Movimentações atuais miram o futuro sem Lula

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 29/11/2021.

 

Na recém-lançada biografia Lula: Volume I, o jornalista Fernando Morais conta que, após deixar a cela na sede da Polícia Federal em Curitiba, o líder petista se dirigiu aos manifestantes que o acompanharam em vigília nos 581 dias de prisão. Depois do discurso inflamado, “Lula dá um beijo cinematográfico em Janja, desce a escadinha do palanque e, sem precisar anunciar a ninguém, pisa no chão como candidato a presidente do Brasil” (p. 164).

Morais estava certo. A anulação dos processos contra Luiz Inácio Lula da Silva automaticamente definiu a escolha da esquerda para as eleições de 2022. Líder com folga nas pesquisas até o momento, o recente périplo internacional mostra o apetite do petista por obter um terceiro mandato e, assim, terminar sua carreira política por cima.

O retorno de Lula reenergiza a militância e pode reverter uma tendência de queda de votos nesse campo ideológico observada desde que ele passou a faixa presidencial para Dilma Rousseff, em 01/01/2011.

Computando os votos para deputado federal – que são os determinantes para a distribuição dos fundos de financiamento de campanhas e do tempo no horário eleitoral – verificamos que o conjunto de partidos inclinados à esquerda (PT, PSB, PDT, PSOL, PV, Cidadania, PC do B, Rede, PCB, PSTU e PCO) viu seu eleitorado subir de 17,1 milhões em 1998 para 31,3 milhões de votos com a primeira vitória de Lula, em 2002.

A partir daí essas legendas ampliaram seu cacife gradativamente, até atingir 38,1 milhões de votos no final do segundo mandato lulista, em 2010. Sem Lula no páreo, contudo, os eleitores da esquerda recuaram para 31,2 milhões em 2014 e, no último pleito, caiu ainda mais, para 28,3 milhões de votos.

Mais do que a redução de suaa força eleitoral, há uma dinâmica partidária nesse lado do espectro ideológico. Como pode ser visto no gráfico, o PT e seu satélite mais fiel, o PC do B, perderam cerca de 6 milhões de votos entre 2002 e 2018. Mas não existe vácuo de poder, e esse espaço foi parcialmente ocupado nos últimos anos pelo crescimento do PSB, PSOL, Rede e – mais especificamente em 2018, com a candidatura presidencial de Ciro Gomes – também o PDT.

Esse fenômeno pode estar associado a diversos fatores, e merece ser estudado mais a fundo. A experiência de quase treze anos no poder federal, que exigiu o pragmatismo de alianças ao centro e ao Centrão, pode ter afastado eleitores mais puristas. Escândalos de corrupção como o mensalão e o petrolão também teriam cobrado seu preço. A recessão legada pelo partido, por sua vez, pode ter despertado a vontade de se buscar alternativas econômicas em outras siglas ou candidatos. Uma outra hipótese seria a dificuldade do PT em se modernizar e assumir o protagonismo no debate de novos temas mais progressistas.

A respeito desse último ponto, numa passagem da biografia escrita por Fernando Morais, há uma passagem em que Lula, após ler um livro na prisão, pergunta a um dos seus advogados: “Doutor, me explique uma coisa: o que é essa história de pauta identitária?” (p. 108). O fato de a principal liderança do partido estar tão por fora de um dos principais itens da agenda de seu campo político é uma evidência de como o PT pode ter envelhecido.

Em meio a todos esses processos, parcela expressiva dos antigos eleitores da base do PT buscou refúgio em novas (Rede e Psol) ou renovadas agremiações de esquerda (PSB e PDT).

Outra dinâmica a se observar é a dificuldade que o partido de Lula tem de formar e lançar uma nova geração de políticos de relevância nacional. A entressafra do PT fica clara quando se observa que, apesar de possuir uma bancada de 53 deputados e 6 senadores, eles perderam o comando da mobilização contra Bolsonaro no Congresso.

Na Câmara dos Deputados, a liderança da oposição vem sendo exercida por Alessandro Molon, enquanto o líder da minoria é Marcelo Freixo – ambos do PSB. Já no Senado, embora a minoria ainda seja capitaneada por um petista (Jean Paul Prates), o líder da oposição é Randolfe Rodrigues (Rede), um dos principais protagonistas da CPI da Pandemia, maior ação parlamentar contra o governo Bolsonaro até o momento.

Na nova geração de quadros petistas, Fernando Haddad desponta como uma rara exceção – apesar de o livro de Morais deixar claro que a opção preferencial de Lula para substitui-lo na disputa de 2018 era o baiano Jaques Wagner (p. 110) e que, acompanhando as eleições da prisão, o velho líder petista demonstrou muita contrariedade com a forma como o ex-prefeito paulistano conduziu a campanha (p. 139).

Embora seja o partido mais popular no eleitorado brasileiro, com o retorno de Lula às disputas eleitorais os nomes mais promissores que surgiram nos últimos anos no espectro da esquerda estão se acomodando fora do PT, como Guilherme Boulos no Psol, Manuela D’Ávila no PC do B e um extenso grupo que vai dos citados Molon e Freixo a Flávio Dino e Tabata Amaral, no PSB.

O deputado Marcelo Freixo (RJ) trocou o Psol pelo PSB. Foto: Billy Boss/Câmara dos Deputados.

Aliás, a intensa negociação do PSB tentando trazer para o seu lado o tucano Geraldo Alckmin e, assim, ocupar o posto de vice na chapa de Lula é a prova mais evidente de como os demais partidos estão se posicionando visando o futuro pós-Lula.

O retorno de Lula mexe com o jogo eleitoral de 2022. Mas, independentemente do resultado no ano que vem, no campo da esquerda as movimentações já acontecem mirando o dia em que seu principal jogador pendurar as chuteiras.