Contribuições para determinados candidatos podem aumentar ou diminuir conforme suas chances de vitória se alteram durante a campanha eleitoral.

Eleição presidencial de 2014 dá vários indícios desse fenômeno.

Na última postagem (aqui) realizei um exercício, sugerido por Marcos Lisboa, comparando as doações de campanha recebidas pelos candidatos que ficaram “na tampa da beirada”, e não conseguiram se eleger por pouco, com as contribuições para aqueles que foram eleitos “raspando” nas eleições para o Senado e a Câmara dos Deputados entre 2002 a 2014. Ao isolar a comparação somente entre os candidatos que ficaram na margem entre serem eleitos ou não, conseguimos ter uma ideia mais clara de como o financiamento de campanha pode afetar o resultado da eleição.

Poucos minutos depois de ter publicado o texto, o colega de pós Rodrigo Badaró me enviou um email me alertando sobre uma falha no meu raciocínio: eu estaria sempre partindo da premissa de que as empresas aplicam seus recursos neste ou naquele candidato independentemente de suas expectativas quanto ao resultado da eleição. Na sua visão, os doadores calculam as chances de vitória dos candidatos e, a partir daí, decidem o quanto contribuirão para cada um. O problema que se coloca, nas palavras do próprio Badaró, é o seguinte: “Afinal de contas, o mercado tem o poder decisivo de eleger este ou aquele candidato? Ou haverá (também?) o sentido inverso: o mercado verifica os candidatos com maior potencial de vitória e investe neles (e, obviamente, cobra essa conta mais tarde)?

Em termos técnicos, a questão colocada é chamada de endogeneidade. Para exemplificar, seria como se, ao realizarmos um teste para solucionar o dilema de Tostines, investigássemos o efeito do frescor dos biscoitos sobre as vendas (testando a hipótese de que Tostines vende mais porque é fresquinho), sem levar em conta que um maior volume de vendas torna os produtos à venda mais frescos e crocantes (afinal, Tostines pode ser mais fresquinho justamente porque vende mais). Em outras palavras, Badaró questiona se o financiamento privado influencia as eleições ou se a expectativa do resultado das eleições influencia no financiamento privado para este ou aquele candidato.

Com relação ao teste realizado na última postagem, acredito que a chance de estar contaminado pela endogeneidade é bastante baixo. Como concentramos o foco apenas nos candidatos que ficaram na zona cinzenta entre ser eleito ou não, é muito pouco provável que as empresas tivessem a percepção das chances de cada um vencer a disputa. Além disso, não temos pesquisas sistemáticas para o Senado e principalmente para a Câmara, assim como o resultado final, no caso da eleição para deputado, depender dos votos angariados pelos partidos e coligações, além do desempenho individual de cada candidato. Sendo assim, acredito que os resultados apresentados no último texto não estão comprometidos pelo problema da endogeneidade.

Mas o legal dessa construção colaborativa da tese, com a publicação dos resultados preliminares neste blog, é que as questões colocadas me instigam a avançar a pesquisa na direção apontada pelos colegas. E então eu resolvi verificar se há indícios dessa endogeneidade numa situação extrema: as eleições presidenciais de 2014. A escolha por essa disputa baseia-se no fato de ter sido a eleição mais concorrida da história, com diversas mudanças de cenário desde o seu início. Além disso, as eleições presidenciais contam com um grande número de pesquisas de intenção de voto, que orientam o mercado para fazer suas escolhas sobre quem financiar nas eleições.

O gráfico abaixo apresenta a evolução das contribuições de campanha recebidos de pessoas jurídicas pelos três principais concorrentes à Presidência no ano passado: Dilma Rousseff (PT), Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos, substituído por Marina Silva (PSB) após seu falecimento no meio da corrida presidencial.

Endogeneidade 1O gráfico apresenta diversas características que merecem uma discussão mais profunda, mas não me deterei nelas agora: (i) os três principais candidatos receberam, juntos, mais de R$ 830 milhões de empresas na eleição de 2014; (ii) pela primeira vez desde 2002 o Presidente eleito não recebeu mais doações do que o segundo colocado (Aécio arrecadou mais que Dilma); e (iii) os dados do TSE revelam um aumento não desprezível nas doações no mês seguinte às eleições (dívidas de campanha? Informações incorretas prestadas pelos partidos?).

