Embora a citação acima seja habitualmente atribuída ao chanceler alemão Otto von Bismarck (1815-1898), alguns argumentam que sua autoria é do poeta norte-americano John Godfrey Saxe (1816-1887). Independentemente do seu criador, a verdade é que a frase de efeito serve à perfeição para caracterizar o processo legislativo, principalmente brasileiro.
Encerrando a série de três artigos sobre as medidas provisórias e os lobbies, apresento um exemplo cristalino de como a tramitação dessas normas se dá de forma pouco transparente e, ao final, traz graves prejuízos ao país (e muitos benefícios para alguns).
Em 17 de maio deste ano, a Presidente da República editou a Medida Provisória nº 615/2013 (http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Mpv/mpv615impressao.htm.), que originalmente tratava de três assuntos principais: i) concedia subvenções econômicas à cadeia produtiva da cana-de-açúcar e da produção de etanol na região Nordeste (com custos estimados de R$ 563,4 milhões em 2013, R$ 53,2 milhões em 2014 e R$ 80,5 milhões em 2015); ii) instituía nova regulação para o Sistema de Pagamentos Brasileiros – SPB, para abarcar as transações realizadas por meio de cartões de crédito e outras formas de pagamento eletrônico e iii) alterava a forma de aporte de recursos do Tesouro Nacional na Conta de Desenvolvimento Energético – CDE.
Na última semana, essa MP foi convertida na Lei nº 12.865/2013 (http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12865.htm). Durante a tramitação parlamentar, foram introduzidos diversos outros dispositivos na referida norma, a saber:
i)                    reabertura de prazo para parcelamento de débitos tributários – o “Refis da Crise” (art. 17);
ii)                  autorização para a Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres contratar por dispensa de licitação o Banco do Brasil para gerenciar os recursos, as obras e os serviços de engenharia referentes aos seus projetos (art. 18);
iii)                ampliação de 24 para 48 meses do prazo máximo para início de operação de uma Zona de Processamento de Exportações (arts. 20 e 21);
iv)                inclusão de novos representantes no Conselho Nacional de Trânsito (art. 22);
v)                  admissão de caráter legal para os documentos digitalizados no âmbito do sistema financeiro nacional (art. 23) e nos processos administrativos fiscais (art. 24);
vi)                normas para ingresso e saída de moeda estrangeira no país (art. 25);
vii)              mudança na base de cálculo do Pis/Pasep-Importação e da Cofins-Importação (art. 26 e art. 42, I);
viii)            permissão legal para a transferência da outorga da exploração dos serviços de táxi a terceiros e, em caso do falecimento do titular, a seus sucessores legítimos (art. 27);
ix)                suspensão da incidência de PIS/Pasep e Cofins e concessão de crédito presumido para o setor da soja (arts. 29 a 32 e art. 42, III), cerealistas (art. 33 e art. 42, II), café, trigo e outros cereais (art. 34);
x)                  extinção da obrigação de produtores de cana, açúcar e álcool de aplicar parte de sua receita em assistência médica e hospitalar de seus empregados (art. 38 e art. 42, IV);
xi)                instituição de programa especial de pagamento de débitos tributários – com isenção de multas, juros de mora e encargos legais ou o seu parcelamento em condições especiais – de instituições financeiras e seguradoras (art. 39) e para empresas brasileiras coligadas ou controladas no exterior (art. 40);
xii)              regras especiais de aplicação de taxa de depreciação para fins de tributação de empreendimentos relativos a geração de energia elétrica (art. 41);
Como pode ser visto na extensa lista acima, durante a tramitação da MP nº 615/2013 os parlamentares introduziram emendas que privilegiaram de detentores de concessões municipais de táxis a instituições financeiras, passando por produtores e industriais dos setores de soja e sucroalcooleiro e companhias brasileiras com subsidiárias no exterior, entre muitas outras.
A relação de benefícios também é bastante variada: parcelamento de débitos tributários, isenções e subvenções fiscais, autorização para operar com câmbio, direito de transmitir concessões públicas para herdeiros, relaxamento de prazos legais previamente definidos, etc.
As marcas comuns nesse processo são (i) ausência de um amplo debate sobre a utilidade dessas medidas, (ii) falta de estimativa de seus custos, (iii) carência de avaliação se as propostas têm a capacidade de atingir os seus objetivos, (iv) inexistência de consideração de alternativas legais ou administrativas que pudessem trazer melhores benefícios.
