Recentes áudios vazados da cúpula do PMDB com Sérgio Machado revelam que é mais do que urgente reformar o sistema político brasileiro. Temos que discutir como.

As conversas de Romero Jucá (aqui), Renan Calheiros (aqui) e José Sarney (aqui) com Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, revelam o que dilmistas, legalistas e os pró-impeachment-mas-com-um-mínimo-de-senso-crítico sempre souberam: o velho sistema político patrimonialista brasileiro se move para manter-se a salvo da Operação Lava Jato.

As conversas, acontecidas antes da votação para abertura do processo de impeachment na Câmara, demonstram como o poder estabelecido considerava todos os movimentos possíveis neste xadrez político: as possibilidades de impeachment, renúncia e licença da Presidente Dilma Rousseff; a adoção de um parlamentarismo branco com Lula na figura de primeiro ministro; a adoção de uma reforma política para implementar um semi-presidencialismo/parlamentarismo; mudanças legais para esvaziar o instituto da delação premiada, etc. Nas conversas, referências a negociações com todas as figuras-chave da República brasileira: Dilma, Lula, Temer, Aécio, ministros do STF, João Roberto Marinho (Rede Globo), Otávio Frias Filho (Folha de São Paulo)…

Muitas opções, muita incerteza, muitos personagens, mas apenas um objetivo: manter a elite política brasileira livre da cadeia, por meio de “um grande acordo nacional”, “com o Supremo, com tudo”, em que “protege o Lula, protege todo mundo”, “um acordo que a turma topa”, para “passar uma borracha no Brasil”, “como foi feito na Anistia, com os militares, um processo que diz assim: ‘Vamos passar o Brasil a limpo, daqui para frente é assim, pra trás…’ [bate palmas]”, “uma solução a la Brasil, como a gente sempre conseguiu”…

Todos esses fatos – dos quais todos desconfiavam, mas agora estão escancarados – tornam urgente discutir uma reforma política abrangente no Brasil. Não se trata de gritar contra o golpe, de pedir o impeachment de Temer ou a renúncia de Renan. Trata-se de pensar a sério em medidas que possam fazer emergir uma “nova casta política”, tão temida por Romero Jucá na sua fala grampeada.

Faz tempo que a confiança da população brasileira nas instituições políticas está em queda, antes mesmo das manifestações de Junho de 2013 e das passeatas pró-impeachment. O gráfico abaixo mostra como todos os Poderes da República, assim como os partidos políticos e até mesmo o Ministério Público, vêm caindo em descrédito da população, conforme pesquisa conduzida pela Direito GV de São Paulo:

Confiança

Para discutir aqui algumas medidas que possam melhorar a seleção de políticos brasileiros, tomo aqui emprestado a tipologia de políticos criada pelo cientista político Bruno Pinheiro Wanderley Reis (DCP/UFMG) – cuja presença na minha banca de defesa de doutorado já é motivo de grande honra. Num texto recente publicado no facebook, Bruno P. W. Reis divide os políticos brasileiros em 5 grupos:

1) os incorruptíveis, que desprezam clientelismos e fisiologismos;

2) os “atores politicamente engajados, partidários, estrategicamente atuantes em favor de seu partido ou sua causa”, que jogam o jogo fisiológico, mas nos limites estritos da lei;

3) o político médio, que lança mão do que for preciso para vencer a luta pelo poder, compactuando com atos ilícitos e eventualmente incorrendo neles para manter sua posição no sistema político, se possível por toda a vida;

4) o típico corrupto, que quer ficar rico e utiliza o poder para isso;

5) o testa de ferro do crime organizado, que candidatou-se exclusivamente para promover os interesses da atividade criminosa.

Na visão de Bruno P. W. Reis, a Operação Lava Jato estaria fazendo um ataque aos grupos 3 e 4, mas pode favorecer em breve o fortalecimento do grupo 5, e não do 2. Concordo com a sua opinião, ainda mais diante dos problemas trazidos pela proibição das doações empresariais para campanhas eleitorais que eu discuti na última postagem.

No entanto, essa classificação de políticos do Bruno Reis me inspirou a adaptar algumas das sugestões de medidas que constam no último capítulo da minha tese para pensar numa reforma política que vá além da Lava Jato (pegando aqui o mote da entrevista do cientista político Marcus Melo, da UFPE).

Por mais que a Operação Lava Jato coloque na cadeia os principais caciques da política brasileira, o combate aos tipos 3 e 4 não pode ficar à mercê apenas da ação conjunta de alguns membros da Polícia Federal, do Ministério Público e do Poder Judiciário. As gravações de Sérgio Machado – inclusive a mais recente delas, envolvendo o agora ex Ministro da Transparência, Fiscalização e Controle  – revelam que as instituições e mesmo as normas estão à mercê da influência dos grupos e econômicos. Fortalecer as instituições de investigação e aumentar os mecanismos legais para a efetiva punição da corrupção, do “caixa dois” e de outros crimes contra o patrimônio público são fundamentais. A esse respeito, a campanha “10 Medidas contra a Corrupção”, capitaneada pelo Ministério Público Federal com amplo apoio popular resultou no Projeto de Lei nº 4.850/2016, que “estabelece medidas contra a corrupção e demais crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento ilícito de agentes públicos”. Pressionar pela sua aprovação é um primeiro passo para evitar que a Operação Lava Jato se torne um evento apenas esporádico na história política brasileira.

