PECs de Guedes têm virtudes e problemas

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 11/11/2019.

 

Em 2015, o Estado de Minas Gerais fechava o ano tendo arrecadado R$ 60,7 bilhões com tributos e transferências. Do lado da despesa, porém, o valor alcançou R$ 63,5 bilhões, sendo que a maior parte (60,5%) era atribuída à folha de pagamento de ativos e inativos, parcela bem superior à dos outros gastos correntes (35,3%) e a juros e encargos da dívida (4,2%).

Apesar de naquele ano as despesas terem representado 104,6% do total da receita corrente, servidores do Legislativo e do Ministério Público estaduais foram agraciados com aumentos salariais de 8% e 6%, respectivamente – no caso particular do MP, o reajuste teve efeitos retroativos ao início de 2014. Pior fez o Poder Judiciário estadual: no dia 23/12/2015, concedeu um presente de Natal para todos os seus servidores, distribuindo um abono pecuniário de R$ 5 mil reais.

Por ter recebido centenas de bilhões de dólares decorrentes das receitas de royalties e outras participações na expansão de petróleo, o Estado do Rio de Janeiro expandiu suas despesas com pessoal em mais de 110% nesta década, já descontados os efeitos da inflação. Para se ter ideia do peso que essas despesas representam para a população do Estado hoje em dia, é como se cada cidadão fluminense tivesse que contribuir com R$ 2.693,52 por ano para pagar essa conta.

Para não ficar apenas no âmbito dos Estados, nos últimos meses o governo federal vem descumprindo a exigência constitucional de que as operações de crédito sejam inferiores às suas despesas de capital – a chamada “regra de ouro”. Mesmo assim, o Poder Executivo enviou ao Congresso um projeto de lei para reestruturar a carreira dos militares e autorizou a nomeação de mais de mil policiais federais.

Caso seja aprovado pelo Congresso Nacional, o conjunto de Propostas de Emenda à Constituição elaborado pela equipe do ministro Paulo Guedes colocará travas sobre todas essas práticas com o objetivo de reequilibrar as finanças públicas em todos os níveis da Federação. Fazendo referência à regra norte-americana de que, enquanto não se aprova o orçamento, o Poder Executivo tem que paralisar as atividades de seus órgãos, o ministro da Economia de Bolsonaro prometeu instituir um shutdown à brasileira – a adoção de uma série de medidas para estancar a sangria de despesas até que o equilíbrio fiscal seja reestabelecido.

Fazem parte do pacote de medidas de ajuste a serem adotadas quando a União descumprir a regra de ouro ou quando Estados e municípios passarem a gastar mais de 95% da sua arrecadação as seguintes ações: suspensão de reajustes para o funcionalismo, criação de cargos, reestruturação de carreiras, realização de concursos e nomeação de aprovados, além da concessão ou aumento de benefícios tributários e o reajuste de despesas obrigatórias acima da inflação. Caso isso não seja suficiente, a jornada de trabalho (e, consequentemente, a remuneração) de servidores de todos os Poderes serão reduzidas em até 25%, assim como será suspensa a promoção de servidores – nesse caso, só ficariam de fora aqueles vinculados a carreiras piramidais, em que o surgimento de uma vaga num nível superior exige a promoção de um subordinado para ocupar o comando, como acontece com as carreiras militares, a magistratura e a diplomacia.

O Ministro da Economia, Paulo Guedes, durante a abertura da Marcha dos Prefeitos, em 09/04/2019. Foto: Edu Andrade/ASCOM/Ministério da Economia

O pacote de Guedes também inclui na Constituição uma série de dispositivos para pacificar disputas judiciais envolvendo a Lei de Responsabilidade Fiscal, como a inclusão dos pensionistas no cálculo dos limites de despesas de pessoal, a possibilidade de que os rendimentos dos servidores públicos possam ser reduzidos e a determinação para que os Poderes Legislativo, Judiciário e o Ministério Público também assumam o ônus de contingenciar suas despesas para o cumprimento das metas fiscais. Para completar, a PEC do Pacto Federativo também atribuiu ao TCU a competência de consolidar a interpretação da legislação fiscal no país, com efeitos vinculantes sobre todos os tribunais de contas estaduais e municipais.

Apesar de seus inúmeros efeitos positivos para consolidar, na prática, as boas intenções da Lei de Responsabilidade Fiscal, o conjunto de medidas apresentadas na última semana ao Congresso tem aspectos controversos e que podem afetar de maneira significativa as condições de vida da população mais pobre do país – e eu não estou me referindo à polêmica (mas correta) intenção de reverter a criação de municípios sem viabilidade financeira.

De um lado, Guedes pretende resolver na marra o complexo problema da judicialização das políticas públicas no país. Ao estabelecer na Constituição que os direitos sociais (educação, saúde, transporte, alimentação, etc.) devem se sujeitar a um “direito ao equilíbrio fiscal intergeracional” e ao determinar que União, Estados e municípios só devem cumprir decisões judiciais quando houver dotação orçamentária suficiente para o seu pagamento, Guedes tenta solucionar num passe de mágica conflitos distributivos que têm suas origens nas conflituosas relações entre Legislativo, Executivo e Judiciário. Sem parâmetros claros relativos à concepção, à execução e às disputas por acesso a políticas públicas, a medida corre o risco de se tornar letra morta ou, pior ainda, incentivar uma maior judicialização dessas questões.

Para complicar ainda mais a situação, o ataque de Guedes à vinculação de receitas desconsidera que nem sempre elas são criadas por piratas privados e criaturas do pântano político, como costuma dizer. Em certos casos, a vinculação serve justamente para garantir uma parcela do orçamento para a massa desamparada da população contra a sanha de grupos de interesses muito bem conectados com a política. Reunir num mesmo saco despesas de educação e saúde pode, por exemplo, estimular a políticos a destinar mais recursos para remediar o presente em detrimento da construção de um futuro melhor para a sociedade.

Guedes faz bem em atacar, com suas PECs, fontes importantes de despesas como a folha de pagamentos dos servidores e os benefícios tributários e incentivos fiscais. Precisa ter cuidado, porém, para não produzir um shutdown nas políticas públicas voltadas para a população mais pobre.