Reforma administrativa precisa ir da eloquência para a eficiência

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 14/10/2019.

“A crise do Estado está na raiz do período de prolongada estagnação econômica que o Brasil experimentou nos últimos anos. Nas suas múltiplas facetas, esta crise se manifestou como crise fiscal, crise do modo de intervenção do Estado na economia e crise do próprio aparelho estatal. (…) Para este Governo, a reforma administrativa é componente indissociável do conjunto das mudanças constitucionais que está propondo à sociedade. São mudanças que conduzirão à restruturação do Estado e à redefinição do seu papel e da sua forma de atuação, para que se possa alcançar um equacionamento consistente e duradouro da crise.”

O parágrafo acima, caros leitores, não é o vazamento da última versão da reforma administrativa que está sendo finalizada pela equipe do ministro Paulo Guedes. Trata-se, na verdade, da Exposição de Motivos de uma PEC enviada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso ao Congresso em 18/08/1995. Entre as propostas apresentadas, estavam a possibilidade de contratação por meio da CLT, o fim da isonomia entre servidores (permitindo a adoção de sistemas meritocráticos de avaliação de desempenho), o fim da estabilidade na administração pública (autorizando a exoneração inclusive como solução para a crise fiscal), o estabelecimento de um teto remuneratório para todo o funcionalismo e a expansão do período de estágio probatório para 5 anos – com o propósito de aproximá-lo a um “programa de trainees” do setor privado.

Acontece que, entre a proposta, a aprovação no Congresso e a realidade há uma longa distância. FHC conseguiu passar uma reforma administrativa bastante diluída em 1998 (a Emenda Constitucional nº 19) e mesmo suas poucas mudanças efetivas não surtiram o efeito desejado devido à pressão das corporações e à dificuldade dos sucessivos governos em dizer “não”.

Consultando meus antigos contracheques, recordei quando, em agosto de 2005, recebi um aumento de 106,7% – sem qualquer alteração nas minhas atribuições ou responsabilidades. Desde então, os presidentes Lula, Dilma e até Temer foram extremamente generosos em oferecer à maioria das carreiras reajustes muito superiores à inflação.

Sim, foi estabelecido um teto remuneratório para os três Poderes. Mas a última edição do relatório Justiça em Números revela que a remuneração média mensal de um magistrado em 2018 foi de R$ 46.762, bem acima dos R$ 39.293,32 pagos aos ministros do STF. Tal situação se deve a auxílios, adicionais, indenizações e toda sorte de penduricalhos que são concedidos com o propósito de escapar ao limite estabelecido na Constituição – e, de quebra, ainda não são passíveis de desconto de Imposto de Renda.

Ministro da Economia, Paulo Guedes, durante Audiência Pública na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados
Foto: Edu Andrade/ASCOM/Ministério da Economia

Também é fato que, desde 1998, a estabilidade no serviço público deixou de ser absoluta – e o desempenho dos servidores tem sido periodicamente avaliado, inclusive para fins de demissão. Relatório da CGU indica que, entre 2003 e 2018, houve 7.358 expulsões no Poder Executivo; no entanto, a imensa maioria foi motivada por envolvimento em casos de corrupção (66,3%) ou por abandono ou acumulação indevida de cargos (23,6%). Por desídia (negligência, desleixo ou descuido no cumprimento do dever) foram apenas 207 exonerações (2,8% do total). Ou seja, existem a norma (autorizando a demissão) e o instrumento (avaliação), mas a cultura é de leniência.

Também há casos em que são criados incentivos para estimular a produtividade, mas o resultado final é mais privilégio para determinadas carreiras. Nos últimos anos advogados da União e procuradores da Fazenda passaram a fazer jus a honorários de sucumbência – uma indenização paga pelas partes derrotadas nas ações envolvendo a União. A justificativa é aumentar o comprometimento com a defesa dos interesses públicos – mas com o ganho sendo repartido fraternalmente entre todos os integrantes da carreira, independentemente da sua efetiva contribuição, e sem correr o risco de arcar com os custos da derrota, a medida acabou virando um polpudo penduricalho de quase R$ 7 mil a quem já ganha quase R$ 30 mil todo mês.

O mesmo acontece na Receita Federal, onde os auditores fiscais, que figuram no topo da pirâmide do serviço público federal, recebem um adicional de R$ 3 mil mensal a título de “bônus de produtividade” sem qualquer regulamentação estabelecendo metas ou critérios. Com um detalhe: assim como nos honorários da AGU e da PGFN, os valores são extensivos a servidores aposentados.

À parte esses benefícios obtidos pelas carreiras com maior poder de pressão sobre o Executivo e o Congresso, existe ainda uma série de vantagens disponíveis aos servidores públicos em geral que não se sustentam a esta altura do século XXI. Ao se fazer uma varredura na Lei nº 8.112/1990, é possível identificar benesses que, se não têm o poder de aliviar significativamente nosso gigantesco déficit fiscal, serviriam para diminuir a disparidade de tratamento entre trabalhadores privados e públicos. É o caso, por exemplo, do auxílio-funeral (um salário extra pago à família em caso de falecimento do servidor ativo ou inativo), a licença remunerada de três meses para o servidor que quer disputar eleições ou, ainda, a ajuda de custos de até três contracheques quando se é transferido de localidade – sem falar nas condições bem mais favoráveis do que as previstas na CLT para a obtenção de licenças e afastamentos pelos mais variados motivos.

A iniciativa do ministro Paulo Guedes de propor uma ampla reforma administrativa que ataque privilégios, adote instrumentos mais eficazes de avaliação e introduza critérios de produtividade no modelo remuneratório é bastante apropriada. Porém, será preciso um trabalho muito intenso no Congresso para evitar a sua desconfiguração.

Caso contrário, corremos o risco de repetir a história vivida por FHC, cuja condução da proposta foi assim caracterizada, à época, pelo economista Mario Henrique Simonsen: “A estabilidade depende de uma reforma do Estado que o governo conduz com admirável eloquência, mas discutível eficiência”.

 

 


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