Enquanto nos distraímos com CPI da covid, Câmara discute as regras de 2022

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 10/05/2021.

 

Na noite do dia 28 de novembro de 2016, às 21h58 (horário de Brasília), a aeronave LMI2933, da companhia boliviana LaMia, caiu nos arredores do Cerro El Gordo enquanto se preparava para aterrissar no Aeroporto Internacional José Maria Córdova, localizado na cidade de Rionegro, região metropolitana de Medellín, na Colômbia.

A bordo estavam 77 pessoas, entre tripulantes, jornalistas, convidados, comissão técnica e atletas da Associação Chapecoense de Futebol, que disputaria no dia seguinte a primeira partida da final da Copa Sul-Americana contra o Atlético Nacional. Apenas seis passageiros sobreviveram.

A notícia foi divulgada na madrugada seguinte. A partir daí o país, atônito, acompanhava as buscas e tentava, em vão, encontrar alguma explicação para a tragédia. Um imenso luto coletivo tomou conta de todo o Brasil.

Às 13:55h daquele dia o plenário da Câmara dos Deputados iniciou seus trabalhos respeitando um minuto de silêncio pelas vítimas do acidente aéreo. Na sequência o presidente da sessão, deputado Carlos Manato (à época do Solidariedade, atualmente PSL-ES), declarou que as atividades legislativas não seriam suspensas. “Nós vamos continuar o trabalho normalmente”, anunciou.

Depois de dezenas de discursos feitos na tribuna, lamentando o ocorrido e prestando homenagens, às 18:55h iniciou-se uma Sessão Deliberativa Extraordinária, que tinha como pauta os projetos: o PL nº 4.238/2012, que definia o piso salarial para a profissão de vigilante, e o PL nº 4.850/2016, que tratava das famosas “Dez Medidas contra a Corrupção”.

Àquela altura, no final de 2016, a Operação Lava Jato estava no auge e o projeto de lei anticorrupção havia sido capitaneado pelos membros da Força Tarefa numa campanha que mobilizou mais de dois milhões de assinaturas coletadas nas ruas das principais cidades brasileiras.

O PL nº 4.850/2016 tinha os seus problemas, mas continha medidas que atendiam ao clamor popular por um tratamento mais duro contra os crimes de corrupção, como reformulava procedimentos nas ações de improbidade administrativa, tornava mais difícil a prescrição de crimes contra o patrimônio público e ampliava as punições para o crime de caixa 2 em campanhas eleitorais, entre outras medidas.

Na noite daquele dia 29/11/2016 os telejornais de todos os canais cobriram durante horas a tragédia da Chapecoense. E enquanto milhões de brasileiros choravam as mortes, a Câmara dos Deputados, na surdina, promoveu uma surpreendente manobra política. Por meio de uma operação que envolveu a apresentação de destaques por sete partidos (Republicanos, PP, MDB, PSB, PDT, PT e Psol), o projeto das “Dez Medidas contra a Corrupção” foi completamente esvaziado numa votação convocada às pressas, quando todas as atenções do país estavam voltadas para o desastre da Chape.

Aquela foi a primeira de muitas derrotas que a Lava Jato sofreria a partir de então. E as circunstâncias dessa votação mostram a capacidade que tem a classe política de se valer de momentos de distração da opinião pública para aprovarem uma agenda que lhe interesse diretamente.

Com o início dos trabalhos da CPI da Covid, as atenções da população são atraídas pela sucessão de depoimentos e inquirições voltados à responsabilização de autoridades pelo péssimo desempenho do governo na gestão da pandemia. É o cenário perfeito para o avanço sorrateiro de pautas contrárias ao interesse público.

Enquanto todos os olhos estão voltados para o Senado Federal, no outro lado do túnel foi instalada, na última terça-feira (04/05), uma comissão especial para discutir as regras das eleições de 2022. E é aí que mora o perigo.

Até a adoção do sistema de pontos corridos, a cada ano o campeonato brasileiro de futebol tinha um formato diferente. Mudavam o número de equipes, o formato dos grupos, a quantidade de confrontos nos “mata-matas” – e nem isso era mantido, pois às vezes o campeão saía de quadrangulares ou triangulares.

Como nos velhos tempos do futebol, no Brasil nunca uma eleição é igual à anterior. Devido a uma regra inscrita em nossa Constituição, qualquer mudança nas regras do jogo deve ser aprovada pelo Congresso um ano antes do pleito. Assim, todo ano ímpar temos alteração na legislação eleitoral.

Apenas para ficar nas modificações mais recentes, tivemos a proibição das doações de empresas em 2015, a criação da cláusula de desempenho e do fundão eleitoral e mais a proibição das coligações para o Legislativo em 2017 e uma ampla flexibilização da prestação de contas e da utilização dos recursos partidários em 2019.

Agora em 2021, as escolhas do presidente e da relatora da comissão já sinalizam que há grande risco de retrocessos no sistema eleitoral. Luís Tibé (Avante-MG) e Renata Abreu (Podemos-SP) são “donos” de partidos pequenos (têm respectivamente 8 e 10 deputados federais) e por isso possuem interesse direto na abolição da cláusula de desempenho e na volta da possibilidade de realização de coligações – duas medidas criadas para conter a proliferação de legendas nanicas e induzir um processo de consolidação do nosso sistema partidário.

Além disso, ambos representam a classe de políticos que se beneficiaria com a instituição do chamado “distritão”, um sistema que elege os candidatos com o maior número de votos em cada Estado, independentemente de seu vínculo partidário. Caso aprovado, o distritão transformará a disputa para a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais num cada um por si que favorecerá celebridades, líderes religiosos, candidatos ricos e dirigentes partidários que detêm a chave do cofre do fundão eleitoral – justamente o caso de Luís Tibé e Renata Abreu.

Por mais fundamental que seja apurar a responsabilidade do governo pelas centenas de milhares de mortes por covid, não podemos deixar de acompanhar com lupa o que se passa na Câmara dos Deputados. A configuração do quadro político brasileiro a partir de 2022 começa a ser desenhada agora, na comissão especial da “reforma política”.