Eleições caras e sem transparência atraem picaretas

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 18/02/2019

 

Martin Van Buren foi um obscuro presidente americano da primeira metade do século XIX. Logo no primeiro ano de governo sobreveio uma grave crise bancária, o Pânico de 1837, que lançou os Estados Unidos em sua primeira depressão econômica. Inefetivo na recuperação da economia, acabou não conseguindo se reeleger.

Se seu mandato presidencial esteve longe de ser memorável, a atuação de Van Buren como parlamentar, alguns anos antes, deixou um grande legado: foi ele quem concebeu, em linhas gerais, o sistema partidário e eleitoral que perdura até hoje nos Estados Unidos.

A partir de 1800, o Partido Democrático-Republicano se tornou dominante, a ponto de ter disputado sozinho a Presidência em 1820 e em 1824. Eleito senador pelo estado de Nova York em 1821, Van Buren entendia que a ausência de competitividade partidária e o poder crescente dos líderes políticos regionais estavam colocando em risco a unidade dos Estados Unidos. Para se ter uma ideia, em 1824 a presidência foi disputada por quatro candidatos, todos do mesmo partido, mas cada um deles representando os interesses locais de estados do Sul rural e escravocrata ou do Norte mais aberto à industrialização.

Muito habilidoso politicamente, Van Buren liderou um movimento de reforma baseado em duas grandes mudanças. Contra a dominância do partido único com o poder fragmentado regionalmente, defendeu a criação de legendas fortes nacionalmente, com pautas que unissem apoiadores de norte a sul. Foi aí que liderou a fundação do Partido Democrata, forçando a reunião de seus rivais no Partido Whig, que algumas décadas depois morreria para dar origem aos Republicanos.

Para lidar com o crescente poder das oligarquias regionais, Van Buren foi um dos idealizadores do sistema de convenções partidárias. Assim, a escolha dos candidatos passou a se dar em assembleias onde todos os membros do partido teriam direito a voto. Com as prévias, os partidos passaram a ter mais consistência e unidade, e a máquina partidária passou a ser determinante nas eleições para o Congresso e a Presidência.

Cada época e país tem seus desafios políticos. Nem bem começou, o novo governo brasileiro já se vê enrolado com um escândalo envolvendo o partido do presidente e o desvio de recursos de campanhas eleitorais. O foco das discussões e da cobertura da imprensa concentra-se nos laranjas e nas intrigas palacianas. Não podemos, porém, perder a visão do todo.

É preciso reconhecer que os principais escândalos políticos ocorridos desde a redemocratização tiveram sua origem no sistema eleitoral e no seu financiamento. Enquanto no petrolão houve a institucionalização de um sistema de desvio de recursos de estatais para abastecer campanhas dos principais partidos, nas diversas versões do mensalão – mineiro (PSDB), do DEM e petista – o objetivo era a constituição de uma base para governar. PC Farias, que foi o tesoureiro da campanha de Collor, abusava de sua posição para traficar influência para grandes empresas junto à cúpula do poder. E os anões do orçamento se acertaram com empreiteiras para desviar recursos e financiar suas carreiras políticas.

Não se pode dizer, contudo, que não houve tentativas de consertar o sistema. Como resposta às fartas evidências de uso de caixa 2 no caso PC Farias, as doações de empresas foram legalizadas para deixar tudo às claras. Vinte anos depois, com as revelações da Lava Jato, decidiram proibir as contribuições de pessoas jurídicas e criaram um fundo bilionário para financiar as campanhas. Voltamos à estaca zero.

(Brasília – DF, 01/01/2019) O Ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, toma posse. Foto: Carolina Antunes/PR

O laranjal do PSL (e de vários outros partidos) é a prova de que estamos atacando as consequências, e não as causas da corrupção eleitoral. Afinal, ele indica que a solução encontrada para sanear o sistema – injetar recursos públicos nas campanhas para contrabalancear a proibição das doações de empresas – não é capaz de eliminar os “malfeitos”. Em vez de “nova política”, novos métodos de corrupção eleitoral.

A verdade é que o sistema eleitoral brasileiro está organizado de uma forma que o torna muito caro e, portanto, exige muitos recursos (públicos ou privados) para bancar as campanhas. E tudo o que movimenta muito dinheiro e tem pouca transparência e fiscalização atrai aventureiros, picaretas e criminosos de toda natureza.

É preciso atacar o problema nas suas raízes. Nossas eleições são realizadas em territórios muito grandes ou populosos, e isso encarece muito as disputas. Além disso, temos dezenas de partidos insípidos, com pouca conexão com o cidadão, a maioria deles fisiológicos e com baixíssimos padrões de governança e democracia interna. Para piorar a situação, o modo como são ocupadas as cadeiras no Legislativo (o sistema proporcional com lista aberta) não estimula o vínculo entre parlamentares e eleitores, dificultando a cobrança por bom comportamento no exercício do mandato.

Estamos precisando urgentemente que o espírito de Martin Van Buren inspire mudanças estruturais no sistema eleitoral brasileiro, buscando torná-lo menos propício à corrupção. Um sistema distrital (ou até mesmo a simples criação de distritos menores) pode baratear bastante as campanhas. Os partidos de aluguel precisam ser combatidos com cláusulas de barreira ainda mais rigorosas, exigência de maior transparência nos diretórios e realização de prévias. Por fim, os partidos têm que ser forçados a ir atrás do cidadão para se financiar – e limites baixos para doações de pessoas físicas e menos dinheiro público são o antídoto contra a dependência de grandes empresários e do Erário.

Esperamos ansiosos o surgimento de um Van Buren no Brasil do século XXI.