Polêmicas das redes sociais são dominadas pelos extremos do jogo político

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 10/08/2020.

 

Não basta ser pai, tem que participar” – esse era o slogan de um comercial que marcou a minha infância. Um garotinho acorda o pai para levá-lo a um jogo de futebol, mas, chegando lá, é preterido pelos colegas e fica no banco de reservas. Começa a chover, e o pai se mantém firme na torcida. No finalzinho do jogo, deixam o menino entrar. Ele faz uma jogada, mas sofre uma falta dura – e o pai entra correndo no campo enlameado para fazer uma massagem com a pomada salvadora. O menino bate o pênalti, e o abraço, na chuva, celebra muito mais do que o gol, e sim a própria relação de amor entre pai e filho.

As melhores campanhas publicitárias são aquelas que mexem com os nossos sentimentos, desejos, medos e contradições. O fotógrafo Oliviero Toscano talvez tenha sido quem soube usar melhor a polêmica a serviço da publicidade. Como diretor de arte da Benetton, seus anúncios chocavam: um agonizante paciente de Aids no leito de morte retratado como se fosse Jesus descido da cruz, um padre e uma freira se beijando, a crueza de três corações humanos com os dizeres “branco”, “negro” e “amarelo”. Por anos, as propagandas da grife italiana geraram debates sobre preconceito, racismo e intolerância religiosa.

Por aqui, a campanha de dia dos pais da empresa de cosméticos Natura “causou” nas redes sociais nas últimas semanas. A controvérsia não girou em torno do comercial em si – aliás, uma peça bastante água-com-açúcar, com a melosa canção “Velha Infância” dos Tribalistas acompanhando uma sucessão de imagens convencionais de demonstrações de carinho entre pais e filhos. A gritaria ficou por conta da opção da empresa de contratar o transgênero Thammy Miranda, que em janeiro se tornou pai, para divulgar a marca nas redes sociais.

A estratégia de marketing provocou a ira de usuários mais conservadores na internet. E como não poderia deixar de ser, a revolta foi vocalizada por políticos da direita. O deputado Carlos Jordy (PSL/RJ) postou que “colocar uma mulher que sofreu operações e tomou hormônios como símbolo do dia dos pais é desconstruir a figura do pai e um ataque brutal à família”. Eduardo Bolsonaro (PSL/RJ), quem diria, explicou sua visão em termos científicos: “Thammy nasceu menina, cada célula dela tem cromossomos XX – e nenhuma cirurgia muda isso. Uma ideologia não pode estar acima da ciência”.

O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL/SP) em sessão na Câmara. Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL/SP) em sessão na Câmara. Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

A reação foi encampada pela esquerda. A deputada Sâmia Bomfim (PSOL/SP) tuitou: “Um sujeito não paga pensão […]. O outro nem assume o próprio filho. Aí estufam o peito para dizer que um homem trans não pode representar um bom pai num comercial”. A petista Érika Kokay (DF), por sua vez, lembrou que no Brasil existem 5 milhões de crianças que não têm o nome do pai na certidão de nascimento, “mas o que incomoda os conservadores hipócritas é homem trans fazendo propaganda no dia dos pais”.

A maioria dos parlamentares mantém contas ativas no Twitter, produzindo nestes tempos de pandemia mais de 2.000 tweets diários. Técnicas de processamento de linguagem natural (ou NLP, da sigla em inglês) combinam elementos de linguística e de ciência da computação para captar o que se diz nas redes. No âmbito do projeto Parlametria – uma iniciativa dos departamentos de computação da UFMG e da UFCG, além das empresas Dado Capital e Kunumi, com a qual eu contribuo –, Roberta Viola e Guilherme Drummond contabilizam o teor dos tweets dos políticos usando aprendizagem de máquina. Depois de “ensinar” o computador a interpretar o sentido das palavras num volume imenso de textos, os algoritmos passam a calcular o valor de “raiva”, “argumentação” ou “vagueza” de cada postagem em particular.

Processando milhões de tweets publicados pelos parlamentares, é possível constatar que as mensagens mais raivosas partem de deputados e senadores eleitos pelo PSL, pelo PSOL e pelo PT, enquanto mensagens vindas de legisladores do Novo, do DEM ou do PSDB costumam ser mais moderadas e conter mais léxicos argumentativos – mas com impacto menor.

Como pode ser visto no gráfico abaixo, na polêmica envolvendo a campanha da Natura com Thammy Miranda, o debate foi dominado pelos extremos. Os tweets de Eduardo Bolsonaro, Carlos Jordy e Otoni de Paula (PSC/RJ) tiveram grande repercussão, atingindo um público muitas vezes superior ao desempenho médio de suas postagens na rede social. Sâmia Bomfim e Jandira Feghali (PC do B/RJ) mobilizaram a defesa dos transgêneros, mas com um alcance bem mais limitado.

Praticamente nenhum parlamentar que se situa fora do embate entre o bolsonarismo e o bloco PT/PSOL/PC do B arriscou a se manifestar publicamente sobre o assunto. Por cálculo político ou tática de isenção, Centrão e centristas não se posicionaram nem contra nem a favor – apenas silenciaram.