Intervencionismo no exterior e aqui, na campanha eleitoral

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 17/01/2022.

 

De tempos em tempos, os ventos da política e da economia mundiais mudam de direção. Pode demorar um pouco, mas a viragem sempre chega por aqui, com maior ou menor intensidade.

O desenvolvimentismo brasileiro, de Vargas a Geisel, foi forjado pelo casamento entre estatais, empresas multinacionais e grupos brasileiros. Longe de ser uma receita original e local, era fruto de seu tempo – no imediato pós-guerra, o braço forte do Estado se aliou ao grande capital para produzir as três décadas de ouro do século XX (1945-1975).

Os desequilíbrios desse modelo de desenvolvimento se tornaram evidentes após os choques do petróleo dos anos 1970, e a chegada ao poder de Margareth Thatcher e Ronald Reagan geraram um terremoto liberalizante que abalou as estruturas estatais em diferentes graus, provocando réplicas ao longo das décadas seguintes.

Privatização, desregulamentação, restrições nos gastos governamentais, redução da tributação sobre as empresas e globalização levaram a uma onda de retração do intervencionismo governamental nas economias. O capítulo da ordem econômica da Constituição de 1988 resumem essa influência liberal em terras brasileiras: a exploração de atividades econômicas por estatais seria exceção (art. 173) pois o papel do Estado deveria se concentrar na regulação e incentivo ao setor privado (art. 174).

Esse modelo, é bem verdade, nunca foi plenamente implementado por aqui. Mas se não estivesse conectado ao espírito de seu tempo, dificilmente Fernando Henrique teria cumprido seu programa de privatizações ou aprovado as reformas nos setores de petróleo, telecomunicações, elétrico e financeiro.

A maré parece estar virando novamente. A revista The Economist desta semana traz uma série de matérias especiais chamando a atenção para o advento de uma nova era de intervenção estatal na economia.

A mudança de ares começou a ser sentida com a crise de 2008, que expôs as consequências sociais de um processo desenfreado de desregulamentação no setor financeiro. A partir daí, a demanda por maior protagonismo do Estado se alastrou, seja para liderar as ações para lidar com as mudanças climáticas, conter o poder desenfreado das gigantes de tecnologia, resgatar os milhões de afetados pela pandemia ou buscar alternativas à dependência da China nas cadeias globais de produção.

Do “Make America Great Again” de Donald Trump ao “Green New Deal” de Joe Biden, estamos observando uma avalanche de medidas protecionistas, maior investimento público em infraestrutura, subsídios a novos setores estratégicos (de fontes limpas de energia a semicondutores), programas de transferência de renda e regulações mais protetivas nas searas ambiental e trabalhista nas economias avançadas. É o que a Economist chama de “o Estado mandão” (the bossy state).

Ao contrário do pós-guerra, em que o governo se encarregava do provimento direto de bens e serviços, a publicação inglesa destaca que nestes novos tempos a ação estatal se vale de quatro alavancas: política industrial para fomentar setores e tecnologias específicas, decisões antitruste contra as megacorporações, regulação cada vez mais abrangente e tributação progressiva sobre as empresas e os muito ricos.

Essa mudança no pêndulo parece ter sido captada pelos interessados a conquistar o lugar de Jair Bolsonaro na Presidência da República.

Na série de artigos publicados na Folha de S.Paulo pelos assessores econômicos dos quatro principais desafiantes, percebem-se ecos desse novo protagonismo estatal nos esboços de seus futuros programas de governo.

Nelson Marconi (Ciro), Henrique Meirelles (Doria), Guido Mantega (Lula) e Affonso Pastore (Moro) concordam em se buscar uma maior progressividade no sistema tributário e em promover o desenvolvimento ambiental sustentável, além de combater a pobreza e a desigualdade social por meio de políticas públicas e transferências de renda aos mais vulneráveis. Maiores investimentos em educação e na capacitação dos trabalhadores também aparecem em todas as propostas.

O consenso rui, porém, quando se trata da política industrial. Nesse quesito, há uma distinção bem nítida entre Pastore/Moro e Meirelles/Doria num polo menos intervencionista e, num outro extremo, Marconi/Ciro e Mantega/Lula acreditando no poder do Estado em liderar a economia.

O artigo de Pastore critica expressamente “a aposta no capitalismo de compadrio do PT” e as “escolhas políticas erradas” que levaram à Nova Matriz Econômica. Suas menções aos investimentos em infraestrutura e ao meio-ambiente apontam as parcerias com o setor privado como propulsores do desenvolvimento – e não a aplicação de recursos públicos ou a concessão de benefícios fiscais.

Affonso Celso Pastore, consultor econômico de Sergio Moro. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Ao defender que “o Estado precisa ser forte (não significa ser grande)” e mencionar a necessidade de reformas legais para combater a insegurança jurídica e elevar os investimentos privados, Meirelles evidencia que, num eventual governo Doria, será o mercado, e não o Estado, o principal motor do crescimento.

Nelson Marconi, por sua vez, inicia seu arrazoado comparando o desempenho do Brasil com o da China e da Coreia nos últimos quarenta anos. Não é surpresa, portanto, que a proposta de Ciro seja a mais detalhada quanto à política industrial. Nela, além dos velhos instrumentos de planejamento estatal (com metas para o setor privado, investimentos públicos e políticas setoriais), a própria política macroeconômica (fiscal, juros e câmbio) deve ser “favorável a quem produz”.

Embora Guido Mantega tenha escrito que não falava em nome da candidatura petista, as declarações de Lula nos últimos meses tornam crível a proposta do seu ex-ministro da Fazenda de “retomar as políticas industriais” e lançar “um ambicioso plano de investimentos públicos e privados”.

Cabe à futura equipe econômica de Lula, contudo, explicar como corrigirá dois vícios desse novo “Estado mandão” descrito pela Economist e que foram marcas da sua política de subsídios e campeões nacionais de 2006 a 2016: a ineficiência e a corrupção.