Saga da Odebrecht é manual sobre o capitalismo brasileiro que deu errado

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 23/11/2020.

 

A ascensão da Odebrecht como grande império empresarial ao longo das últimas décadas pode ser medida em termos de faturamento, número de empregados ou de obras espalhadas pelo mundo. Mas existem métricas que revelam mais sobre as estratégias que fizeram da companhia um ícone do capitalismo brasileiro – ou do pior dele.

Em “A Organização: A Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo”, a jornalista Malu Gaspar conta que no início dos anos 1970 as reuniões de planejamento anual da construtora baiana eram realizadas em finais de semana, na sua própria sede em Salvador. À medida em que galgava posições no ranking das maiores empreiteiras do país, os eventos foram sendo transferidos para hotéis, como o Deville, na praia de Itapuã, e o Fiesta Bahia, no Farol da Barra.

No auge, os encontros eram realizados no complexo hoteleiro de Costa do Sauípe, construído pela empresa, com a presença dos familiares de executivos e funcionários, embalados por shows de axé music e até a presença do técnico da seleção brasileira de futebol orientando uma pelada.

Não haveria problema algum em celebrar os êxitos corporativos com festas grandiosas, a não ser pela forma como esse sucesso foi obtido.

“O que funciona está certo”, pregava o patriarca Norberto Odebrecht em seus livros de autoajuda que serviam como código de ética (!?) do conglomerado. Anos depois, o filho Emílio esbanjava otimismo com os lances estratégicos de expansão do grupo repetindo o mantra “mais coragem do que análise”. Já o neto, Marcelo, assim resumiu a sua trajetória, que é a do grupo como um todo: “Vocês sabem por que fui tão longe? Porque pensei que o sistema era blindado.”

Logo no início do livro, a autora apresenta uma listagem de dezenas de familiares, executivos e operadores para facilitar a vida dos leitores menos acostumados ao organograma da empresa, à semelhança dos resumos que ajudam a entender grandes sagas da literatura mundial, como Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, ou o Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien.

Já nos primeiros capítulos, porém, se percebe que um outro guia seria necessário, para dar conta da sucessão de políticos dos mais diferentes partidos, de uma infinidade de empreendimentos públicos superfaturados e das respectivas porcentagens e comissões, pagas a título de “ajuda” ou “apoio” – afinal de contas, “propina” é um termo que não existia no léxico odebrechtiano.

Na cartilha da Organização, a satisfação do cliente estava acima de tudo – mas nesse caso não se tratava de cumprir aos objetivos de melhor qualidade e menor preço exigido nas contratações públicas. Segundo sua lógica negocial, “cliente” eram os políticos e dirigentes de estatais, que deveriam ser agradados de modo contínuo, com presentes, contribuições de campanha e malas de dinheiro. “Nossa disposição em ouvir, atender e resolver as questões dos nossos interlocutores fatalmente se transformará, quando necessário, em disposição deles para entender e considerar nossas questões”, ensinava o poderoso Emílio.

Enquanto nos envolvemos com a trama empresarial e familiar, mal nos damos conta de que vamos passando de escândalo em escândalo da história brasileira, das negociadas nas obras faraônicas do regime militar à licitação forjada da ferrovia Norte-Sul de Sarney, passando pelos casos de PC Farias e dos Anões do Orçamento e até chegarmos à interconexão entre o Petrolão petista e o Trensalão tucano.

Ainda na década de 1980, seus executivos chegaram à conclusão de que, para ficar imune à instabilidade política e econômica no país, a companhia deveria se internacionalizar. Tentaram entrar no mercado americano, na Europa e nos Emirados Árabes. Segundo um alto funcionário da companhia, nesses locais pouco importa para o governo a sua nacionalidade, o que conta é se você executa bem as obras e por um preço baixo. “Sempre que nos aventuramos por locais assim, deu errado. O que funcionava era apostar em países onde o fato de ser brasileiro fazia diferença”.

A Odebrecht voltou-se então para a América Latina e países africanos como Angola, onde as “parcerias público-privadas” se davam nos mesmos moldes daqui: por meio de fechamento de mercado contra a concorrência internacional, contratos de exclusividade com estatais e linhas de crédito subsidiadas em bancos públicos, além de editais de licitações manipulados, cartéis com pretensos concorrentes e benefícios fiscais.

Embora tenha elevado ao grau máximo de sofisticação a engenharia financeira para gerar bilhões de dólares em caixa dois e distribuí-los a autoridades, o mais grave é constatar que a Odebrecht está longe de ser um caso isolado ao longo de nosso processo de (sub)desenvolvimento econômico. Parte considerável das grandes empresas brasileiras só se mantém graças ao mesmo ambiente institucional que propiciou ao grupo baiano se tornar um dos maiores da América Latina.

Enquanto isso, milhares de empreendedores com bons projetos não conseguem fazer seus negócios prosperarem devido ao reverso da medalha. A corrupção exposta no livro choca pelos valores astronômicos repassados a partidos e candidatos. O prejuízo social, contudo, vai muito além dos desvios – envolve a carga tributária elevada e complexa para compensar as perdas fiscais com incentivos e subsídios, a infraestrutura deficiente gerada por projetos malfeitos e um sufocante emaranhado regulatório criado para se vender facilidades.

A Lava Jato colocou empresários e políticos poderosos na cadeia, o país elegeu um presidente que prometia mudar tudo, mas praticamente nada foi feito para se evitar que novas ou velhas empresas, com os mesmos ou outros métodos, venham a capturar a política em benefício próprio.

Como diria Regina Bahia Odebrecht, em mensagem para o filho preso que insistia em brigar com o pai: “O tempo sem uma equação é contra todos nós”. Sem encarar de frente esses problemas, não tardarão a surgir novos escândalos. Tic-tac, tic-tac, tic-tac.

Nota: Originalmente este texto foi publicado com o título “Se hay gobierno, soy a favor”, frase atribuída ao ex-ministro Antonio Palocci a respeito da disposição da Odebrecht em pagar serviços do marqueteiro João Santana na campanha eleitoral do PT. Agradeço ao leitor Dario Chemerinski por me alertar que havia um duplo erro de espanhol na sentença, a qual foi devidamente corrigida.