Uma reportagem e dois livros explicam para onde vamos

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 07/10/2019.

Em maio de 2016 a Operação Lava Jato estava na sua 29ª fase, quando prendeu João Cláudio Genu. Velho conhecido dos tribunais – havia sido condenado no Mensalão –, dessa vez o ex-tesoureiro de campanhas do PP (hoje Progressistas) recebia a visita dos homens da Polícia Federal por ter organizado a distribuição do dinheiro desviado da Petrobras para os políticos do seu partido.

Àquela altura, a Operação estava a pleno vapor. Nas semanas anteriores, Moro condenara Marcelo Odebrecht, o ex-presidente Lula havia sido alvo de um mandado de condução coercitiva para explicar seu relacionamento com o mega esquema de corrupção, a PF acabara de descobrir a central de propinas da maior empreiteira do país e o marqueteiro João Santana, responsável pelas campanhas presidenciais do PT, teve sua prisão decretada.

Naquele maio de 2016, tudo levava a crer que o Brasil estava virando uma página no seu histórico de leniência com a corrupção. Nas bancas de revista, porém, a revista piauí trazia uma longa reportagem de Rafael Cariello descrevendo a Operação Mãos Limpas, na Itália. O texto não fazia qualquer referência à Lava Jato, mas os paralelos eram evidentes: os métodos inovadores empregados pelos procuradores (“Os Intocáveis”, segundo o título da matéria), o ativismo judicial para combater um sistema político corrompido por coalizões partidárias com fortes conexões com as maiores companhias estatais e privadas do país e o massivo apoio da população às ações que levaram à prisão figuras importantes do PIB e do parlamento.

Mas a grande sacada no texto de Cariello foi explicitar o ponto de virada naquela história: a perda de suporte popular e as ações legislativas e judiciais que levaram a um fim melancólico aquela que até então era a maior ação anticorrupção já empreendida no mundo. Organizado por Maria Cristina Pinotti e lançado no início deste ano, o livro “Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas” dá voz aos principais protagonistas desta história para explicar o subtítulo da matéria da piauí de três anos atrás: “como um grupo de procuradores combateu a corrupção na Itália – e acabou derrotado”.

No livro, os magistrados Gherardo Colombo e Piercamillo Davigo – que junto a Antonio di Pietro estiveram à frente do exército de Brancaleone que prendeu 4 ex primeiro-ministros e centenas de parlamentares – explicam como sua atuação passou a ser criticada publicamente, numa disputa de narrativas quanto aos reais interesses da investigação. Paralelamente, a aprovação de uma série de leis e decisões judiciais amarrou as mãos do sistema anticorrupção: regulação do abuso de autoridade, impossibilidade de utilização de provas obtidas em processos conexos, afrouxamento do crime de falsificação contábil, redução dos prazos prescricionais.

Numa tragédia anunciada pela experiência italiana, o Brasil trilha os mesmos caminhos. O erro estratégico de Sergio Moro em aceitar o convite de ser ministro de Bolsonaro não apenas lançou dúvidas sobre os interesses políticos dos protagonistas da Lava Jato, como rebaixou seu status, de protagonista no combate à corrupção a refém de um governo que a cada dia dá maiores mostras de falta de comprometimento com essa causa. Para piorar, a divulgação das trocas de mensagens entre os integrantes da Força Tarefa e o ex-juiz pelo Intercept Brasil gerou a oportunidade perfeita para os estamentos político e jurídico se movimentarem. No Congresso, a aprovação da lei contra o abuso de autoridades e da reforma eleitoral abriram brechas para perseguições políticas e uso de caixa dois em campanha.

Ministros do STF em sessão de 08/08/2018. Foto: Nelson Jr./SCO/STF.

Mas no momento as maiores manobras se encontram no extremo sul da Praça dos Três Poderes. Como destaca o próprio Sergio Moro na obra sobre os paralelos entre as operações Lava Jato e Mãos Limpas, o Supremo Tribunal Federal vinha tomando medidas importantes contra a criminalidade no alto escalão político e econômico desde o final dos anos 1990. Começou com a reversão da jurisprudência que autorizava o foro privilegiado continuado (até 1999 o STF entendia que os políticos poderiam continuar a ser processados nos Tribunais Superiores mesmo após o fim do mandato) e avançou ainda mais com a condenação de importantes políticos e suas conexões nos setores publicitário e financeiro na famosa AP nº 470 (Mensalão).

Mas a decisão que realmente mudou o jogo na Lava Jato veio em 2016, no julgamento do HC nº 126.292, quando numa decisão apertadíssima o plenário do STF recuperou seu antigo entendimento (vigente até 2009!) de que era possível o início do cumprimento de pena após o julgamento em segunda instância. Combinada com a introdução da delação premiada, essa decisão mudou os incentivos para os investigados, induzindo-os a colaborar com a Justiça em vez de apostar em recursos infindáveis até a prescrição redentora.

O passado da Lava Jato e o futuro do combate à corrupção no Brasil dependem do julgamento sobre a constitucionalidade da execução da pena em segunda instância. De um lado, perfilam-se os defensores das garantias constitucionais da presunção de inocência até o trânsito em julgado; de outro, alinham-se os combatentes da impunidade assegurada pelos tortuosos caminhos do direito processual penal, habilmente manobrados por bancas de advogados milionárias.

Entre os polos garantista e punitivista, os ministros do STF se posicionam para a batalha final da Lava Jato. Mas não se trata de uma decisão estritamente técnica. No imperdível “Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises”, os jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber expõem como as autoridades máximas de nosso Poder Judiciário mudam de posições e se valem de regras regimentais conforme a pressão popular e suas conexões políticas num jogo de poder que vai muito além de interpretações jurídicas do texto constitucional.

O futuro do combate à corrupção no Brasil repousa nas mãos de onze ministros com visões, interesses e afinidades políticas que se orientam segundo a ocasião e a oportunidade.