Ainda estou devendo a conclusão sobre o julgamento do STF sobre o monopólio dos Correios.

Mas hoje vou mudar o assunto: quero comentar uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre leasing cambial, que ilustra bem as relações entre direito e economia no mercado de crédito. Vamos lá.

O leasing é um tipo de negócio jurídico bastante comum no exterior, que foi regulamento no Brasil pela Lei nº 6.099/1974 (veja aqui) . Por aqui ele assumiu o nome de arrendamento mercantil. Grosso modo, o leasing funciona assim:

1. A arrendadora (empresa de arrendamento mercantil ou banco múltiplo) adquire um bem a pedido do arrendatário (pessoa natural ou jurídica).

2. O bem adquirido pela arrendadora é cedido para o arrendatário, que lhe pagará prestações mensais pelo seu uso por um período determinado.

3. Ao final do período, o arrendatário tem a opção de adquirir a propriedade do bem, pagando pelo valor residual.

Graças a um tratamento contábil e tributário especial, o leasing é um negócio interessante para ambas as partes. Historicamente ele tem se mostrando uma forma de concessão de crédito de longo prazo e com taxas de juros relativamente baixas, decorrentes do baixo risco da operação. O baixo risco advém do fato de que o bem não é transferido para o ativo do comprador antes do fim da operação. Só quando o arrendatário exerce sua opção de compra ao final da operação é que o bem passa a fazer parte do seu patrimônio – antes disso, ele pertence à arrendadora. Assim, em caso de inadimplência, o banco rapidamente recupera o bem, sem enfrentar as agruras de um moroso processo de execução judicial, que pode se arrastar por anos. Risco jurídico baixo, taxas de juros mais baixas.

A importância do arrendamento mercantil para a economia brasileira não é nada desprezível, haja vista que praticamente 9% de todo o crédito concedido no país é feito por meio de leasing.

O leasing é um instrumento utilizado para diversos fins, mas seu uso majoritário está relacionado às operações com veículos. Atualmente, 56,3% do total do saldo de operações de arrendamento mercantil realizadas pelo Sistema Financeiro Nacional são destinadas ao financiamento de veículos. E, nesse setor, ele assume grande participação: 43,8% de todo o crédito destinado para a aquisição de veículos no país é contratado por meio de leasing.

No entanto, não foi sempre que o leasing desempenhou essa pujança observada nos dias atuais. Durante a última década ele sofreu dois grandes golpes relacionados diretamente com a segurança jurídica no ordenamento jurídico brasileiro: a maxidesvalorização cambial de 1999, que afetou os contratos de leasing indexados ao dólar, e a polêmica relacionada à natureza jurídica de um dos seus institutos, o valor residual garantido (VRG). A recente decisão do STJ que vamos comentar no próximo post tem a ver com a questão da desvalorização cambial. Em outra postagem tentarei discutir a questão do VRG.

Voltando um pouco na história econômica brasileira recente, um dos pilares do Plano Real foi a chamada âncora cambial. Por meio dela, o Banco Central realizava operações no mercado para manter o Real forte em relação ao dólar, com o objetivo de atrair recursos para o país e estimular importações. O plano era o seguinte: com a entrada de produtos estrangeiros com preços competitivos, os produtores nacionais não tinham como reajustar seus preços e a inflação mantinha-se sob controle. Para se ter uma ideia dessa política, o dólar variou entre R$ 0,84 (dez/1994) e R$ 1,20 (dez/1998) nessa primeira fase do Plano Real.

Essa relativa estabilidade da moeda americana estimulou a realização de operações de arrendamento mercantil referenciadas em dólar. O Conselho Monetário Nacional autorizou as instituições financeiras a captarem recursos no exterior e emprestá-los para os clientes, indexando o saldo devedor ao câmbio. Essa operação foi muito utilizada, principalmente pelas pessoas físicas, para a aquisição, via leasing, de veículos – pois a taxa de juros embutida nessa operação era significativamente inferior às taxas de juros disponíveis no mercado.

Tudo transcorria às mil maravilhas, com os bancos batendo recordes de operações de leasing, as montadoras de veículos idem (os níveis de produção alcançados em 1997/1998 só foram retomados em 2004) e os clientes satisfeitos com seus carros novos e sua dívida barata. Aí começa 1999, o Brasil sofre um ataque especulativo e é obrigado a abandonar a âncora cambial e autorizar a livre flutuação do câmbio.

Resultado: o dólar rapidamente subiu entre 50% e 70%, e com ele todas as dívidas de leasing indexadas ao câmbio. Imagine o cidadão que comprou seu Uno Mille (o carro mais vendido no país na época) por meio de uma operação de leasing cambial por R$ 20 mil, para pagar em vários anos. Da noite pro dia ele descobre que a dívida passou para R$ 30 mil ou 35 mil. Nem precisa dizer que a comoção foi geral. E, como resultado, choveu ações judiciais questionando essas operações de leasing.

No próximo post apresentarei os principais argumentos utilizados por clientes e bancos nesses processos, as consequências dessa insegurança no mercado e como o STJ decidiu salomonicamente a questão.

Vou tentar não ficar devendo mais essa. E honrar o compromisso de terminar a estória dos Correios.