Analisando o gráfico acima, notamos algumas tendências que permitem acreditar no ponto levantado pelo Badaró: a evolução das doações para os três candidatos parece refletir a expectativa que os doadores tiveram sobre quem tinha mais chances de vencer a eleição.

No próximo gráfico isso fica mais claro, na medida em que plotamos a dinâmica das doações de campanha (expressas nas linhas referentes a cada candidato, com magnitude definida no eixo vertical da esquerda) e os resultados das pesquisas eleitorais do Datafolha ao longo do primeiro turno (expressas nas colunas, em que cada cor representa um candidato, com os respectivos percentuais de intenção de voto).

Endogeneidade 2

Analisando o gráfico acima percebemos três momentos bastante distintos no desenrolar da disputa eleitoral, que tiveram reflexo direto no volume de recursos aportado pelas empresas em cada candidato.

O primeiro grande divisor de águas desta eleição foi o trágico acidente que resultou na morte de Eduardo Campos em 10/08/2014. A partir daquele momento, o volume de recursos doados para Dilma Rousseff (em vermelho) e Aécio Neves (azul) se intensifica, aparentemente indicando que a disputa seria polarizada nesses dois concorrentes. Nota-se, inclusive, um crescimento expressivo de Dilma no final de agosto, talvez refletindo uma maior chance de que a eleição fosse resolvida em seu favor ainda no primeiro turno. Nesta fase, as doações para Marina Silva (em cinza), embora também crescentes, apresentam um comportamento bem mais suave.

Essa tendência se altera à medida em que as pesquisas eleitorais revelam um crescimento surpreendente nas intenções de voto para Marina Silva a partir do final de agosto e início de setembro, quando a candidata do PSB chegou a ficar apenas um ponto percentual abaixo de Dilma Rousseff. Neste ponto as doações para Marina Silva começam a crescer num ritmo bem mais intenso, assim como as destinadas a Aécio Neves – refletindo a grande perspectiva de ocorrência de um segundo turno, em que os dois oponentes poderiam eventualmente se unir para tentar derrotar Dilma Rousseff, a candidata da situação.

Em fins de setembro, às vésperas do primeiro turno, temos então o terceiro grande momento da eleição: as pesquisas começam a indicar que Marina Silva perdia força, porém sem um crescimento proporcional de Aécio Neves. Neste cenário incerto da reta final, as doações para todos os candidatos subiram nas duas semanas que antecederam o primeiro turno. Porém, como as perspectivas de existência de um segundo turno começaram a ficar sombrias, as doações para Dilma Rousseff ganharam grande impulso, ultrapassando até mesmo as contribuições privadas para Aécio Neves.

A história em três atos descrita acima reforça a impressão de que o raciocínio do Rodrigo Badaró faz todo o sentido – pelo menos nas eleições presidenciais de 2014. O financiamento das campanhas de Dilma Rousseff, Aécio Neves e Marina Silva parece ser bastante responsivo às perspectivas de vitória e de realização de um segundo turno à medida em que as pesquisas de opinião repercutiam as mudanças de humor do eleitorado durante a disputa eleitoral.

Essa evidência de que não apenas o financiamento privado pode influenciar as eleições, mas o resultado das eleições pode fazer com que o dinheiro das empresas seja direcionado deste para aquele candidato de acordo com suas chances de vitória, revela outro lado negro de nosso sistema “democrático”. Afinal de contas, é de se duvidar que a maioria dessas empresas, ao investirem mais de R$ 830 milhões em três candidatos, o faça apenas por ideologia. As variações no fluxo de doações para os candidatos ao sabor das pesquisas eleitorais indicam que possa haver um interesse concreto em estar do lado do time vencedor – seja ele qual for.



 

Nota 1: Como essas análises são reflexões ainda preliminares sobre achados da pesquisa de tese (veja as explicações aqui), seus comentários, críticas e sugestões são muito bem vindos, pois certamente vão contribuir para melhorar a qualidade da pesquisa.

Nota 2: Todos os dados acima são de elaboração própria a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral. Dado o caráter preliminar da pesquisa, solicita-se não citá-los sem autorização do autor.