Governo perde credibilidade ao reeditar Refis

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 14/06/2021.

 

E lá vamos nós novamente. A cada crise que sacode a economia brasileira, o governo e o Congresso Nacional logo tiram da cartola uma proposta para socorrer as empresas nacionais. Não importa a natureza da recessão, se política ou econômica, externa ou doméstica, a solução imaginada passa sempre por uma palavra mágica: Refis.

2,5 trilhões de reais. Esse é o valor da dívida que 4,7 milhões de cidadãos e empresas possuem junto ao Fisco federal, segundo a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), órgão do Ministério da Economia responsável pela gestão e execução de tributos, contribuições e outras obrigações não pagas na data ou no valor considerados devidos.

A União conta com um exército de cerca de 2.100 procuradores para, entre outras atribuições, cobrar essa fatura judicialmente ou, conforme legislação recentemente aprovada, celebrar acordos amigáveis com os devedores fora dos tribunais. Mesmo contando com advogados públicos muito bem preparados e remunerados – o salário da categoria varia de R$ 21 mil a R$ 27,3 mil, acrescido de uma parcela variável de honorários advocatícios que gira em torno de R$ 9 mil mensais –, a PGFN só conseguiu recuperar, no ano passado, R$ 25,7 bilhões da dívida – ou seja, apenas 1% do estoque total.

Foi no governo de Fernando Henrique Cardoso que surgiu uma ideia que parecia genial: oferecer às empresas a oportunidade de acertar de uma vez por todas as suas contas com a União. Em seus Diários da Presidência 1999-2000, o ex-presidente relata como ele próprio e sua equipe depositavam grandes expectativas na proposta. De um lado, o equacionamento do passivo tributário permitiria aos empresários voltar a investir e a impulsionar o crescimento do país. Pelo lado do Fisco, haveria uma redução significativa nas disputas judiciais e administrativas com os devedores.

O que era para ser uma medida excepcional, no entanto, virou rotina. De acordo com estudo da Receita Federal, desde então já foram mais de 40 programas de parcelamento de débitos lançados apenas no âmbito federal. As sopas de letrinhas variaram – o velho “Refis” já foi rebatizado de Paes, Paex, Refis da Crise, Refis da Copa, PRT, PERT, etc. –, e por vezes o governo concedeu programas especiais para setores específicos, de clubes de futebol (que foram contemplados com o Timemania e o Profut) a instituições financeiras. É só surgir uma crise, que reaparece a pressão do empresariado para se reabrir algum tipo de Refis.

Lançamento do Plano Safra do Banco do Brasil 2021/2022. Foto: Marcos Corrêa/PR

A generosidade no desenho desses parcelamentos muda de programa para programa, mas o formato é sempre o mesmo: descontos nas multas devidas por atraso, redução na taxa de juros acumulada e o parcelamento do saldo devedor em suaves prestações ao longo de anos. Em troca, o devedor concorda em pagar um percentual de “entrada” e também abre mão de qualquer questionamento judicial ou administrativo sobre o valor cobrado pelo Fisco.

O Refis faz tanto sucesso porque é vendido como um jogo de ganha-ganha. De um lado, empresários ficam felizes com o alívio financeiro obtido, enquanto a União verifica um aumento na arrecadação, na medida em que se materializa um fluxo de pagamentos que ainda estava sendo questionado administrativa ou judicialmente.

Acontece, porém, que na medida em que os Refis se tornam tão recorrentes quanto as crises brasileiras, um número considerável de empresas começou a incorporar em seu planejamento financeiro a aposta de que, mais dia, menos dia, o governo vai reabrir um programa de parcelamento de débitos tributários. E alguns estudos têm demonstrado que esse fenômeno já provoca danos permanentes na cultura de pagamento de tributos no Brasil.

Com base em dados internos extraídos do sistema de acompanhamento de grandes contribuintes da Receita Federal, os auditores fiscais Frederico Faber e João Paulo Fachada selecionaram um amostra de 4.979 empresas, para as quais foi possível obter dados de pagamento de tributos, faturamento e lucro líquido entre 2000 e 2015. Dessas, 2.680 empresas haviam recorrido em algum momento a algum tipo de Refis, enquanto 2.299 CNPJs, por não terem se valido dos programas, funcionaram como grupo de controle.

O estudo apresenta evidências de um comportamento oportunista do grupo optante pelos Refis: quando comparado às demais empresas, verifica-se uma queda no recolhimento de tributos, o que proporcionou um resultado mais favorável em termos de lucro líquido.

Em outra vertente, Nelson Leitão Paes se valeu de um modelo de equilíbrio parcial para estimar que a oferta de programas de refinanciamento de dívidas tributárias diminui a propensão de contribuintes a se manterem adimplentes, gerando perdas anuais de arrecadação que podem ter superado 1% do PIB no período de 2000 a 2009.

Esse resultado é corroborado por um levantamento feito por Osmar Pereira de Moraes, Paulo Junio de Moura e Moisés Ferreira da Cunha, apresentado na XX Conferência Internacional de Ciências Contábeis da USP, realizada em julho de 2020. Com base numa amostra de 37 companhias que divulgaram os valores de parcelamentos tributários em seus balanços, os autores concluíram que os sucessivos Refis vêm sendo utilizados como estratégia de financiamento de longo prazo por essas empresas, que deixam de coletar impostos vislumbrando que, no futuro, o governo irá suavizar sua cobrança.

A conta desse círculo vicioso de calote, parcelamento, novo calote e novo parcelamento é paga por toda a sociedade. Além da redução na arrecadação tributária, a Receita Federal estima que a renúncia fiscal dos maiores programas de parcelamento criados entre 2008 e 2017 girou em torno de R$ 176 bilhões – uma soma expressiva que deveria estar sendo aplicada em melhores políticas públicas, como saúde, educação e segurança.

Desde a campanha, Paulo Guedes anunciou inúmeras vezes que a sua gestão da economia resolveria o problema dos devedores contumazes com reforma tributária, e não com Refis. Nos próximos dias, esse pode ser mais um item na sua lista de promessas não cumpridas.