Agenda sustentável precisa ir além das boas intenções

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 20/07/2020.

 

As bem traçadas linhas do manifesto dos ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central por uma economia de baixo carbono são uma bem-vinda convocação feita por economistas de diferentes orientações teóricas e vinculações políticas por uma política econômica ciosa dos impactos ecológicos e comprometida com a redução das emissões de gases de efeito estufa.

Desde sua posse, o governo Bolsonaro tem provocado a união de lideranças políticas e personalidades contra seus desatinos e retrocessos, numa sequência de cartas abertas e notas de repúdio. Em vez de simplesmente criticar os erros da atual gestão, a “Convergência pelo Brasil”, assinada por aqueles que conduziram a economia brasileira entre os mandatos de José Sarney e Michel Temer, inova por ter um caráter prospectivo, voltando-se para os desafios e as oportunidades que se abrem num mundo cada vez mais consciente dos riscos associados à mudança do clima.

Os signatários da carta colocam-se à disposição para contribuir para a construção de uma agenda concreta para tornar o “futuro mais sustentável, inclusivo e próspero para a atual e as futuras gerações”. Porém, como diria Álvaro de Campos, uma das várias personas do poeta Fernando Pessoa, “todas as cartas de amor são ridículas”. Apesar de ser extremamente louvável ver figuras ainda centrais no debate público assumindo uma firme posição em prol da transição para uma “economia verde”, faltou aos dezessete subscritores do manifesto admitir que eles próprios contribuíram, por ação ou omissão, para a atual crise ambiental do país.

“Quanta verdade tristonha ou mentira risonha uma carta nos traz”, é a “Mensagem” do samba-canção composto por Cícero Nunes e Aldo Cabral. Ao assumirem seus postos no 5º andar do bloco P da Esplanada dos Ministérios ou no gabinete do 20º andar do edifício-sede Banco Central, os comandantes da equipe econômica dos governos anteriores foram protagonistas, coniventes ou omissos em muitos dos retrocessos da política ambiental brasileira nas últimas décadas.

Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e um dos autores da carta Convergência pelo Brasil, em audiência virtual na Câmara dos Deputados. Foto: Maryanna Oliveira/Câmara dos Deputados
Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e um dos autores da carta Convergência pelo Brasil, em audiência virtual na Câmara dos Deputados. Foto: Maryanna Oliveira/Câmara dos Deputados

Se alguém fizer um trabalho de arqueologia legislativa, vai encontrar as rubricas desses ex-ministros da Fazenda nos normativos que concederam recorrentes estímulos fiscais à indústria automobilística e também nas propostas que instituíram subsídios bilionários à produção e comercialização de combustíveis fósseis pela Petrobrás. Alguns não titubearam em recorrer à queima de carvão e óleo para evitar apagões, enquanto outros se curvaram à pressão dos caminhoneiros e reduziram a tributação sobre a gasolina e o diesel. Também houve falhas de ex-presidentes do Banco Central e ex-ministros da Fazenda e do Planejamento ao não incorporar condicionantes ambientais nos empréstimos subsidiados concedidos pelo Conselho Monetário Nacional ao agronegócio.

Há quase trinta anos, não importa a coloração do governo, o conservadorismo fiscal é um grande obstáculo a uma política ambiental mais abrangente, assim como o pragmatismo político justifica o aval da equipe econômica a obras faraônicas no coração da Amazônia. E embora tivessem assento em todos os conselhos de política ambiental criados pelos sucessivos governantes, essa área sempre foi um “patinho feio” no Ministério da Fazenda e no Banco Central.

Ainda que seja admirável ver, numa mesma carta de princípios, figuras ligadas a diferentes matizes do espectro ideológico, as ausências não passaram despercebidas. Entre os ex-ministros da Fazenda, aqueles mais ligados aos partidos de esquerda não estão presentes na carta: Ciro Gomes (PDT, à frente do ministério entre setembro de dezembro de 1994) e Antonio Palocci e Guido Mantega (chefes da área econômica em boa parte da administração petista). Ora, que “Convergência pelo Brasil” é essa em que a esquerda se recusa a participar?

A elogiável intenção de fomentar a geração no país de uma economia de baixo carbono mira o futuro, mas para ser bem-sucedida essa estratégia passa necessariamente pela desconstrução de um passado e um presente avessos à proteção ambiental. Além das belas palavras, precisamos saber o quanto nossos ex-ministros e ex-presidentes do Bacen estão dispostos a arregaçar as mangas e comandar uma revisão dos incentivos com sinais trocados e de uma visão pseudo-desenvolvimentista criada por eles próprios quando estavam no poder.

Oportunidades não faltam para essas importantes lideranças colocarem em prática seus bons propósitos. Não é difícil identificar no Congresso uma extensa pauta de projetos com potencial altamente lesivo ao desenvolvimento sustentável, como o “PL da Grilagem” (Projeto de Lei nº 2.633/2020) e a proposta de flexibilização das normas de licenciamento ambiental (PLS nº 168/2018). No campo da agenda positiva, os debates em torno da reforma tributária são um espaço propício para desarmar os subsídios ao uso de combustíveis fósseis e incentivar a adoção de energias sustentáveis.

Para que o Congresso aprove medidas que contribuam para a consecução dos objetivos da carta dos ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central, é preciso que eles próprios se envolvam na árdua tarefa de convencer deputados e senadores a apoiarem as boas propostas e a derrotarem as ruins.

Resta saber se, mesmo longe do poder, essas lideranças econômicas vão devotar à causa da transição rumo a uma economia de baixo carbono o mesmo empenho com que lutaram para a aprovação das leis que aprovaram seus planos econômicos, suas propostas orçamentárias e suas sugestões de aumento de tributos. Só assim teremos a certeza de que a “convergência pelo Brasil” não passa de palavras ao vento.