráter, conhecimentos acadêmicos, experiência política ou boas ideias para a comunidade ou o país; é preciso ser famoso ou ter acesso a dinheiro para fazer-se conhecido.

Deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados

Não é por acaso que, se traçarmos um perfil dos parlamentares e chefes do Poder Executivo em todo o Brasil, a maioria se enquadra em pelo menos uma das seguintes categorias: i) ocupam-se profissionalmente da política há décadas, ou são seus herdeiros diretos; ii) têm conexão direta com as cúpulas dos partidos políticos, em geral controladas pelo grupo anterior; iii) são líderes religiosos, sindicais ou, mais recentemente, militares; iv) detêm uma grande audiência, por serem celebridades, comunicadores ou influencers ou v) possuem fortes vínculos com grupos empresariais ou têm condição financeira para bancar suas próprias campanhas.

Pertencer a alguma das categorias acima não quer dizer, de maneira alguma, que um político é, a priori, corrupto ou não trabalha em favor dos interesses da sociedade. O que chama atenção é o fato de que um cidadão ou cidadã, por melhores que sejam as suas ideias e qualidades, dificilmente conseguirá se eleger se não for famoso ou tiver fortes vínculos com as elites partidárias ou econômicas para financiar sua campanha.

Assim como aconteceu na viciada licitação de ônibus em Belo Horizonte, uma intrincada combinação de regras partidárias, eleitorais e de financiamento de campanhas constrói uma barreira à entrada na política brasileira, tão elevada que dificulta sobremaneira a chegada e a ascensão de quadros de melhor qualidade.

Para piorar, essas condições da disputa são definidas por aqueles que delas sempre se aproveitaram. E sempre que um fato externo ameaça sua permanência no poder, tratam de lançar uma nova “reforma política” que lhes beneficia diretamente. Isso aconteceu em 2017, quando a proibição das doações de empresas levou à criação do fundão eleitoral, e está em curso atualmente, pois a cláusula de desempenho e a proibição das coligações ameaçam a sobrevivência de inúmeros partidos de aluguel e seus caciques.

Nesse cenário, o distritão e inúmeras outras mudanças nas normas eleitorais em discussão na Câmara dos Deputados contribuirão ainda mais para a sensação de que nosso sistema político privilegia a escolha dos piores.

As lideranças empresariais brasileiras deveriam reagir à reforma eleitoral de Arthur Lira com a mesma força e virulência com que atacam a tributação de dividendos apresentada por Paulo Guedes. Caso contrário, não adianta dizer, no futuro, que a culpa é do brasileiro que não sabe votar.