Liderança dos partidos, disciplina partidária e vitórias do governo em votações de Medidas Provisórias (2001/2014)

O fato político mais importante da semana – fora o frisson causado pelas revelações da ex-amante de FHC – foi a eleição para o cargo de líder do PMDB na Câmara dos Deputados. De um lado, Leonardo Picciani (RJ), apoiado por Dilma; de outro, Hugo Motta (PB), o preferido de Eduardo Cunha. A disputa, vencida por Picciani, foi explorada pela imprensa como um embate entre Dilma e Eduardo Cunha, a primeira assombrada por um processo de impeachment e o segundo por um de cassação.

A questão imediata pode até ser esta, mas a decisão sobre quem será o líder do partido com maior bancada na Câmara dos Deputados tem uma relevância muito maior: tem a ver com governabilidade e aprovação de projetos de interesse do governo, como a CPMF e a Reforma da Previdência. Ou seja, é uma questão que pode impactar diretamente a nossa vida, e até das gerações futuras. Para entender o porquê, vale dar uma geral no sistema político brasileiro em vigor desde a Constituição de 1988.

O cientista político Sérgio Abranches publicou em 1988 um artigo que acabou cunhando uma expressão que desde então caracteriza a política brasileira: “presidencialismo de coalizão”. Para esse autor, o sistema eleitoral brasileiro favorece a eleição de Presidentes sem maioria no Congresso e isso gera o “dilema institucional brasileiro” (por sinal, o subtítulo do artigo): o Presidente tem sempre que usar a caneta (nomeação de indicados para cargos públicos) ou a chave do cofre (liberação de recursos para emendas parlamentares) para lidar com crises institucionais criadas por muitos partidos ideologicamente fracos e parlamentares indisciplinados e preocupados apenas com suas bases eleitorais. A tão falada governabilidade, além de extremamente custosa para ser construída e mantida, estimularia o imobilismo sócio-econômico do país – afinal, para aprovar reformas legislativas significativas (previdenciária, tributária, política, etc.), o governo teria que fazer tantas concessões que o resultado, se viesse, ficaria sempre muito aquém do necessário.

O diagnóstico de Abranches moldou as análises políticas sobre o sistema brasileiro até a metade dos anos 1990. Até que os também cientistas políticos Fernando Limongi e Argelina Figueiredo resolveram coletar os dados sobre votações no Congresso e concluíram que…. tcham-tcham-tcham … o sistema brasileiro não nem um pouco ingovernável como se previa: o Congresso não apenas aprovava quase tudo o que o governo propunha, como a taxa de disciplina partidária girava em torno de 90%!!!!

A explicação de Limongi & Figueiredo para esses dados, que abalaram o senso comum das análises políticas até então, residia em duas características do modelo brasileiro: Presidentes da República com prerrogativas para ditar o ritmo e o rumo do processo legislativo (medidas provisórias, competência privativa para propor leis sobre diversos assuntos, possibilidade de solicitar urgência constitucional) e líderes partidários com grande poder institucional para conduzir a tramitação dos projetos e exigir fidelidade de seus comandados.

A ascendência dos líderes dos partidos sobre seus pares e sua centralidade no processo legislativo advêm das competências estabelecidas no Regimento Interno das Casas Legislativas. O art. 10 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, por exemplo, determina que os líderes controlam desde o espaço que cada correligionário terá para fazer pronunciamentos, até o acesso deles às Comissões e aos postos do partido na Mesa Diretora. Do ponto de vista da tramitação legislativa, o Colégio de Líderes (reunião de líderes de todos os partidos e blocos parlamentares, mais o líder do Governo e o líder da Minoria) define a agenda de análise de proposições, a criação de comissões especiais, a convocação de sessões extraordinárias e a preferência de projetos em votação em cada dia.

Com o objetivo de verificar se os argumentos de Limongi & Figueiredo permanecem em vigor, e comprovar como a função dos líderes partidários continua fundamental para o governo, analisei todas as 276 votações nominais de medidas provisórias realizadas entre 2001 e 2014 na Câmara dos Deputados.

Votações nominais são aquelas em que cada deputado expressa seu voto (geralmente por meio eletrônico) e esse voto fica registrado e é publicado no site da Câmara. As demais votações são simbólicas, naquele estilo “os deputados que estiverem de acordo permaneçam como estão”. Analisar as votações nominais é importante porque nelas podemos identificar o posicionamento individual de cada parlamentar a respeito dos temas em votação. Com essas informações, dá para saber se ele votou conforme a orientação do seu partido, ou de acordo com o interesse do governo.