Após analisar os pareceres, os relatórios e as emendas apresentadas na Câmara e no Senado durante a tramitação da MP nº 615/2013, verificamos que não há sequer uma estimativa sobre os custos de medidas de grande impacto fiscal e orçamentário inseridas nas emendas parlamentares, como a reabertura do “Refis da Crise” ou o tratamento especial concedido às empresas brasileiras com coligadas e controladas no exterior (que aliás, teria levado ao pedido de demissão do Subsecretário de Fiscalização da Receita Federal do Brasil, o auditor fiscal Caio Marcos Cândido: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/10/1354965-perdao-a-multinacionais-abre-crise-na-receita-federal.shtml).
A esse respeito, a nota técnica da Consultoria Legislativa sobre a adequação orçamentária e financeira da medida provisória limita-se a referendar os números apresentados pelo Governo Federal na Exposição de Motivos. Não há nenhuma manifestação daquele órgão técnico sobre o custo das emendas. Quanto vai representar a isenção concedida a produtores e industriais da cadeia sucroalcooleira ou da soja, por exemplo? Haveria alternativas menos gravosas para o Erário do que reabrir prazo para as empresas parcelarem seus débitos tributários? Qual o benefício de se isentar de multas, juros de mora e encargos legais o passivo tributário das multinacionais brasileiras no exterior? São perguntas que interessariam a todos, mas que não foram sequer cogitadas durante a tramitação da MP nº 615/2013.
Para ficar num caso mais prosaico, qual a importância social de se conceder aos detentores de licença para operar táxi (que na maioria das vezes não são os taxistas)  o direito de repassar a delegação aos seus herdeiros em caso de morte? Existe alguma lógica econômica nisso? Algum benefício social ou apenas a perpetuação de um privilégio?
Uma das propostas em discussão para corrigir distorções no uso das medidas provisórias, prevista na PEC nº 70/2011, seria exigir sua unidade temática, forçando o Poder Executivo a só tratar de um mesmo assunto em cada MP e a vedar a proposição de emendas parlamentares que tratem de assuntos diversos.
Sem dúvida, essa proposta de mudança representará um obstáculo para que se repitam descalabros como o da tramitação da MP nº 615/2013. No entanto, o conceito de uniformidade temática também é relativo. Afinal de contas, a proposta não impediria que numa MP que conceda benefícios tributários destinados a estimular determinado setor fosse desvirtuada pelos parlamentares que introduziriam benesses a outros setores por meio de emendas – afinal de contas, o tema é o mesmo (“benefício tributário”).
Como dissemos na postagem anterior, medidas paliativas não resolvem o problema porque Poder Executivo e Congresso têm incentivos para que os abusos se perpetuem, pois as medidas provisórias alimentam um jogo político e econômico marcado pelo rent seeking – a estratégia de grupos de pressão de convencer as autoridades governamentais a implementar medidas que os favoreçam, em detrimento de toda a sociedade.
Atacar o problema, portanto, requer um maior debate social sobre nosso processo legislativo – o que passa, necessariamente, pela comunidade acadêmica.
Durante séculos a Ciência do Direito concentrou-se na aplicação da lei e na sua interpretação, relegando para o campo da política os trâmites legais que levavam à sua elaboração (processo similares à produção das salsichas, segundo Bismarck/Saxe). Na década de 1970, porém, surgiu na Alemanha o que se convencionou chamar de Ciência da Legislação ou Legística, que se propõe a pesquisar, no âmbito do Direito, as instituições, as técnicas e os procedimentos de concepção das leis.
O objetivo central desse ramo do Direito pode ser resumido na seguinte expressão: “antes de redigir a lei, é preciso pensá-la” (Jean-Daniel Delley). A proposta da Legística é elaborar um método que conduza à produção de “boas leis, no sentido de leis claras, não contraditórias, funcionalmente justas e adequadamente determinadoras dos seus destinatários” (J.J. Gomes Canotilho).
Nessa busca pela melhoria do processo legislativo para incorporar às leis “questões de justeza, adequação e efetividade” (João Caupers), é fundamental uma agenda “amplamente pluri ou interdisciplinar, até mesmo transdisciplinar, que exige a justaposição, a articulação ou a integração dos métodos, teorias e informações específicas de várias disciplinas científicas” (Luzius Mader)

 

 Reformar o processo legislativo de forma a restringir ou até mesmo eliminar as distorções provocadas, entre outras, pelo instituto das medidas provisórias demanda, portanto, a participação da comunidade acadêmica, principalmente das áreas do Direito, da Economia e das Ciências Políticas, para pesquisar e propor soluções para romper esse sistema extremamente prejudicial à democracia brasileira.
A partir da introdução de métodos que levem a uma adequada definição dos problemas e dos meios necessários para eliminá-lo, combinados com avaliações antes e após a adoção da lei, num processo democrático e transparente, é possível melhorar a qualidade de nossa legislação e, quem sabe, resgatar a credibilidade do Poder Legislativo brasileiro.
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