Para evitar que o grupo 5 (os testas de ferro de organizações criminosas) dominem a política brasileira nas próximas décadas, é fundamental diminuir a influência econômica nas eleições brasileiras – o tema central da minha tese. Diminuir o peso do dinheiro no resultado das eleições demanda limites – tanto de gastos nas campanhas, quanto de doações individuais. Podemos pensar também em propagandas eleitorais mais baratas (com menos poder aos marqueteiros), mas o fundamental é que cada doador só possa doar um valor X (tantos salários mínimos, por exemplo) total e por candidato. Nesse aspecto, o novo modelo brasileiro é muito ruim, pois estimula o uso de laranjas e o caixa dois. O ideal seria que o financiamento de campanhas envolvesse apenas pequenas doações de empresas, indivíduos e partidos, de forma a facilitar a fiscalização pelos órgãos de controle.

Mas para que proliferem os políticos do tipo 1 e 2 – aqueles mais comprometidos com seus eleitores e menos propensos à corrupção e ao crime – é fundamental reformar a forma de escolha dos membros do Poder Legislativo. E isso passa, necessariamente, pelo fortalecimento dos partidos políticos (para incentivar os políticos tipo 2) e da responsabilização dos candidatos eleitos a seus eleitores (a tal da accountability, que estimularia os políticos tipo 1).

Embora em descrédito junto à população, a democracia ainda não conseguiu prescindir dos partidos políticos. Eles são fundamentais para organizar as bases das disputas eleitorais, tornando a política mais compreensível para os cidadãos. Com 35 partidos políticos registrados no TSE e 25 com representação no Congresso Nacional, é inviável discernir o conteúdo ideológico nessa sopa de letrinhas. Para ter mais políticos tipo 2 (aqueles comprometidos com seus partidos e engajados politicamente, sem incorrer em ilegalidades) é preciso implementar cláusulas de barreiras ou de desempenho, assim como coibir as coligações oportunistas – que são o alimento das legendas de aluguel e, inclusive, de muitos políticos do tipo 5 descritos acima. Essas medidas forçariam uma reacomodação das forças políticas no Brasil, incentivando “fusões e aquisições” de partidos nanicos ou nem tão nanicos assim. Um número menor de partidos tornaria o sistema político mais claro para os eleitores, além de ter como bônus melhores condições de governabilidade para os próximos governos – que poderão negociar apoios no atacado, e não no varejo. Há quem advogue a adoção de um sistema proporcional de listas fechadas, mas eu temo que ele dará muito poder aos caciques dos partidos, que na prática definirão a ordem dos candidatos em cada legenda – e isso favorecerá os políticos do tipo 3 (aqueles que buscam o poder pelo poder). Aliás, faltou dizer que um limite de reeleições também para o Legislativo poderia aumentar a oxigenação no Parlamento e reduzir a influência desses políticos tipo 3.

Medidas voltadas para fortalecer os vínculos entre deputados e senadores com seus eleitores – incentivando o surgimento de (novos) políticos do tipo 1 (os incorruptíveis) – envolvem, por exemplo, o fim dos suplentes de senadores, um sistema de financiamento eleitoral que estimule as doações de indivíduos e não transferências do Fundo Partidário (candidatos e partidos devem buscar recursos junto às suas bases, e não no Orçamento federal), instrumentos mais claros de recall (e não esse arremedo que o impeachment assumiu), distritos eleitorais menores (fazer campanha em estados muito extensos ou populosos afasta os candidatos de seus eleitores e favorece celebridades ou líderes religiosos, por exemplo) e um inevitável afastamento do sistema proporcional de lista aberta em direção a escolhas majoritárias (será o caso do sistema distrital misto?).

Não tenho opinião formada sobre todas essas medidas, e tenho total consciência de qualquer reforma política traz consigo o risco de piorar o que já é ruim, porém acho que devemos começar a discutir mais seriamente essas questões – porque pedir a volta da Dilma, o impeachment do Temer ou novas eleições não resolve o nosso problema principal: um sistema político que não mais atende aos anseios da população.



 

Nota: Parte das ideias desta postagem estão expostas na minha tese de doutorado, que será defendida no dia 08/07/2016, às 9hs, no Auditório Francisco Luís, 16º Andar do Prédio da Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG (Av. João Pinheiro, 100, Centro, BH/MG).
Convido a todos os interessados a participarem, principalmente porque a Banca Examinadora é excepcional, combinando professores de relevo do Direito, da Economia e da Ciência Política:

Profa. Dra. Amanda Flávio de Oliveira (Faculdade de Direito da UFMG – Orientadora);
Prof. Dr. Onofre Alves Batista Júnior (Faculdade de Direito da UFMG);
Prof. Dr. Leandro Novais e Silva (Faculdade de Direito da UFMG);
Prof. Dr. Bruno Pinheiro Wanderley Reis (Departamento de Ciência Política / Fafich / UFMG);
Prof. Dr. Marcos de Barros Lisboa (Insper); e
Prof. Dr. César Costa Alves de Mattos (Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados).


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