A primeira constatação é que, das 666 MPs editadas no período, apenas 179 (ou seja, 26,9%) tiveram um ou mais dispositivos – pode ser a MP em si, mas pode ser também o parecer do relator, ou uma emenda, ou um artigo destacado para votação em separado – submetidos a votação nominal. Esse resultado por si só já demonstra o poder dos líderes partidários, conforme proposto por Limongi & Figueiredo: praticamente três de cada quatro medidas provisórias editadas no Brasil são decididas apenas com votações simbólicas; ou seja, todos os seus dispositivos são votados a partir dos acordos celebrados entre as lideranças dos partidos antes da votação propriamente dita.

A surpreendente constatação de Limongi & Figueiredo, de que há fidelidade partidária no Brasil, também continua válida no caso das MPs: na média, 91,1% dos deputados permaneceram fiéis à orientação de seus líderes partidários nas votações de MPs analisadas. O gráfico abaixo mostra como cada partido se comportou, com destaque para PT (o mais disciplinado dos grandes, com 97%), PSDB (92,9%), PMDB (88,5%) e DEM/PFL (87,9%).

Disciplina

Para verificar se a base de sustentação construída pelo governo entre os partidos se mantém ou não fiel, computei como se deu a orientação do líder de cada partido em todas as 276 votações nominais de MPs. No gráfico abaixo apresento a média da coincidência entre a orientação do líder do governo e a recomendação de voto dos líderes dos partidos – o que pode ser entendido como um indicador do posicionamento de cada partido em relação às visões do governo. Como seria de se esperar, o PT guarda a maior sintonia com o governo (em 98% dos casos a orientação do partido era votar com o governo), enquanto PSDB (12,1%) e DEM/PFL (11%) encontram-se no polo oposto. A grande parte dos partidos, inclusive o PMDB (com 88,6% de sintonia com o governo) apresentam altos percentuais de coincidência com o desejo do governo. Essa sintonia entre o governo e a maioria dos partidos confere grande margem para a aprovação das medidas provisórias – o que também corrobora as conclusões de Limongi & Figueiredo.

Sintonia Partido-governo

Por fim, computei os casos em que cada membro individual dos partidos votou ou não com a orientação do governo. Essa medida é importante para captar qual o percentual de votos que a Presidência da República consegue efetivamente angariar em cada partido, independentemente do posicionamento da liderança partidária. Esse indicador é praticamente uma síntese dos dois anteriores: como a disciplina partidária é alta no Brasil e o governo consegue construir uma base heterogênea de partidos, o Poder Executivo consegue obter não apenas um alto percentual de adesão dos partidos que compõem a sua base, como também importantes defecções em partidos da oposição, a depender do conteúdo da matéria em votação.

Voto com Governo

Os dados confirmam o diagnóstico de Limongi & Figueiredo: o presidencialismo de coalizão brasileiro apresenta não apenas alto índice de fidelidade partidária, como também permitem ao governo aprovar quase tudo o que se propõe. No caso das votações nominais de MPs entre 2001 e 2014, o governo venceu em 90,4% dos casos.

É por isso que a eleição para o cargo de líder do PMDB assumiu tanta importância para o governo Dilma nesta semana: ter um aliado no comando do partido com maior bancada na Câmara dos Deputados é fundamental para conseguir os votos necessários para aprovar os projetos de seu interesse (a CPFM e a reforma da Previdência vêm aí!) e também para barrar o que não lhe interessa (o processo de impeachment, inclusive!). Não foi por outro motivo que o governo mobilizou todas as suas forças para essa votação, contando até com a demissão temporária do Ministro da Saúde em plena epidemia de dengue e zica apenas para reassumir seu mandato de deputado e votar a favor de Picciani.

Apesar de o sistema brasileiro apresentar-se extremamente favorável para o governo, como os trabalhos de Limongi & Figueiredo indicaram e os números acima confirmaram, acredito que ele é um equilíbrio com custo muito elevado – o que não tira razão das conclusões levantadas lá em 1988 por Sérgio Abranches. E é sobre isto que espero discutir na próxima postagem.

 



 

Nota 1: Como essas análises são reflexões ainda preliminares sobre achados da pesquisa de tese (veja as explicações aqui), seus comentários, críticas e sugestões são muito bem vindos, pois certamente vão contribuir para melhorar a qualidade da pesquisa.

Nota 2: Todos os dados acima são de elaboração própria a partir de dados da Câmara dos Deputados. Dado o caráter preliminar da pesquisa, solicita-se não citá-los sem autorização do autor.

 


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