Decreto nº 9.830: Novas normas sobre processo administrativo, órgãos de controle, segurança jurídica

Publicado originalmente no twitter @BrunoCarazza.

 

Foi editado ontem o Decreto nº 9.830/2019 , que regulamenta o disposto nos artigos 20 a 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, que institui a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

O novo decreto de Bolsonaro regula uma norma (a ) editada no governo Temer visando aumentar a segurança jurídica na edição, alteração e interpretação de atos, normas e decisões administrativas e judiciais.

A seguir seguem os principais pontos e críticas à nova regulamentação, obtidos a partir de uma primeira leitura. Dada a complexidade do tema, novos estudos são necessários para mapear a real dimensão e impactos das medidas.

1. De acordo com o novo decreto, as decisões administrativas deverão ser contextualizadas com os fatos e a fundamentação jurídica, podendo se basear em notas técnicas, pareceres, informações. etc (art. 2º).

  • Crítica 1: O novo decreto faria muito bem à transparência se determinasse que toda a fundamentação (inclusive os documentos utilizados como base) fossem obrigatoriamente publicados na internet. Sem isso, a sociedade continuará no escuro.

2. Decisões que invalidarem atos, contratos, processos ou normas poderão ter seus efeitos restringidos ou ter sua eficácia postergada, em nome da segurança jurídica (art. 4º, § 4º).

  • Crítica 2: Essa mudança abre um grande campo para corrupção, razão pela qual o novo decreto deveria exigir do agente público a indicação dos efeitos dessa medida, se possível individualmente, além de ter essa decisão publicada na internet.

3. Mudanças de interpretação sobre normas devem prever um regime de transição para a sua aplicação (art. 6º).

  • Crítica 3: Apesar de extremamente salutar, o risco desse dispositivo é que grupos de interesses consigam seguidas prorrogações nesse prazo de transição, postergando a sua aplicação enquanto lhe for lucrativo.

4. O novo decreto estabelece a possibilidade de compensação (para a Administração) por benefícios indevidos e também (para o particular) por prejuízos injustos. O objetivo aqui é se evitar a judicialização (art. 9º).

  • Crítica 4: Por envolver uma negociação entre agentes públicos e privados, essa transação deveria merecer muito mais cuidados para se evitar corrupção, inclusive com o envolvimento de outras partes, que não apenas os diretamente afetados. Transparência aqui tb seria fundamental.

5. Para se celebrar essa compensação, o novo decreto prevê o instrumento do “compromisso”, a ser firmado entre o órgão público e os afetados por irregularidade, incerteza jurídica ou situações contenciosas no direito público (art. 10).

  • Crítica 5: Apesar de contar com algumas travas, como a exigência de manifestação do órgão jurídico e a fundamentação pela autoridade que propõe o compromisso, aqui também faltam requisitos mais firmes de transparência e de manifestação de terceiros interessados.

6. A CGU e demais órgãos de controle interno poderão firmar com os gestores públicos um “termo de ajustamento de gestão”, nos moldes dos TACs firmados pelo Ministério Público (art. 11).

  • Crítica 6: Também aqui a exigência é apenas a de “comunicar o TAG ao órgão central do sistema de controle interno”. O ideal seria publicar seu conteúdo para que toda a sociedade tomasse conhecimento.

7. Um dos pontos mais polêmicos do novo decreto está no art. 12, “o agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.”

  • Crítica 7: trata-se de medida para desonerar gestores públicos do risco de sua atuação. Mas pode ser uma incrível porta aberta para a impunidade, inclusive porque isenta dirigentes pelo comportamento de seus subordinados, praticamente isentando-os da chamada “culpa in vigilando” (art. 12, § 7º).

8. No art. 13, § 1º, tem uma profunda mudança de foco na atuação da CGU: “a atuação de órgãos de controle privilegiará ações de prevenção antes de processos sancionadores”.

  • Crítica 8: o § 2º dispensa comentários: “a eventual estimativa de prejuízo causado ao erário não poderá ser considerada isolada e exclusivamente como motivação para se concluir pela irregularidade de atos”.

9. Qualquer agente público poderá solicitar à AGU que estude a possibilidade de defendê-lo em processos por atos praticados no exercício de sua atribuição (art. 15).

  • Crítica 9: Dado que a AGU não tem estrutura para atender a todos os pedidos, qual será o critério que ela adotará para aceitar defender alguns e outros não?

10. A edição de novas normas poderá ser precedida por consulta pública para manifestação dos interessados (art. 18).

  • Crítica 10: O novo decreto determina que a convocação de consulta pública deverá ser motivada (art. 18, § 1º). O ideal seria inverter a lógica: a consulta pública deveria ser a regra e, quando a autoridade julgar que ela não deva ser realizada, deve justificar sua decisão e publicar na internet.

11. As manifestações apresentadas às consultas públicas não precisam ser analisadas individualmente (art. 18, § 3º).

  • Crítica 11: Esse dispositivo consolida a “consulta pública para inglês ver”. Ora, se não é para analisar individualmente cada crítica ou sugestão apresentada, manifestando-se publicamente pela sua aceitação ou rejeição, para que se realiza uma consulta pública?

Conclusão: O decreto contém muitos pontos positivos para se aumentar a segurança jurídica nos atos praticamentos pela Administração Direta. No entanto, existem inúmeros pontos obscuros que podem abrir margem para corrupção, impunidade e falta de transparência no setor público.