Declaração de inconstitucionalidade de doações de empresas pode, na verdade, beneficiar os candidatos ricos e dar mais poder aos doadores mi(bi)lionários, além de incentivar o “caixa dois”.

O cidadão bem informado, que acompanha as emoções do noticiário brasileiro nos últimos meses, poderia mostrar-se esperançoso com o futuro político do Brasil se seguir o seguinte raciocínio:

Fato 1: A Operação Lava Jato deixou claro que o financiamento privado de campanhas alimentou um esquema de corrupção de grandes proporções, atingindo políticos dos princípios partidos brasileiros. Correto!

Fato 2: O Supremo Tribunal Federal – STF decidiu em setembro/2015 que as doações de empresas são inconstitucionais, e estão proibidas a partir das eleições municipais deste ano. Correto!

Conclusão: Com a vedação às doações de empresas, o STF fechou a principal torneira que irriga os esquemas de corrupção de políticos brasileiros. Errado!!!

A principal razão para que a lógica não impere na ligação dos fatos 1 e 2 à conclusão reside na timidez do STF em regular o financiamento de campanhas no Brasil. Ao contrário do que pediu o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 (veja), o STF limitou-se a declarar a inconstitucionalidade das contribuições eleitorais de empresas, não tratando das questões das doações de pessoas físicas e da utilização de recursos dos candidatos no financiamento das suas próprias campanhas.

De acordo com a decisão do STF, as eleições a partir de 2016 serão financiadas, de maneira simplificada, com recursos provenientes de três fontes legais:

1 – Fundo Partidário, alimentado com recursos orçamentários provenientes de tributos pagos por toda a população;

2 – Doações de pessoas físicas, limitadas a 10% de seus rendimentos no ano anterior;

3 – Recursos próprios dos candidatos, independentemente de seus rendimentos, desde que não ultrapassem os limites de gastos a serem estabelecidos pelo Tribunal Superior Eleitoral.

A presente análise concentra-se nos itens 2 e 3 acima, que tratam das doações feitas pelas pessoas físicas, sejam elas candidatas ou não. A discussão sobre o fundo partidário ficará para outra oportunidade.

Analisando os dados, a primeira constatação a que chegamos é que o envolvimento do brasileiro com as eleições, sob a ótica das doações de campanha, é extremamente limitado. Nas últimas eleições, apenas 152.800 pessoas destinaram recursos a campanhas eleitorais, o que representa uma média pouco superior a um doador por 1.000 eleitores – índice que se observa em geral desde 2002 (dado mais antigo disponível no site do TSE).

 

Percentual pf

Essas 152.800 pessoas destinaram quase R$ 1,2 bilhões de reais a partidos e candidatos nas eleições de 2014. Esse montante, porém, esconde uma realidade a meu ver chocante: cerca de 40% desse valor foi doado pelos próprios candidatos para suas campanhas!

Trocando em miúdos: enquanto 142.426 pessoas doaram praticamente R$ 700 milhões para candidatos em 2014 (média de R$ 4.913 por pessoa), 10.374 candidatos aplicaram R$ 462 milhões em suas próprias campanhas (numa média de R$ 44.557 por candidato-doador)!

Essa relevância do autofinanciamento dos candidatos nas eleições brasileiras demonstra como a desigualdade econômica pode se metamorfosear em desigualdade política. Como o gráfico abaixo demonstra, a cada eleição a distribuição do montante aplicado pelos próprios candidatos nas campanhas desloca-se para as faixas de “investimento” mais elevado. O crescimento das colunas à direita a cada ano demonstra que os candidatos estão colocando cada vez mais “bala na agulha” na disputa por um cargo eleitoral.

Autofinanciamento

Ao lado da aplicação de cada vez mais recursos pelos próprios candidatos nas eleições, o binômio desigualdade de renda – desigualdade política também se observa pelo aumento da participação de doadores que aplicam grandes somas de dinheiro nas eleições. Em 2014, além de 51 candidatos-doadores, outras 53 pessoas físicas doaram mais de R$ 1 milhão aos candidatos a presidente, governador, senador e deputado federal e estadual.

Observando-se a lista dessas pessoas físicas, e após uma rápida pesquisa no Google, constata-se que a maioria está ligada a grandes grupos econômicos, como agronegócio (a família Maggi domina a relação), logística, construção civil, calçados, vestuário, etc. O Google também informa que parte considerável dessas doações vem sendo investigada em inúmeras operações do Ministério Público e da Polícia Federal, o que nos faz desconfiar do conteúdo ideológico de tais contribuições.

Milionários

Os dados apresentados acima, portanto, indicam que nas últimas eleições se observam três tendências bem nítidas sobre o financiamento de campanhas por pessoas físicas no Brasil: (i) o baixo envolvimento da população em geral; (ii) o crescente envolvimento de candidatos que aplicam grandes volumes de recursos pessoais nas suas próprias campanhas; e (iii) o crescimento de doações milionárias feitas por pessoas físicas ligadas a grandes grupos empresariais ou envolvidos em suspeitas de esquemas de corrupção.

Esses três movimentos apontam para o centro da discussão sobre a constitucionalidade do financiamento privado no STF: o sistema eleitoral brasileiro é antidemocrático porque favorece a desigualdade política, alimentada pelas doações eleitorais feitas pelos setores mais abastados da população.

Com a decisão do STF de proibir as doações de empresas, porém, é de se esperar que grande parte das doações empresariais migre, nas próximas eleições, não apenas para o caixa 2, mas para doações feitas pelos sócios das empresas e até mesmo para candidaturas próprias.

Embora bem intencionada e aceita pela opinião pública, a decisão do STF teria sido muito mais efetiva se tivesse imposto limites para os gastos da campanha e também para as doações de pessoas físicas e dos próprios candidatos – em termos de valor, e não em percentuais da renda –, tal como pleiteou a OAB.

Ao proibir totalmente as doações empresariais, o STF jogou para a obscuridade o principal indicador sobre as relações entre os setores econômicos e os detentores de cargos públicos no Brasil. Imprensa, movimentos sociais, acadêmicos e cidadãos engajados perderam uma fonte de informações essencial para o exercício do controle social no país – ao passo que certamente os recursos continuarão a ser transferidos das empresas para os políticos, mas agora às escuras, na clandestinidade, via caixa dois.

Tal qual definido pelo STF, é de se esperar que candidatos com maior renda ou com melhores relações com a elite econômica continuem tendo mais chances de serem eleitos por meio de autofinanciamento, doações milionárias de pessoas físicas ou caixa dois.

O combate à corrupção e à desigualdade política passa necessariamente por medidas que barateiem as campanhas, limitem a influência do poder econômico, aumentem o poder dos órgãos de controle e estimulem a participação da população na vida político-partidária. Infelizmente, o STF não teve a coragem suficiente para avançar nesta agenda e preferiu jogar para a torcida.



 

Nota 1: Todos os dados acima são de elaboração própria a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Nota 2: Os valores de doações de campanha encontram-se deflacionados pelo IPCA de janeiro/2016.

 

 

 

 


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