Infiltração de milícias na política coloca em risco democracia

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 18/03/2019

 

Centenas de estudos de sociologia e ciência política escritos em décadas não conseguiram dar uma dimensão tão completa do funcionamento da política brasileira quanto duas investigações realizadas nos últimos anos. Por terem acesso a informações e depoimentos de agentes que atuam à margem da lei, esses inquéritos conseguiram lançar luz sobre a política no seu estado bruto, que vai muito além do marketing eleitoral e das negociações para a formação de bases governistas.

Se as delações obtidas na Operação Lava Jato, que completou ontem 5 anos, revelaram como grandes empresas se valem de doações eleitorais, caixa dois e propina para obter toda sorte de benefícios governamentais, uma investigação parlamentar conduzida na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2008 expôs uma outra dimensão das verdadeiras relações de poder no Brasil: a infiltração do crime organizado no sistema político.

A chamada CPI das Milícias ouviu dezenas de delegados e comandantes de polícia, promotores, secretários de Estado e especialistas em segurança pública, além de acusados de envolvimento com essas organizações criminosas. Citando pesquisa realizada pelo sociólogo Ignacio Cano (UERJ), o relatório da CPI aponta que as milícias têm 5 traços distintivos principais: i) valem-se de grupos armados para controlarem um território; ii) praticam coação contra moradores e comerciantes; iii) buscam o lucro; iv) possuem um discurso de legitimação baseado na restauração da ordem e contra o tráfico de drogas e v) têm agentes públicos (em geral militares, bombeiros e policiais civis) em posições de comando.

Por meio do cruzamento de dados de votações eleitorais e de informações coletadas no Disque Denúncia, a CPI mapeou como milicianos usam sua força para eleger candidatos de seu interesse ou até mesmo a si próprios. E a partir de relatos de moradores, comerciantes e representantes de empresas de distribuição de gás, TV a cabo e transporte, demonstrou como a milícia obtém lucros monopolísticos com a exploração desses serviços e a cobrança de taxas de proteção nos territórios dominados.

Seguindo a rota traçada pelo relatório da CPI das Milícias, os pesquisadores Daniel Hidalgo (MIT) e Benjamin Lessing (Universidade de Chicago) publicaram no final de 2015 um estudo com evidências estatísticas de mudanças no padrão de votos nas regiões dominadas por milícias no Rio de Janeiro. Nessas áreas, o crescimento dos votos em candidatos associados às organizações paramilitares foi em média 50% superior ao verificado nas demais regiões da cidade. Na visão dos autores, as milícias se valem do domínio territorial não apenas para coagir os eleitores a votarem em seus candidatos, mas também para proibir adversários de fazerem campanhas nos seus domínios.

Senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) em pronunciamento à bancada. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado.

Levando seus representantes a ocuparem cargos no legislativo municipal, estadual e até mesmo federal, as milícias atuam de forma semelhante a qualquer grupo de interesses e mesmo às grandes empresas flagradas na Lava Jato: exercem influência para aprovar legislação favorável ao setor (como a facilitação do comércio de armas), buscam maiores orçamentos para aumentar a lucratividade de seus negócios (alocando mais recursos no combate ao tráfico de drogas, por exemplo) e sobretudo abrem portas de gabinetes no Judiciário e do Executivo. Dessa forma, as milícias conseguem favores que vão de informações privilegiadas em operações policiais até o arquivamento de investigações, passando ainda pela facilitação no contrabando de armas e a indicação de apadrinhados para ocuparem batalhões de polícia nas suas áreas de influência.

Para Hidalgo e Lessing, a infiltração das milícias no sistema eleitoral é uma estratégia bem-sucedida de enfraquecer o poder do Estado “por dentro”. Elegendo seus representantes e estabelecendo conexões políticas com integrantes dos três Poderes, as milícias passam a atuar de forma institucional para diminuir a repressão do Estado a suas atividades criminosas e econômicas.

Assim como acontece com a deterioração da situação fiscal, o efeito Orloff (“eu sou você amanhã”) prenuncia que em breve pode chegar ao plano federal uma realidade que já é vivenciada no Rio de Janeiro de hoje. As investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco deixam claro que o crime organizado no Brasil não tem receio de valer-se da força bruta para eliminar seus adversários políticos. A execução meticulosa, o envolvimento de agentes do Estado tentando desviar o foco do inquérito policial e os evidentes vínculos dos matadores com a milícia prenunciam o que pode ocorrer caso não se combata duramente o envolvimento dos paramilitares com a política.

Já existem indícios preocupantes de que a força das milícias tenha chegado a Brasília, como a eleição de deputados federais supostamente associados a elas, bem como a defesa, por parte do governo e da chamada bancada da bala, de uma agenda de medidas que amplia o seu poder de fogo, como a flexibilização da posse e do porte de armas.

Apesar de não existir nenhuma evidência concreta de ligação direta com milícias, preocupam sobretudo os discursos elogiosos proferidos pelo então deputado Jair Bolsonaro e as condecorações concedidas por seu filho Flávio a militares acusados de homicídios, além da nomeação em seu gabinete de familiares de um suspeito de liderar um esquadrão de extermínio que prestava serviços para essas organizações paramilitares, além de outras coincidências.

Para deixar claro que não pairam dúvidas quanto a seu passado, é fundamental que o governo implemente com urgência medidas de tolerância zero contra a atuação das milícias e sua influência na política.